quinta-feira, 12 de maio de 2011

A Dominação Britânica na India - Karl Marx

Escrito em 10 de Junho de 1853, artigo publicado no New York Daily Tribune de 25 de Junho de 1853. Extraído do site: http://www.marxists.org/portugues/marx/1853/06/10.htm


Os despachos telegráficos de Viena anunciam que a solução pacífica dos problemas turco, sardo e suiço não comporta mais dúvidas.

Ontem à tarde, na Câmara dos Comuns, o debate sobre a Índia prosseguia com a apatia habitual. M. Blackett acusou às intervenções de sir Charles Wood e de sir J. Hogg de serem portadoras de um falso otimismo. Muitos defensores do ministério e do Conselho de diretores fizeram o seu melhor para refutar a acusação, e o inevitável M. Hume fez o resumo conclamando os ministros a retirarem seu projeto de ato. O debate foi adiado.

O Hindustão é uma Itália de dimensões asiáticas, em que o Himalaya ocupa o lugar dos Alpes, as planícies do Bengala o da Lombardia, a cadeia do Deccan o dos Apeninos, e o Ceilão o da Sicília. A mesma riqueza e a mesma variedade de produtos da terra, e o mesmo desmembramento na estrutura política. Exatamente como a Itália, em diversos períodos a clava do conquistador refundia diferentes massas nacionais, quando não era sob o jugo dos maometanos, ou dos mongóis, ou dos britânicos, era dividida em tantos estados inimigos independentes que possuiam apenas cidades ou mesmo vilarejos. Portanto, do ponto de vista social, o Hindustão não é uma Itália, mas mais uma Irlanda do Oriente. E essa combinação estranha de Itália e Irlanda, do mundo da voluptuosidade e o do cadinho, estava já antecipada nas antigas tradições da religião do Hindustão. Essa religião é ao mesmo tempo uma religião da exuberância sensual e uma religião de ascetas mortificando seus corpos; a religião do lingam e a da Jagannatha; a religião dos monges e a das bayadères (1).

Não partilho a opinião daqueles que creem numa idade do ouro do Hindustão, se bem que não me refiro, como o faz sir Carles Wood, ao exemplo de Koulikhan para confirmar meu ponto de vista. Mas tome o tempo de Aurangzeb; ou a época em que os mongóis apareceram no norte e os portugueses no sul; ou o período da invasão dos maometanos e da heptarquia na Índia meridional; ou, como queira, remonte ainda mais longe na antiguidade e tome a cronologia mitológica dos próprios brahmanes que noticiavam o começo da miséria na Índia a uma época ainda mais antiga que a criação do mundo na concepção cristã.

Qualquer dúvida não é possível, portanto: os males que os ingleses causaram ao Hindustão são de um gênero essencialmente diferente e muito mais profundo do que o Hidustão havia sofrido antes. Eu não faço alusão ao despotismo europeu que, somado pela Companhia Britânica das Índias Orientais ao despotismo asiático, forma uma combinação mais monstruosa do que os monstros sagrados que nos apavoram no templo de Salsette. Isso não constitui um traço distintivo da dominação colonial britânica e não é senão uma imitação do sistema holandês, a tal ponto que para caracterizar a atividade da Companhia Britânica das Índias Orientais é suficiente repetir literalmente o que sir Stamford Raffles, o governador inglês de Java, tinha dito a propósito da velha Companhia Neozelandesa das Índias Orientais:

"A Companhia Neozelandesa, movida unicamente pelo amor ao ganho e tendo por seus assujeitados menos interesse e consideração que um plantador das Índias ocidentais tinha pelos escravos que trabalhavam em seu domínio - dado que este pelo menos havia pago com o dinheiro seu instrumento de trabalho humano, enquanto aquela não havia gasto nada -, essa Companhia mobilizou todos os recursos existentes do despotismo para tirar do povo seus últimos suspiros por meio de contribuições e de todo o trabalho de que ele era capaz. Ela agravou assim os males causados por um governo caprichoso e semi-bárbaro e pela a avidez sem limites dos mercadores."

Todas as guerras civis, invasões, revoluções, conquistas, fomes, por mais complexa, rápida e destrutiva que pudesse parecer sua sucessiva ação sobre o Hindustão, não o haviam arranhado senão superficialmente. A Inglaterra destruiu os fundamentos do regime social da Índia, sem manifestar até o presente a menor veleidade de construir o que quer que seja. Esta perda de seu velho mundo, que não foi seguida pela obtenção de um mundo novo, confere à miséria atual dos Hindus um caráter particularmente desesperado e separa o Hidustão, governado pelos ingleses, de todas as tradições antigas, de todo o conjunto de sua história passada.

Decorridos tempos imemoriais, não existia na Ásia senão três departamentos administrativos: o das Finanças, ou pilhagem do interior; o da Guerra, ou pilhagem do exterior; e, enfim, o departamento dos Trabalhos Públicos. O clima e as condições geográficas, sobretudo a presença de vastos espaços desérticos, que se extendem do Saara, através da Arábia, da Pérsia, da Índia e da Tatária, aos platôs mais elevados da Ásia, fizeram da irrigação artificial com auxílio de canais e de outras obras hidráulicas a base da agricultura oriental. No Egito e na Índia, como na Mesopotâmia e na Pérsia, as inundações servem para fertilizar o solo; tira-se proveito do alto nível da água para alimentar os canais de irrigação. Esta necessidade primeira de utilizar a água com economia e em comum, que, no Ocidente levou as empresas privadas a se unirem em associações voluntárias , como em Flandres e na Itália, impôs no Oriente, onde o nível de civilização era muito baixo e os territórios muito vastos para que pudessem aparecer asociações desse gênero, a intervenção centralizadora do governo. Daí uma função econômica incumbe a todos os governos asiáticos: a função de assegurar os trabalhos públicos. Essa fertilização artificial do solo, que depende de um governo central e que cai em decadência desde que a irrigação ou a drenagem são negligenciadas, explica o fato, que sem tal explicação teria parecido estranho: territórios inteiros que, outrora, foram admiravelmente cultivados como a Palmyra, Petra, as ruínas do Yêmem, vastas províncias do Egito, da Pérsia e do Hindustão, estão atualmente estéreis e desertos. Isso explica também porque uma só guerra devastadora pôde depauperar o pais por séculos e privá-lo de toda sua civilização.

Ora, os Ingleses nas Índias Orientais aceitaram de seus precedentes os departamentos das Finanças e da Guerra, mas eles negligenciaram inteiramente o dos Trabalhos Públicos. Daí a deterioração de uma agricultura incapaz de se desenvolver segundo o princípio britânico da livre concorrência, do laissez faire, laissez aller. As colheiras correspondem aos governos bons ou maus, como alternam-se na Europa segundo os bons e os maus climas. Assim, a opressão e o abandono da agricultura, por mais nefastos que fossem, não poderiam ser vistos como o golpe de graça desferido contra a sociedade indiana pelos invasores ingleses, se não tivessem sido acompanhados de uma circunstância muito importante e totalmente nova nos anais do mundo asiático no seu conjunto. Qualquer que tenha sido no passado a transformação que formou o aspecto político da India, suas condições sociais permaneceram invariáveis desde a Antiguidade mais remota até a primeira década do século XIX. O ofício de tecer à mão e à roca, que produziram miríadas de tecelagens e de fiações, era o pivot da estrutura dessa sociedade. Desde tempos imemoriais, a Europa recebia os admiráveis tecidos de fabricação indiana, enviando em troca seus metais preciosos e desse modo fornecendo a matéria prima aos ouríves, membros indispensáveis da sociedade indiana cujo amor pela bijuteria é tão grande que mesmo os representantes das classes inferiores que andam quase nús, têm habitualmente um par de brincos de ouro e algum ornamento de ouro em volta do pescoço. Os anéis usados nos dedos ou nas orelhas eram também muito reluzentes. As mulheres e as crianças tinham nos braços e nas pernas maciços braceletes de ouro ou de prata, havia estatuetas de divindades em ouro e em prata nas casas. Os invasores ingleses quebraram os ofícios de tecelagem dos indianos e destruíram suas rocas. A Inglaterra começou por excluir os tecidos de algodão indianos do mercado europeu, depois ela se pôs a exportar para o Hindustão o fio e enfim inundou de tecidos de algodão a pátria dos tecidos de algodão. De 1818 a 1836 as exportações de fios da Gran-Bretanha para a Índia aumentaram na proporção de 1 para 5.200. Em 1824 as exportações de musselines ingleses para a Índia atingiam apenas 1 milhão de jardas, enquanto em 1837 elas ultrapassavam 64 milhões de jardas. Mas no mesmo período a população de Dacca passou de 150.000 habitantes a 20.000. Esta decadência das cidades indianas, célebres por seus produtos, não foi a pior consequência da dominação britânica. A ciência britânica e a utilização da máquina a vapor pelos ingleses haviam destruído, em todo o território do Hindustão, a ligação entre a agricultura e a indústria artesanal.

Estas duas circunstâncias - de uma parte o fato de que os indianos, como todos os povos orientais, deixaram ao governo central a preocupação com os grandes trabalhos públicos, condição primeira de sua agricultura e de seu comércio, e de outro, de que eles estavam dispersados sobre todo o território do país e reunidos em pequenos centros pelas comunidades semi-agrícolas, semi-artesanais de caráter familiar - estas duas circunstâncias, dizíamos, engendraram, desde os tempos mais remotos, um sistema social muito particular, o dito système de village, que dava a cada uma dessas pequenas comunidades uma organização independente e uma vida distinta. A descrição a seguir, tirada de um velho relatório oficial sobre os assuntos indianos da Câmara dos Comuns inglesa, pode dar uma idéia do caráter particular desse sistema:"Do ponto de vista geográfico uma vila é um espaço de terras aráveis e não cultivadas, compreendendo algumas centenas ou alguns milhares de acres; do ponto de vista político, ela reune uma corporação ou uma paróquia. Encontramos nela habitualmente os seguintes funcionários empregados: o potail, ou síndico, que via de regra, zela pelos negócios da vila, arbitra os litígios entre os habitantes, garante o policiamento e percebe os impostos, funções que sua influência pessoal e o conhecimento minucioso da situação e dos assuntos dos membros lhe tornam o mais qualificado para assumir. O kurnum estabelece o balanço dos trabalhos agrícolas e registra tudo o que se relaciona com a cultura do solo. Vem em seguida o tailler e o totie; o dever do primeiro consiste em reunir as informações concernentes aos crimes e delitos, a acompanhar e proteger as pessoas que viajam de uma vila a outra; a tarefa do segundo parece estar ligada mais diretamente à vila e consiste, entre outras, em zelar por sua colheita e em contribuir para sua evolução. O guarda-fronteiras é preposto da guarda dos limites da vila e faz a deposição em caso de litígio. O preposto das reservas e cursos d'água distribui a água para as necessidades da agricultura. Um brahamane celebra o culto. O mestre escola ensina às crianças da vila a ler e a escrever em pele. Distigue-se ainda o brahamane preposto do calendário ou astrólogo, etc... Estas funções e seus empregados constituem geralmente a administração da vila; mas em certas partes do país eles são menos numerosos, conquanto muitos deveres e funções descritas acima são assumidos por uma só pessoa; em outras, seu número é muito grande. Desde tempos imemoriais os habitantes da vila têm vivido sob esta simples forma de governo municipal. Não alteraram-se senão raramente os limites das vilas; e se bem que estas tenham sido por vezes dominadas e mesmo devastadas pela guerra, pela fome e doenças, os mesmos nomes, os mesmos limites, os mesmos interesses e até as mesmas famílias alí permaneceram durante séculos. Os habitantes não se deixam incomodar pelas quedas e desmembramentos de reinos; contanto que a vila permaneça inteira, pouco lhes importa para qual poder foi transferido ou de qual soberano ele depende; sua economia interior não sofre qualquer mudança. O potail é sempre síndico da vila e continua sua atividade de juiz de paz ou magistrado; o Estado lhe confia diretamente, ou lhe confere a percepção dos impostos."

Estas pequenas formas estereotipadas de organismo social foram dissolvidas na maior parte e estão em vias de desaparecer não tanto por causa da intervenção brutal dos preceptores e soldados britânicos, mas sob a influência da máquina a vapor e do livre comércio ingleses. Estas comunidades familiares baseiam-se na indústria artesanal, aliando de um modo específico a tecelagem, a fiação e a cultura do solo executados a mão, o que lhes assegurava a independência. A intervenção inglesa, estabelecida a partir a fiação em Lancashire e da tecelagem em Bengala, ou mesmo fazendo desaparecer tanto o fianção como a tecelagem indianas, destruiu essas pequenas comunidades semi-bárbaras, semi-civilizadas, destruindo seus fundamentos econômicos e produzindo assim a maior e, na verdade, a única revolução social que jamais teve lugar na Ásia.

Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas se dissolverem, se desagregarem em seus elementos constitutivos e serem reduzidas à miséria, e seus membros perderem ao mesmo tempo sua antiga forma de civilização e seus meios de subsistência tradicionais, não devemos esquecer que essas comunidades villageoisies idílicas, malgrado seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundação sólida do despotismo oriental, que elas retém a razão humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dócil da superstição e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda grandeza e de toda força histórica. Não devemos esquecer os bárbaros que, apegados egoisticamente ao seu miserável lote de terra, observam com calma a ruina dos impérios, as crueldades sem nome, o massacre da população das grandes cidades, não lhes dedicando mais atenção do que aos fenômenos naturais, sendo eles mesmos vítimas de todo agressor que se dignasse a notá-los. Não devemos esquecer que a vida vegetativa, estagante, indigna, que esse gênero de existência passiva desencadeia, por outra parte e como contragolpe, forças de destruição cegas e selvagens, fazendo da morte um rito religioso no Hindustão. Não devemos esquecer que essas pequenas comunidades carregavam a marca infame das castas e da escravidão, que elas submetiam o homem a circunstâncias exteriores em lugar de fazê-lo rei das circunstâncias, que elas faziam de um estado social em desenvolvimento expontâneo uma fatalidade toda poderosa, origem de um culto grosseiro da natureza cujo caráter degradante se traduzia no fato de que o homem, mestre da natureza, caia de joelhos e adorava Hanumán, o macaco, e Sabbala, a vaca.

É verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revolução social no Hidustão, era guiada pelos interesses mais abjectos e agia de uma maneira estúpida para atingir seus objetivos. Mas a questão não é essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir seu destino sem uma revolução fundamental na situação social da Ásia. Senão, quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento da História ao provocar esta revolução. Nesse caso, diante de qualquer tristeza que possamos sentir diante do espetáculo do colapso de um mundo antigo, temos o direito de exclamar como Goethe:
"Deve esta dor nos atormentar
já que ela nosso proveito aumenta,
O jugo de Timur não consumiu
miríades de vidas humanas?
(Goethe, Westostlicher Diwan. An suleika.)


Karl Marx em 10 de junho de 1853

Os Resultados Eventuais da Dominação Britânica na India - Karl Marx

Escrito em 22 de Julho de 1853, artigo publicado no New Tork Daily Tribune a 8 de Agosto de 1853. Extraído do site: http://www.marxists.org/portugues/marx/1853/07/22.htm


Nesta carta, eu me proponho a concluir minhas observações sobre a Índia. Como a supremacia inglesa chegou a se estabelecer na Índia? O poder supremo do Grande Mogol foi derrotado por seus vice-reis. O poder dos vice-reis foi derrotado pelos Mahrattes. O poder dos Maharattes foi derrotado pelos afegãos e, enquanto todos lutavam contra todos, o britânico fez-se irromper e os subjugou todos. Um país não dividido somente entre maometanos e hindus, mas entre tribo e tribo, entre casta e casta; uma sociedade baseada em uma sorte de equilíbrio resultante de uma repulsão geral e de um exclusivismo orgânico de seus membros: tal país e tal sociedade não seria uma presa jurada à conquista? Se não conhecêssemos nada do passado do Hindustão, não restaria ainda o marcante e incontestável fato de que no momento presente a Índia é mantida sob o jugo inglês por um exército indiano mantido às custas da própria Índia? A Índia não poderia portanto escapar ao destino de ser conquistada e toda sua história, se história houver, é a das conquistas sucessivas que ela sofreu. A sociedade indiana não tem qualquer história, pelo menos história conhecida. O que chamamos de história não é a história dos invasores sucessivos que fundaram seus impérios sobre a base passiva desta sociedade imóvel e sem resistência. A questão não é, portanto, a de saber se os ingleses têm direito de conquistar a Índia, mas se devemos preferir a Índia conquistada pelos turcos, pelos persas, pelos russos, à Índia conquistada pelos britânicos.

A Inglaterra tem uma dupla missão a alcançar na Índia: uma destrutiva, outra regeneradora - aniquilação da velha sociedade asiática e a instalação dos fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia.
Árabes, turcos, tártaros, mongóis, que invadiram sucessivamente a Índia, foram prontamente"hiduizados", com os conquistadores bárbaros sendo, por uma lei eterna da História, conquistados eles próprios pela civilização superior de seus assujeitados. Os britânicos são os primeiros conquistadores superiores e consequentemente inacessíveis à civilização hindu. Eles a destruíram destruindo as comunidades indígenas, extripando-lhe a indústria indígena e nivelando tudo o que era grande e superior na sociedade indígena. A história de sua dominação na Índia não retrata outra coisa que seja diferente dessa destruição. A obra de regeneração surge com sofrimento em meio a um monte de ruínas. Ela, pelo menos, começou.

A unidade política da Índia, mais consolidada e estendendo-se para mais longe do que jamais feito sob os Grandes Mogols, era a primeira condição de sua regeneração. Esta unidade imposta pela lança britànica vai agora ser reafirmada e perpetuada pelo telégrafo elétrico. O exército indígena organisado e treinado pelo sargento instrutor britànico era o sine qua non da Índia que se emancipa e da Índia que não será a presa do primeiro intruso estrangeiro. A imprensa livre, introduzida pela primeira vez na sociedade asiática e gerida principalmente pela comum progenitura de hindus e de europeus, é um novo e potente agente de reconstrução. Os sistemas zemindari e ryotwari, por mais abomináveis que sejam, constituem-se de tal modo que elas próprias são duas formas de propriedade privada da terra - o grande sonho da sociedade asiática. Os nativos da Índia, educados em Cálcuta sob a tutela inglesa, ainda que com má vontade e parcimônia, estão em vias de formar uma classe nova, dotada de atitudes requeridas ao governo e imbuídas de ciência européia. O vapor colocou a Índia em comunicação regular e rápida com a Europa, ela pôs seus portos principais em relação com os dos mares do sul e do leste e a tirou do isolamento que era a causa de sua estagnação. N ão está tão longe o dia em que por uma combinação de estradas de ferro e de barcos a vapor a distância entre a Inglaterra e a Índia, medidas pelo tempo, será reduzida a oito dias, e onde esta região de há muito fabulosa, será praticamente anexada ao mundo ocidental.

As classes dirigentes da Grã-Bretanha não haviam manifestado até o presente senão um interesse acidental, transitório e excepcional com relação ao progresso da Índia. A aristocracia queria conquistá-la, a plutocracia pilhá-la e a oligarquia manufatureira subjugá-la por meio de suas mercadorias a baixo preço. Mas as posições estão mudadas no presente. A oligarquia manufatureira descobriu que a transformação da Índia em um grande país produtor tornou-se de importância vital para ela e que, para esses fins, é acima de tudo necessário dotá-la de meios de irrigação e de comunicação interiores. Ela projeta no presente cobrir a Índia com uma rede de vias férreas. E ela o fará. Os resultados deverão ser incomensuráveis.

É notório que o poder produtivo da Índia está paralizado pela falta absoluta de meios para transportar e trocar seus variados produtos. Em nenhuma parte como na Índia veremos a miséria social em meio a abundância natural em decorrência da falta dos meios de trocar. Foi provado, diante de uma comissão da Câmara dos Comuns britânica que instalou-se em 1848, que"enquanto se vendia o grão entre seis e oito shillings o quarto em Khadesh, ele era vendido entre 64 e 70 shillings em Poona, onde o povo morria de fome nas ruas sem possibilidade de fazer vir os aprovisionamentos de Khandesh pois os caminhos de terra estavam impraticáveis".

A entrada em serviço das estradas de ferro pode facilmente ser utilizado no interesse da agricultura por atravessar os reservatórios, lá onde é necessário conquistar a terra pela terraplanagem, e pela adução da água ao longo das linhas. Assim a irrigação, o sine qua non da cultura do solo no oriente, pode ganhar uma grande extensão e o retorno frequente das fomes locais, devido à falta de água, será conjurada. Considerando-se esse aspecto, a importância geral dessas estradas de ferro torna-se evidente se recordarmos que os proprietários das terras irrigadas, mesmo nos distritos vizinhos da cadeia das Ghâts, pagam o triplo de impostos, empregam dez ou doze vezes mais mão-de-obra, e que essas terras produzem doze ou quinze vezes mais que a mesma superfície não irrigada.

As estradas de ferro fornecerão os meios para reduzir as proporções e o custo de manutenção dos estabelecimentos militares. O coronel Warren, comandante in loco do forte St.William, expôs diante de uma comissão especial da Câmara dos Comuns que "a possibilidade de receber informações das partes mais distantes do país em algumas horas, onde hoje é necessário dias e semanas, e de enviar instruções com torpas e aprovisionamentos no mais breve período, são considerações que dificilmente poderão ser superestimadas. As tropas poderiam ser estacionadas em acampamentos mais distantes e mais salubres que no presente e muitas perdas de vidas por doença seriam assim poupadas. Não haveria mais necessidade de ter aprovisonamentos nos depósitos e as perdas por decomposição e destruição, efeito natural do clima, seriam também evitadas. Os efetivos poderiam ser reduzidos em razão direta de sua eficácia".

Sabemos que a organização municipal e a base econômica da sociedade rural fundada na auto-gestão têm sido destruídas, mas seus piores traços, a dissolução da sociedade em átomos estereotipados e sem conexão entre eles, sobreviveram. O isolamento da vila produziu a falta de vias na Índia e a falta de vias perpetuaram o isolamento da vila. Assim, uma comunidade existia num nível dado e inferior de bem estar, quase sem relação com as outras vilas, sem os anseios e os esforços indispensáveis ao progresso social. Os britânicos destruiram a inércia das vilas que se bastavam a si mesmas, as estradas de ferro vão satisfazer a necessidade nova de comunicação e de relações. Além disso,"um dos efeitos do sistema de estradas de ferro será o de levar a cada vila um conhecimento dos fatos e invenções de outros países e dos meios deles se dotar, que logo colocarão à prova as capacidades do artesanato hereditário e assalariado da vila indiana, para em seguida compensar sua ausência" (Chapman, O algodão e o comércio da Índia).

Eu sei que a oligarquia manufatureira inglesa não deseja dotar a Índia de estradas de ferro senão na intenção exclusiva de tirar-lhe a menores custos o algodão e outras matérias primas para suas manufaturas. Mas uma vez que tenha introduzido as máquinas como meio de locomoção em um país que possui o ferro e o carvão, torna-se incapaz de mantê-los excluídos da fabricação. Nõo se pode manter uma rede de estradas de ferro num imenso país, sem introduzir os processos industriais necessários para satisfazer as necessidades imediatas e correntes da locomoção por via férrea, e daí deverá desenvolver-se também a aplicação de máquinas nos ramos da indústria sem relação direta com as estradas de ferro. Portanto, as estradas de ferro tornar-se-ão na Índa os arautos da indústria moderna. O que é ainda mais certo é que os hindus são, como admitem as próprias autoridades britânicas, particularmente dotados para se adaptar a um trabalho inteiramente novo e adquirir o requerido conhecimento das máquinas. Ampla prova nos é dada pelas capacidades e habilidade dos mecânicos indígenas, na Moeda de Calcutá, empregados há anos fazendo funcionar a maquinaria a vapor, e pelos indígenas manuseando diversos mecanismos a vapor nos distritos carboníferos de Hardwar, além de outros exemplos. O próprio Mister Campbell, que é tão influenciado pelos preconceitos da Companhia das Índias, é obrigado a reconhecer"que a grande massa do povo indiano possui uma grande energia industrial, que ela é dotada para acumular capital e destacada por um espírito de grande clareza matemática e de disposição para o cálculo e as ciências exatas"."Seu intelecto, diz ele, é excelente".

As indústrias modernas, que serão resultado do sistema ferroviário, vão dissolver as divisões hereditárias do trabalho sobre as quais repousam as castas indianas, esses obstáculos decisivos ao progresso indiano e à potência indiana.

Tudo o que a burguesia inglesa for obrigada a fazer na Índia não emancipará a massa do povo nem melhorará substancialmente sua condição social, conquanto esta depende não somente do desenvolvimento das forças produtivas mas também de sua apropriação pelo povo. Mas o que não deixará de fazer é criar as condições materiais para realizar as duas. A burguesia jamais fez mais? Ela jamais efetuou um progresso sem conduzir os idividuos e os povos através do sangue e da lama, através da miséria e da degradação?

As Índias não recolherão os frutos dos elementos da nova sociedade semeados aqui e acolá entre eles pela burguesia inglesa, até que na própria Inglaterra as classes dominantes não tenham sido suplantadas pelo proletariado industrial, ou que os próprios hindus não tenham se tornado fortes o suficiente para rejeitar definitivamente o jugo inglês. Em todo caso, esperamos poder ver, em uma época mais ou menos distante, a regeneração desse grande e interessante país, cujas gerações nativas são, para retomar a expressão do príncipe Saltykov, mesmo nas classes mais inferiores,"mais finos e hábeis que os italianos", cuja submissão mesma é contrabalançada por uma calma nobre, a qual, a despeito de sua indolência natural, tem deixado atônitos os oficiais britânicos pela sua coragem, país que foi fonte de nossas linguas, de nossas religiões e que apresenta o tipo do antigo alemão no djat e o tipo do antigo grego no brâmane.

Eu não posso deixar o assunto das Índias sem algumas observações para concluir.

A hipocrisia profunda e a bárbarie inerente à civilização burguesa se difunde sem véus diante de nossos olhos, passando da sua fornalha natal, onde ela assume formas respeitáveis, às colônias onde ela assume suas formas sem véus. Os burgueses são os defensores da propriedade privada, mas algum partido revolucionário já deu origem a revoluções agrárias como as que tiveram lugar em Bengala, em Madras e em Bombaim? Não teria ela, na Índia, para empregar uma expressão deste grande saqueador, o próprio lord Clive, recorrido a atrozes extorsões, lá onde a simples corrupção não podia satisfazer sua voracidade? Enquanto eles peroram na Europa sobre a inviolabilidade santificada da dívida pública, não confiscam na Índia os dividendos dos rajás que haviam investido sua poupança privada nos valores da Companhia [das Índias Orientais]? Enquanto eles combatem a revolução francesa sob o pretexto de defender"nossa santa religião", não proíbem ao mesmo tempo a propagação do cristianismo na Índia para extorquir os peregrinos que afluem aos templos de Orissa e do Bengala, e não tiram proveito do tráfico da morte e da prostituição perpetrada no templo de Jagannatha? Tais são os homens de"Propriedade, Ordem, Família e Religião".

Os efeitos devastadores da indústria inglesa, considerados em relação à Índia, um país tão vasto como a Europa e de uma superfície de 150 milhões de acres, são palpáveis e aterrorizantes. Mas não devemos esquecer que eles não são senão os resultados orgânicos de todo o sistema de produção, tal qual está presentemente constituido. Essa produção repousa sobre a dominação toda poderosa do capitalismo. A centralização do capital é essencial a sua existência enquanto potência independente. A influência destrutiva dessa centralização sobre os mercados do mundo não faz senão revelar, à mais gigantesca escala, as leis orgânicas inerentes à economia política atualmente em vigor em toda cidade civilizada. O período burguês da História tem por missão criar a base material do mundo novo; de uma parte, a intercomunicação universal fundada na dependência mútua da humanidade e os meios dessa intercomunicação; de outra parte, o desenvolvimento das forças produtivas da produção material a partir da dominação científica dos elementos. A indústria e o comércio burgueses criam estas condições materiais de um mundo novo do mesmo modo que as revoluções geológicas criaram a superfície da terra. Quando uma grande revolução social tiver se assenhorado dessas realizações da época burguesa, do mercado mundial e das forças modernas de produção, e os tiver submetido ao controle comum dos povos mais avançados, somente então o progresso humano cessará de parecer com este horrível ídolo pagão que somente quer beber o néctar no crânio de suas vítimas.

O Movimento Revolucionário - Karl Marx

Artigo publicado na Nova Gazeta Renana(Neue Rheinische Zeitung), nº 184, 1/1/49. *Colônia, 31 de dezembro. Jornal editado por Marx durante as revoluções de 48 e 49. Extraído do livro Nova Gazeta Renana: Artigos de Karl Marx. Tradutor: Livia Cotrim. Edição: 1. Ano: 2010. Local: SÃO PAULO. Editora: EDUC


Nunca um movimento revolucionário iniciou com uma abertura tão edificante quanto o movimento revolucionário de 1848. O Papa o abençoou religiosamente, a harpa eólia de Lamartine estremeceu sob a suave melodia filantrópica cujo texto era a Fraternité, a fraternidade entre as partes da sociedade e as nações.

Milhões sejam cingidos
Neste beijo do mundo todo! (Da ode de Schiller “À Alegria”.)

Neste momento o Papa senta-se em Gaëta, expulso de Roma, sob a proteção do tigre idiota Ferdinand, o “Iniciatore” da Itália(1), intrigando contra a Itália com o inimigo mortal hereditário dela, com a Áustria, que ele em seu período feliz ameaçou com a excomunhão. A última eleição presidencial francesa forneceu as tabelas estatísticas(2) à impopularidade de Lamartine, o traidor. Nada mais filantrópico, humano, fraco do que as revoluções de fevereiro e março, na da mais brutal do que as conseqüências necessárias dessa humanidade dos fracos. Testemunhas: Itália, Polônia, Alemanha e, sobretudo, os vencidos de junho.

Com a derrota dos trabalhadores franceses em junho foram, entretanto, vencidos os próprios vencedores de junho. Ledru-Rollin e os outros homens da Montanha(3) foram reprimidos pelo partido dos republicanos burgueses, pelo partido do “National”(4); o partido do “National” pela oposição dinástica(5), Thiers-Barrot, e esta mesma precisou ceder o lugar aos legitimistas(6), como se o ciclo das três restaurações não se tivesse fechado e Luis Napoleão fosse mais do que a urna oca em que os camponeses franceses fizeram sua entrada no movimento social-revolucionário e os trabalhadores franceses depositaram seu voto de condenação a todos os líderes da época passada, Thiers-Barrot, Lamartine e Cavaignac-Marrast. Mas tomemos nota do fato de que a derrota da classe trabalhadora revolucionária francesa trouxe após si, como conseqüência inevitável, a derrota da burguesia republicana francesa, que a abateu agora mesmo.

A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa, foi ao mesmo tempo a nova opressão das nacionalidades que tinham respondido com heróicas tentativas de emancipação ao canto do galo gaulês(7). Polônia, Itália e Irlanda foram mais uma vez saqueadas, violentadas, assassinadas pelos esbirros prussianos, austríacos e ingleses. A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a derrota da classe média em todos as regiões européias em que a classe média, unida por um momento ao povo, tinha respondido com uma revolução sangrenta contra o feudalismo ao canto do galo gaulês. Nápoles, Viena, Berlim! A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a vitória do oriente sobre o ocidente, a derrota da civilização pela barbárie. Na Valáquia começou a repressão dos romanos pelos russos e seus instrumentos, os turcos(8); em Viena os croatas, panduros(9), tchecos, [Sereschaner] e semelhantes lumpensinatos estrangularam a liberdade alemã, e neste momento o czar é onipresente na Europa. A derrubada da burguesia na França, o triunfo da classe trabalhadora francesa, a emancipação da classe trabalhadora em geral é, portanto, a senha para a libertação européia.

Mas o país, a nação inteira transformada em seu proletariado, que com sua imensa pobreza abarcou o mundo inteiro, que com seu dinheiro já uma vez financiou os custos da restauração européia, em cujo seio os conflitos de classe assumiram sua forma mais característica e descarada – a Inglaterra parece ser o rochedo no qual se quebram as ondas revolucionárias, em que a nova sociedade morre de fome já no seio materno. A Inglaterra domina o mercado mundial. Uma transformação das relações econômico-nacionais em todos os países do continente europeu, no continente europeu em seu conjunto sem a Inglaterra, é uma tempestade num copo d’água(10). As relações da indústria e do comércio no interior de cada nação são dominadas por meio de seu intercâmbio com outras nações, são condicionadas por sua relação com o mercado mundial. Mas a Inglaterra domina o mercado mundial, e a burguesia domina a Inglaterra.

A libertação da Europa, seja a insurreição das nacionalidades oprimidas pela independência, seja a derrubada do absolutismo feudal, são, portanto, condicionadas pela insurreição vitoriosa da classe trabalhadora francesa. Mas toda transformação social francesa choca-se necessariamente na burguesia inglesa, no domínio mundial industrial e comercial da Grã-Bretanha. Toda reforma social parcial na França, e no continente europeu em geral, é e permanece, se pretende ser definitiva, um vazio voto piedoso. E a velha Inglaterra só será derrubada por uma guerra mundial, a única que pode oferecer ao partido cartista, o partido organizado dos trabalhadores ingleses, as condições para uma insurreição bem-sucedida contra seu poderoso opressor. Os cartistas à cabeça do governo inglês – só neste momento a revolução social sai do reino da utopia para o reino da realidade. Mas toda guerra européia na qual a Inglaterra seja envolvida é uma guerra mundial. Ela será travada no Canadá como na Itália, na Índia oriental como na Prússia, na África como no Danúbio. E a guerra européia é a primeira conseqüência da revolução vitoriosa dos trabalhadores na França. Como à época de Napoleão, a Inglaterra estará na ponta dos exércitos contra-revolucionários, mas será arremessada pela própria guerra à ponta do movimento revolucionário e resgatará sua dívida com a revolução do século XVIII.

Insurreição revolucionária da classe trabalhadora francesa, guerra mundial – este é o sentido do ano de 1849.


Notas

(1) O Papa Pio IX implementou, logo após sua eleição em 1846, uma série de reformas liberais, para prevenir um crescimento do movimento popular (anistia parcial para presos políticos, abolição da censura prévia etc.). Depois do levante popular em Roma, Pio IX fugiu em 24 de novembro de 1848 na fortaleza Gaëta, no reino de Nápoles.
(2) Nas eleições presidenciais de 10 de dezembro de 1848, Luis Bonaparte recebeu 5.430.000 votos. Lamartine, candidato do partido do “National”, sofreu uma derrota completa. Ele recebeu 17.900 votos e, com isso, ficou em último lugar, atrás de Cavaignac, Ledru-Rollin e Raspail.
(3) Montagne (Montanha) – agrupamento de democratas pequeno-burgueses e republicanos liderado por Ledru-Rollin em torno do jornal “La Réforme”; a ele aderiram os socialistas pequeno-burgueses sob a direção de Louis Blanc. “La Réforme” apareceu em Paris como jornal diário de 1843 a 1850.
(4) Jornal francês, publicado em Paris de 1830 a 1851; nos anos 40 foi o órgão dos republicanos burgueses moderados. O redator-chefe do “National” e líder desse agrupamento político que se apoiava na burguesia industrial e numa parte da inteligência liberal era Armanda Marrast. Jules Bastide foi até 1846 um dos redatores do “National”.
(5) Grupo liderado por Odilon Barrot na Câmara dos Deputados francesa durante a Monarquia de Julho, cujos membros expressavam as opiniões políticas dos círculos liberais da burguesia industrial e comercial e que defendia a realização de uma reforma eleitoral moderada; ele via aí um meio de prevenir a revolução e manter a dinastia Orléans.
(6) Partidários da “legítima” dinastia dos Bourbon, que se manteve no poder na França de 1589 a 1793 e, durante o período da Restauração, de 1814 a 1830; defendiam os interesses dos grandes proprietários hereditários de terra.
(7) Na introdução escrita em 1831 à obra “Kahldorf sobre a nobreza em cartas ao conde M. von Moltke”, diz Heine, considerando a revolução francesa de 1830: “O galo gaulês cantou agora pela segunda vez, e também na Alemanha é dia”.
(8) Em junho de 1849, na Valáquia (Bucarest), depois da fuga do príncipe Bibesko, foi formado pelas forças liberais um governo provisório, o qual esforçou-se por realizar uma série de reformas burguesas e uma constituição segundo o modelo europeu, bem como um acordo com a Turquia. Em conseqüência disso, um corpo de exército russo cruzou o Pruth [?]. Ao mesmo tempo, o governo czarista conseguiu mobilizar a Turquia para também enviar tropas para a repressão do movimento de libertação naquela região. No decorrer de setembro tropas turcas ocuparam a Valáquia e realizaram em Bucareste uma sangrenta prestação de contas com a população.
(9) Croatas – soldados do exército imperial austríaco, cuja cavalaria ligeira e infantaria eram originariamente recrutadas entre os membros desse povo eslavo do sul. Panduros – formações militares do exército imperial austríaco, que apresentavam um tipo específico de tropas de infantaria irregulares e se comportavam de forma extremamente brutal e impiedosa.
(10) Essa comparação plástica para uma grande excitação [emoção, irritação] em um âmbito limitado, que não produz nenhum efeito em conseqüência, foi utilizada por Montesquieu em relação ao tumulto na mini-república San Marino.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Questões acerca da chamada Dialética da Natureza - Gilmar Henrique da Conceição e Jadir Antunes

Texto extraído do site: http://e-revista.unioeste.br/index.php/educereeteducare/article/download/2642/2011

Como principais fontes inspiradoras para o estudo da dialética destacam-se Platão, Hegel, Marx e Heidegger. Neste sentido, merece destaque que o debate subordinado ao tema: “A dialética é apenas uma lei histórica ou é também uma lei da natureza?”, reuniu, em 1961, diversos filósofos e cientistas franceses, cujo resultado foi publicado com o título de Marxismo e Existencialismo. Sartre deu início às discussões apontando que, para ele, tratava-se de saber de que região da realidade surgiu a dialética. De fato, a centralidade dessas discussões está em saber se a dialética é uma lei apropriada ao todo do real (à natureza, à história e ao conhecimento) ou se ela se verifica apenas em um ou em diversos setores da realidade. Ou seja, ela rege todo o real ou é apenas uma lei particular? Entretanto, esta questão torna-se inexequível sem a elucidação prévia de toda esta problemática em bases ontológicas, pois uma coisa é saber a extensão da dialética, isto é se a dialética se aplica à história e se exclui ou não o mundo da natureza. Outra coisa refere-se à gênese, isto é, saber de onde vem a dialética1. As diferenças ônticas somente podem ser respeitadas a partir da diferença ontológica, pela diferença entre o ser e o ente:

Em primeiro lugar, a dialética ôntica, constatável em certos setores da realidade, não constitui um problema que possa ser desvinculado da consideração ontológica da dialética, e, em segundo lugar, se há essa vinculação entre o ôntico e o ontológico, então toda a problemática da dialética deve ser eleborada na perspectiva da história do ser. As questões da dialética não podem ser limitadas à legalidade de um setor particular, por importante que este seja.2

Antes de adentrarmos na discussão focada em Engels e Marx a respeito da “dialética da natureza”, é preciso deixar claro, de antemão, que nem sempre o conjunto do pensamento de Marx é visto de forma dialética. Buscam-se passagens ou frases de uma ou de algumas de suas obras, objetivando ter encontrado o “Abre-te Sézamo” que explicaria o conjunto de seu pensamento. Pensamos, ao contrário, esta chave (não de “explicação”, porém de “abertura”) existe; é a dialética, mas ela somente pode estar no conjunto de seu pensamento e, de modo particular, em O Capital. O que há de dialético em O Capital é a “exposição”. De modo geral, no próprio tratamento dado por vários estudiosos de O Capital, há uma falha metodológica comum, visto que buscaram explicar as crises, por exemplo, a partir da noção empírica de “causa”:

Pensamos que o fracasso de todas as tentativas de encontrar uma explicação coerente e sistemática sobre as crises, em O Capital de Marx, explica-se pelo fato de que nenhum autor, até agora, se propôs a expor o conceito de crise a partir da própria dialética expositiva de O Capital, ou seja, o seu “modo de exposição” (die Darstellungsweise). Conduzidos pelo uso da noção não-dialética de “causa”, os diversos autores que procuraram explicar as crises do capital a partir de Marx se desviaram do âmago do problema, procurando descobrir, afinal, qual era a “verdadeira causa das crises” e em qual passagem de O Capital Marx teria exposto “melhor” ou “de forma mais completa” a sua concepção principal de crise. (ANTUNES, 2008, p. 41).

Outro complicador é que, mesmo quando alguns autores se referem à dialética em Marx, não o fazem sem certos equívocos metodológicos. Ora, se isto ocorre com a obra fundamental de Marx, o que se dirá de outros escritos que se referem à dialética, ou, como argumentam alguns, à dialética da natureza?

A filosofia, de modo geral, constrói um discurso sobre a verdade. Para Marx, na sociedade capitalista, o “engano” e a “aparência” são ontológicos. Para Marx, o que para o ser humano comum é “abstrato”, para ele é “concreto”. Abstrato tem a noção de “isolado” (simples), separado da totalidade. Assim, portanto, como expor esta verdade que parte do abstrato ao concreto?

Marx não vê a essência da realidade no Espírito absoluto, e sim no próprio homem que se produz a si mesmo pela produção dos seus meios de vida. Nesse artigo partimos da hipótese de que, nas obras de Marx, não há um conceito de dialética da natureza, portanto diferindo daquilo que foi exposto por Engels em A Dialética da Natureza3 e no Anti-Dühring4. Como é sabido, nessas duas obras, Engels elaborou a tese de que haveria, nos processos naturais, uma dialética puramente objetiva, que se realizaria sem qualquer intervenção humana. Daí o título de sua obra “dialética da natureza”, pois, para ele, a natureza é a pedra de toque da dialética, entendendo que a natureza se move, em última análise, pelos canais da dialética. Em outras palavras, enquanto em Engels temos a reflexão acerca da dialética da natureza que ocorre de forma inteiramente objetiva, em Marx não observamos um tratamento desta questão, visto que não tratou a natureza como um domínio separado da práxis, ou seja, dos processos de transformação realizados pelos seres humanos por meio de sua atividade produtiva.

Importante observar que falamos, inicialmente, em “prováveis diferenças entre Marx e Engels” pelo fato de que, ainda que haja uma diferença perceptível entre os dois revolucionários e amigos, não é facilmente possível, entretanto, estabelecer uma nítida linha de demarcação entre os pensamentos de Marx e os de Engels, sem um aprofundamento metodológico – o que alimenta a polêmica estabelecida. Esta linha, porém, é buscada ou negada, procurando fundamentá-la num rigoroso trabalho de interpretação, e que tem sido feito por diferentes escolas políticas no âmbito do marxismo, notadamente por autores trotskistas5 (que argumentam no sentido de estabelecer esta linha) e stalinistas (que negam existir esta linha). Claro, sobre isso há enormes divergências no pensamento revolucionário mundial, divergências que se expressam em diferentes partidos políticos e organizações6. Este pequeno artigo insere-se nesta polêmica, cujo esforço está em buscar uma linha de demarcação.

Não ignoramos, todavia, que, por mais que Marx não tenha buscado reflexões semelhantes àquelas realizadas por Engels nas duas obras citadas, ao que parece não é certo assim que ele tenha formulado discordâncias com relação a Engels. Nunca é demais lembrarmos que o próprio Anti-Dühring, obra na qual Engels apresenta o que ele chama de “visão comunista de mundo”, com a sua correspondente dialética da natureza, foi lido e revisto por Marx antes de ser publicado. No Prefácio da segunda edição do Anti-düring, Engels invoca Marx como colaborador de seu livro e informa, inclusive, que o capítulo Sobre a história crítica foi escrito por Marx:

Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro, não conviria que eu publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a história crítica) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu o tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialidade de cada um. (ENGELS, p. 9).

Ao que sabemos, não há, por enquanto, nenhum escrito de Marx publicado, ou mesmo registro em papéis pessoais, que possa explicitar, objetiva e claramente, o que ele pensava a respeito da chamada dialética da natureza. O que, por outro lado, não significa que não possamos conjugar esforços metodológicos, procurando mostrar que, no fundo, há, sim, esta divergência entre os dois autores que queremos salientar.

Entendemos, nesta perspectiva, que, para Marx, parece não haver dialética na natureza nem na relação natural entre o homem e ela, não obstante ele considere haver, sim, transformação e movimento. Ocorre, todavia, que “transformação” e “movimento” não equivalem necessariamente à “dialética”.

O pensamento de Marx é dialético porque é um pensamento do devir, do autodesenvolvimento dos conteúdos e da contradição; porém principalmente por afirmar que o antagonismo é necessário e que é interno a uma totalidade dada (por exemplo: o capital e o trabalho são os dois termos antitéticos de uma mesma realidade, a acumulação capitalista), e porque se originam do próprio movimento de oposição. Dessa maneira, os antagonismos sociais extraem sua superação da própria luta de classes. Marx, portanto, não se preocupa, diretamente, com o ser do espírito ou das coisas.

Em Marx, o conceito de dialética surge como um processo através do qual o ser humano transforma a realidade natural imediatamente dada, e produz, sobre essa base, uma realidade não natural, humanizada. Essa realidade criada pelos seres humanos consiste, portanto, numa superação dialética do dado natural. Nem os objetos naturais nem os homens deixam de ser aquilo que são em sua origem, ou seja, não deixam de ser natureza, apenas adquirem novas formas, que o homem introduz por meio do trabalho.

Dessa maneira, não há contradição nas mudanças de forma ocorridas na natureza. Não há contradição alguma entre a forma líquida e a forma gasosa da água, por exemplo, porque o conteúdo continua o mesmo, porém há contradição quando a essas formas naturais se agrega uma forma social (não natural, portanto), como a forma mercadoria. Sob a forma mercadoria, a água não existe como água em sua determinação natural, mas como água em sua determinação social, isto é, como mercadoria. E, como mercadoria, não importando sua forma natural, ela serve para enriquecer o capitalista, (para “valorizar o valor”, como diz Marx, n’O Capital) e não para cumprir com suas funções naturais.

Podemos observar um par de sapatos ou qualquer outra mercadoria tanto na sua qualidade estática de produto acabado, na sua quieta condição de ser mercadoria nas prateleiras de um supermercado, como também podemos observar esses mesmos objetos também indagando pela inquietude do trabalhador e do trabalho que está contida neles e que dá conta da sua gênese, do seu movimento, do seu vir a ser contraditório. (BENOIT, 1996, p. 15).

As coisas se transformam e se modificam segundo leis naturais e cada transformação é uma afirmação das características que já estão presentes na natureza das coisas. Por exemplo: transformar couro em sapato é uma operação natural do trabalho, mas, transformar o sapato em mercadoria é uma operação artificial, social, que efetivamente nega ao sapato sua natureza de servir como certo “valor de uso” útil aos homens. Dessa maneira, aqui, sim, o trabalho entra em contradição com a natureza, porque ele não possui mais uma finalidade humana e natural. Os seres humanos não cessam de agir no mundo e, simultaneamente, de produzir-se a si próprios.

Nesse sentido, queremos debater a instigante ideia desenvolvida por importantes estudiosos, a de que “o trabalho nega a natureza” ou, mais especificamente, queremos problematizar o “conceito de dialética da natureza de Marx”:

A dialética do trabalho identifica-se com a dialética da natureza. Esse processo dialético desencadeado pela atividade mediadora do homem jamais se interrompe ao longo de toda a história humana. Ele só poderia ser interrompido se o homem deixasse de existir. Enquanto continuar existindo, o homem deverá necessariamente prosseguir realizando a “necessidade natural” do trabalho e, por conseqüência, engendrará o processo que estamos chamando de dialética da natureza. Se a dialética é um processo que ocorre ao longo de toda a história humana, o modo como esse processo ocorre depende do modo como os homens se relacionam entre si. Só é possível compreender concretamente o modo como os homens se relacionam com a natureza quando se compreende o modo como os homens produzem/reproduzem a sua vida material. O trabalho realiza a mediação primária entre o homem e a natureza, mas essa atividade só pode ser realizada no âmbito das mediações secundárias historicamente cambiantes, colocadas pela forma de organização social da vida humana (TSE-TUNG, 2008, p. 3).

Marx dá vários nomes ao trabalho: trabalho produtivo, trabalho determinado, trabalho útil, trabalho particular, trabalho natural. Do nosso ponto de vista, porém, o trabalho não “nega” a natureza. Marx opera com duas noções fundamentais de trabalho em O Capital: “trabalho concreto” e “trabalho abstrato”. O trabalho concreto, a rigor, não “nega” a natureza, apenas modifica suas formas segundo uma necessidade humana. Por exemplo: quando transformamos o boi em couro e este em sapato, não estamos negando a natureza do boi e do couro. Nós estamos, na verdade, afirmando essa natureza do boi e do couro, a de servirem como coisa útil aos homens, a de servirem como calçado para nossa proteção e conforto. Essa relação natural, mediada pelo trabalho concreto do sapateiro, entre homem e natureza, não é dialética porque não existe contradição nela. A modificação do boi em sapato não se opõe à natureza do boi, pois não há aí um elemento negativo que retira do boi sua natureza de servir como coisa útil ao homem. Ao contrário: essa modificação apenas afirma o boi como coisa natural útil ao homem.

Extrair do boi suas qualidades úteis para satisfazer uma necessidade humana não constitui uma contradição no sentido filosófico da palavra, como ocorre, por exemplo, quando o camponês emprega o boi como animal de tração. Esse emprego não nega ao boi sua condição de animal de tração. Muito pelo contrário. O trabalho do camponês estaria apenas empregando o animal dentro das possibilidades comportadas pela sua própria natureza enquanto boi. A contradição estaria, sim, caso usássemos o próprio homem, em lugar do boi, como animal de tração, como ocorria no mundo antigo. Aqui, o escravo era empregado como animal de tração e como propriedade de um senhor.

Como diziam os antigos, o escravo não se diferenciava em natureza com os animais de tração, podendo, segundo eles, ser, por isso, empregados como instrumentos de trabalho. Nesse caso, sim, haveria uma contradição, pois o trabalhador, ao invés de sujeito do trabalho, teria sido convertido em objeto e instrumento vivo dele. No mundo antigo há uma contradição viva no seio da própria sociedade, e não no interior da natureza. No interior da natureza, antes da intervenção das relações de trabalho fundadas na divisão em classes, não há contradição. A contradição se instaura quando a ordem natural se modifica segundo uma outra ordem, a ordem fundada na vontade humana.

O que significa o conceito de troca material em Marx? Para responder a essa primeira questão, argumenta-se que este conceito busca designar o sistema de trocas que ocorre no interior de uma totalidade: a natureza. Para Marx, a natureza é o conjunto da realidade, é o todo que inclui tanto o homem como a realidade extra-humana, tanto a natureza não apropriada pelo homem como aquela que ele transformou. Enfim, a natureza é a totalidade do mundo sensível, do qual o homem faz parte.

Em que consiste a troca do homem com a natureza? Para responder a essa segunda questão, argumenta-se que, em primeiro lugar, o que o homem troca com a natureza são “mediações”. O homem só pode conservar a sua existência por meio da natureza. É através da natureza que o homem obtém tanto os meios de subsistência imediatos como os meios de realização de sua atividade produtiva. No entanto, é apenas através do homem que a natureza chega à consciência de si mesma e alcança um nível superior de seu desenvolvimento.

Em segundo lugar, essa troca se dá num nível imediatamente fisiológico, como uma simples troca de elementos entre as sociedades humanas e o meio natural. O homem se apropria dos elementos da natureza e após o seu consumo os devolve à natureza. O caráter imediatamente fisiológico desse conceito de troca material torna-se evidente na crítica de Marx acerca da separação entre a cidade e o campo, típica das sociedades dominadas pelo capital, onde ele vê sensivelmente alterado a troca material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano sob a forma de alimentos e de vestuário, violando assim a eterna condição natural da fertilidade permanente do solo.

Frente a tais afirmações, queremos colocar uma indagação: É possível, entretanto, existir troca entre homem e natureza? Para Marx, a superação da realidade criada pelo homem consiste numa superação do dado natural, numa Aufhebung da natureza. Inicialmente, porém, devemos esclarecer que o conceito de troca material, ainda que seja possível interpretá-lo, é, todavia, um conceito que Marx jamais formulou explicitamente. Além disso, em alemão há duas palavras para se referir à troca: Austausch ou apenas Tausch (que Marx geralmente emprega como troca no sentido econômico) e Wechsel, que, na cultura alemã, possui um sentido não econômico e mais geral. Marx esclarece que ele está usando o termo Wechsel entre homem e natureza neste sentido genérico. É neste sentido que ele emprega o termo Stoffwechsel (Stoff = matéria) que pode ser melhor traduzido como metabolismo. Em O Capital, na passagem onde Marx cita Pietro Verri7, está assim: “um den Stoffwechsel zwischen Mensch und Natur” – “metabolismo entre homem e natureza”.

Observe-se, portanto, que essa referência ao italiano Verri encontra-se exatamente na parte em que Marx estuda o caráter natural do trabalho, o chamado trabalho concreto. Este aspecto do trabalho é ainda um aspecto abstrato, pois não possui realidade histórica, e serve apenas para demonstrar o conflito que existe entre o caráter do trabalho na sociedade capitalista, voltado para a valorização do valor, e o caráter do trabalho natural, como trabalho criador de valores de uso destinados a satisfazer uma necessidade humana. Marx chama a este trabalho concreto de “eterna necessidade natural do homem e de mediação do metabolismo (Stoffwechsel = e não da troca) entre ele e a natureza”. Esta passagem se encontra no parágrafo anterior à citação de Pietro Verri. Inclusive, Marx diz, no trecho da citação, que, ao proceder como a natureza, o homem apenas “muda” (sem negar no sentido dialético) as “formas” da matéria. Claro está que, na natureza, há movimento e transformação e claro está que o trabalho modifica a natureza segundo suas necessidades, mas essa transformação e esse movimento não são dialéticos porque não são contraditórios, porque há apenas mudanças de forma e não de conteúdo. O conteúdo é sempre o mesmo: a matéria natural. Apenas a forma é que se modifica, de boi em couro e de couro em sapato, porém, ao transformar o sapato em mercadoria, então há, sim, uma negação dialética, pois aí ocorre uma mudança de conteúdo do trabalho e do sapato.

Agora o sapato serve apenas como mercadoria e como meio de valorização do valor. A mercadoria nega ao sapato sua condição natural de sapato e o converte em “portador do valor de troca”, em meio de se obter dinheiro e não conforto e proteção para os pés. A contradição não está entre o sapato e a natureza bruta, mas, sim, entre o sapato e a forma mercadoria. Neste esquema, o sapato funciona como a forma natural do trabalho e a mercadoria funciona como a forma social dele. A contradição que existe é entre a forma natural e a forma social do trabalho, entre o sapato como valor de uso e o sapato como mercadoria, como valor de troca.

Para existir contradição é necessário mais que uma oposição entre dois termos. É necessário que esta oposição se realize no interior de uma unidade cindida. Quando o sapateiro transforma a natureza (o boi, em nosso caso) em sapato, em coisa útil destinada à satisfação de uma necessidade humana, mesmo que esta necessidade não seja a do próprio sapateiro, há, sim, uma unidade entre homem e natureza, mas não há oposição entre ambos. Esta relação permanece restrita ao âmbito da unidade porque permanece fixada no interior da ordem natural. A ordem natural das coisas comporta, sem refutar, o trabalho humano voltado às satisfações. A contradição se instaura quando esta unidade originária entre homem e Natureza se cinde em uma oposição. Desta oposição surge a diferença e, daqui, a contradição. Quando o produto do trabalho não se destina mais a satisfazer as necessidades do produtor direto ou da comunidade natural à qual ele pertence e passa a satisfazer as necessidades de uma segunda figura, estranha à ordem natural das coisas, como são as figuras do não trabalhador e das classes dominantes, então se instaura a contradição no seio da comunidade, antes inexistente.

A natureza não comporta, em seu seio, a figura do não trabalhador, daquele que se apropria de seus frutos sem a mediação do trabalho. A figura do não trabalhador é uma figura que está em contradição com a ordem natural, pois como admitir, sem cairmos em contradições, que o trabalho é o fundamento natural da riqueza (“o pai da riqueza”, como dizia Marx – já que a Natureza seria “a mãe”) se há homens que enriquecem sem trabalhar? Essa contradição não pertence à ordem da natureza, mas ao contrário, ela é uma violação da ordem natural. Esta comporta o enriquecimento do trabalhador e da comunidade a partir da transformação dos recursos naturais pelo trabalho, mas não o empobrecimento de ambos em detrimento do enriquecimento do não trabalhador. Na ordem natural não é possível enriquecimento que não seja mediado pelo trabalho. Na ordem humana, porém, tudo ocorre ao contrário. A contradição existiria, assim, no interior desta segunda ordem e na relação entre ambas.

Existiria contradição no interior da ordem humana porque agora aquele que trabalha diretamente se empobrece com o próprio trabalho. Existiria contradição entre ordem natural e ordem social porque agora esta segunda ordem vê na Natureza não mais uma fonte de recursos destinada à satisfação humana, mas, sim, uma fonte destinada a ser transformada em riqueza. Caso o produto do trabalho for uma mercadoria, então toda a finalidade da sociedade será a de transformá-lo em dinheiro: a forma irracional da riqueza. A sociedade trabalhará, assim, para satisfazer esta necessidade artificial e não natural.

O dinheiro se contrapõe diretamente a todas as formas naturais da riqueza porque, com ele, nenhuma necessidade pode ser satisfeita diretamente. Voltemos ao nosso exemplo do sapato. Este representa a forma natural e útil da riqueza. O dinheiro representa a forma social e não útil da riqueza. Não podemos satisfazer nossa necessidade de vestir os pés com dinheiro, como sabemos. Somente o sapato pode nos satisfazer, contudo, na sociedade capitalista, o trabalho não é organizado segundo nossas necessidades naturais, como a de proteger os pés, mas, sim, segundo nossas necessidades sociais, ou seja, segundo a necessidade de tudo ser transformado em dinheiro. Aquilo que não puder ser transformado em dinheiro não será produzido e tudo o que for produzido terá por meta ser transformado em dinheiro. Essa é a base irracional e contraditória da ordem social. Numa ordem baseada na natureza, tudo ocorreria de modo contrário. Toda a produção seria destinada ao consumo e à satisfação das necessidades. Por isso, seria incorreto conceber que entre homem e natureza haveria troca, mesmo que seja uma troca natural.

Entre homem e natureza, visto evidentemente de um ponto de vista abstrato, existe um intercâmbio que Marx chama de metabolismo (Stoffwechsel). Troca (Austausch), no sentido restrito da palavra, há apenas no interior da sociedade. Troca é sempre intercâmbio de mercadorias, seja por dinheiro ou diretamente por outra mercadoria. Stoffwechsel, assim, é um termo que desconhece a noção de contradição, enquanto Austausch é um termo carregado de sentido contraditório.

Assim, para Marx, não existe uma relação de “troca” entre homem e natureza. A troca é um fenômeno econômico e por isso um artifício humano. Pensamos que, na base desta ideia de que há “troca” na natureza (mesmo que não seja uma troca econômica, evidentemente), se esconde uma antiga ideia dos Economistas Clássicos, dos chamados fisiocratas especialmente, de que as leis econômicas do capitalismo seriam as mesmas encontradas na natureza. Os fisiocratas foram uma das primeiras escolas de economia surgidas a partir da crise das concepções mercantilistas. A própria etimologia da palavra pode nos indicar algo interessante: Fisio = natureza e crata = forma de governo. Desse modo, para os fisiocratas, as leis que governavam a sociedade e as trocas capitalistas eram as mesmas que governavam a physis (natureza). Apesar de Marx usar o termo troca algumas vezes para referir-se à relação entre homem e natureza, o termo mais apropriado seria metabolismo entre homem e natureza. Trocas só existem entre homens e não entre homem e natureza.

A antítese que nega o boi como coisa natural útil ao homem está no fato de que, na sociedade capitalista, o sapato se converte em mercadoria e o trabalho concreto do sapateiro adquire uma segunda propriedade: a de ser trabalho abstrato. Como mercadoria, o sapato e o trabalho do sapateiro estarão em contradição com a natureza útil do boi, do couro e do sapato, porque agora o sapato não tem mais como meta servir a uma necessidade natural do homem (a de proteger seus pés da natureza), mas, sim, a de enriquecer o capitalista. Aqui, efetivamente, há uma antítese entre homem e natureza, porque agora o boi não é mais convertido em sapato para satisfazer uma necessidade natural do homem, mas, sim, para satisfazer uma necessidade social e artificial: a de valorizar o valor e de enriquecer o capitalista.


Considerações finais

Em razão do exposto acima, não pensamos que haja em O Capital uma dialética do trabalho, nem dialética da natureza. O esquema triádico de Hegel de tese-antítese-síntese não se aplica inteiramente a Marx. Em Hegel temos um sistema fechado onde as contradições geralmente possuem um termo final, mas em Marx as contradições nunca se resolvem de modo verdadeiro. Elas apenas se ampliam sem se resolverem. É a conversão do sapato em mercadoria que cria a contradição e esta nunca se resolve inteiramente na sociedade capitalista porque o sapato (como todos os demais valores de uso) sempre continuará a existir como mercadoria.

A última palavra ainda não foi dada sobre esta polêmica, e provavelmente não será jamais possível isto ocorrer. Infelizmente, Marx anunciou que iria escrever um texto sobre a dialética, mas nunca pode realizá-lo, todavia escreveu um texto chamado Contribuição à Crítica da Economia Política8, texto no qual expõe algumas ideias acerca da dialética. Neste texto, ele pensa a dialética como procedimento de análise da realidade que parte do concreto-empírico e, através da abstração, chega ao concreto-pensado, reconstituindo a realidade no pensamento. O processo de abstração assume importância fundamental neste contexto e as principais categorias da dialética são: abstrato, concreto, totalidade, determinação fundamental, entre outras.

Como argumentamos ao longo deste artigo, Engels apresentou uma outra visão de dialética, retomando alguns aspectos da dialética hegeliana, inclusive a tese de que existem “leis na natureza e na sociedade”, que também seriam as “leis do pensamento”. Engels retomou de Hegel a perspectiva de que a dialética é a história do espírito, das contradições do pensamento que ela repassa ao ir da afirmação à negação. Em alemão, aufheben significa “supressão” e, ao mesmo tempo, significa “manutenção” da coisa suprimida. De forma que aquilo que é negado permanece no interior da totalidade. Esta contradição não é apenas do pensamento, mas da realidade, já que ser e pensamento são idênticos. Observemos as palavras de Engels, no Prefácio à segunda edição do Anti- Düring:

Tratava-se de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos – sobre o conjunto eu não tinha dúvidas, - de que, na natureza, se imporem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemetne fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo ao fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, lcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. (ENGELS, 1979, p. 11).

Mais adiante, Engels acrescentou que Marx e ele estiveram certamente sozinhos na tarefa de salvar da filosofia idealista alemã a dialética consciente para integrá-la na concepção materialista da natureza e da história.

Disso tudo resulta para nós que, ainda que Marx tenha tomada conhecimento desta ideias de Engels, como afirmamos inicialmente, preferiu entretanto restringir suas investigações e conclusões tão somente à ontologia do ser social, ao passo que, em Engels, há a extensão para uma ontologia geral e universal. Engels, assim como toda a tradição posterior que se apoiou na falsa ideia de que haveria contradição e movimento (no sentido dialético) no interior da ordem natural, parte de uma ideia filosófica de natureza muito semelhante às concepções de Hegel e de Spinosa. Estes, procurando explicar os movimentos da sociedade e da natureza a partir de uma visão unitária e filosófica, entendiam que as leis da natureza não se diferenciavam em seus fundamentos da ordem divina e racional.

Hegel, como cristão e racionalista, acreditava que o Absoluto se manifestava tanto na terra quanto no céu, ou seja, acreditava que as leis da natureza e da sociedade eram apenas diferentes maneiras de realização do mesmo Absoluto. Para Hegel, só uma lei governava o universo (humano e natural): as leis do Absoluto, que muitas vezes se confundia com o próprio Deus cristão. Spinosa, aparentemente menos idealista que Hegel e que mais tarde seria recuperado por Althusser e sua “escola”, também entendia que não haveria duas ordens distintas e opostas se contrapondo no universo. Sua visão panteísta e monista da vida também acreditava que o mundo era uma unidade perfeita e que as leis da natureza não se opunham às leis humanas e sociais. Ou seja, o problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. O monismo de ambos, no fundo, acreditava que a ordem da natureza era tão espiritual quanto a ordem humana.

Com a falsa ideia de que Marx apenas haveria invertido Hegel de cabeça para cima, foi relativamente fácil para Engels e sua “escola”, então, argumentar que haveria uma dialética da matéria e que esta dialética seria a mesma da sociedade e do capitalismo. Na base da concepção de que a história ocidental seria explicada pelo desenvolvimento espontâneo e “dialético” das forças produtivas materiais – e não pela luta de classes – está a concepção de Engels sobre a dialética da matéria. Foi a partir desta concepção que Althusser chegou à conclusão de que a história ocidental teria sido sempre uma “história sem sujeito”, já que tudo é “matéria” e tudo se explica a partir de suas leis supostamente objetivas.

Ao que parece, esta concepção engelsiana de dialética também foi desenvolvida por Lênin, Stálin9, Mao Tse-Tung10, entre outros, e se tornou hegemônica graças ao domínio da social-democracia e do stalinismo, mas foi profundamente criticada por pensadores inspirados no trotskismo, especialmente.

Como é sabido, Lenin desenvolveu suas ideias filosóficas sobre a dialética, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo11, respaldado em Engels e Plekhánov, de modo particular nos dois livros já citados de Engels (A Dilalética da Natureza e Anti-Düring):

Com efeito, para o Anti-Düring, Engels valeu-se de pesquisas que já realizara com vistas a A Dialética da Natureza. Esta problemática obra, que permaneceu inconclusa, cujos materiais só foram inteiramente publicados em 1925 e cujo paralelo, na história do marxismo, pode ser encontrado no trabalho de Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo (1909) [...] concebe o marxismo como já ocorrera no Anti-Düring, como uma concepção de mundo e pretende lançar as bases de uma ontologia materialista. [..] Do projeto, tal como ele nos chegou, resulta a conclusão de que as formas gerais do movimento do ser são dialéticas – mas, resulta, ainda, uma tácita identificação entre a dialética operante na natureza e a dialética do ser social. Daí a problemáticidade do penbsamento engelsiano; porque, se não parece discutível a dialética da natureza, é pertinente o debate acerca da homologia que, nos seus esboços, Engels dá a impressão de afirmar, entre esta dialética e o movimento do ser social. (NETTO,1981, p. 44).

Esta profícua polêmica continuou posteriomente com os escritos dos já citados Jean-Paul Sartre12 e Louis Althusser13, bem como com os de Lucien Goldmann14, entre outros, gerando muitas questões interessantes. Finalmente, ainda que não seja possível tratar aqui, não podemos deixar de, ao menos, mencionar uma terceira tendência que parece se configurar, no interior desta polêmica sobre a dialética, e que se encontra em Karl Korsch15, Anton Pannekoek16, Ernest Bloch17, entre outros, que procuram refutar a existência do chamado materialismo dialético ao colocar a dialética como basicamente um “instrumento heurístico” (Korsch) e que não existem “leis” e que “matéria” não constitui “objetos físicos”, e sim relações sociais concretas (Pannekoek).

O nosso dizer sobre a dialética é sempre menor do que o ser da dialética. Em razão disso, considerando que estamos frente a um tema complexo, visto que os autores definem e inerpretam a dialética de diferentes maneiras, queremos concluir perguntando pelo ser da dialética ou mais precisamente: – Até que ponto se pode dizer o ser da dialética?

Sem dúvida, não se poderia definir o ser da mesma forma como se define este ou aquele ente. O ser não é integralmente redutível ao discurso; muito mais, o discurso pressupõe o ser: há discurso porque há ser. Porque o ser é, pode o homem falar e definir; o discurso acolhe o ser. Disso se pode inferir que o ser da dialética em algum sentido transcende a dialética. O ser seria algo como o princípio de possibilidade da dialética. (BORNHEIN, 1977, p. 153).


Referências
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---. Análise crítica da teoria marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
ANTUNES, Jadir; BENOIT, Hector. A exposição dialética do conceito de crise em O Capital. Revista Mais Valia 2, março-junho 2008.
BENOIT, A. Hector R. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, n. 03, 1996.
BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
BORNHEIN, Gerd. A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977
CONCEIÇÃO, G. H. Partidos políticos e educação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000.
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---. Anti-Düring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
LENIN, W. Materialismo e empireocriticismo. Rio de Janeiro: Mandacaru, 1986.
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---. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes,1983.
NETTO, José Paulo. Introdução. In: FERNANDES, Florestan (Org.); NETTO, J. P. (Coord.).
Friedrich Engels: política. São Paulo: Ática, 1981. (Grandes Cientistas Sociais).
PANNEKOEK, Anton. Lênin filósofo. Buenos Aires: PYP, 1970.
PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Coleção Os Pensadores).
SARTRE, Jean Paul. Crítica da razão dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
STALIN, J. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo: Global, 1982.
TSE-TUNG, Mao. Sobre a contradição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Disponível em: . Acesso em: 29 jun.2008.


Notas
1 BORNHEIN, Gerd A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977. p. 8-9.
2 BORNHEIN, Gerd A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977, p. 10.
3 ENGELS, Friedrich. A Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
4 ENGELS, Friedrich. Anti-Düring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
5 ANTUNES, Jadir, BENOIT, Hector. A Exposição Dialética do Conceito de Crise em O Capital. Revista Mais Valia 2, março-junho 2008.
6 CONCEIÇÃO, G. H. Partidos políticos e educação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000.
7 VERRI, Pietro. “Meditazioni sulla economia política”. Nesta edição dos economistas italianos supervisionada por Custodi, impressa em 1771, v. XV, p. 21-22. In: MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Livro I, p. 65, nota 13.
8 MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
9 STALIN, J. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo: Global, 1982.
10 TSE-TUNG, Mao. Sobre a contradição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
11 LENIN, W. Materialismo e empireocriticismo. Rio de Janeiro: Mandacaru, 1986.
12 SARTRE, Jean Paul. Crítica da razão dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
13 ALTHUSSER, L. Materialismo histórico e materialismo dialético. São Paulo: Global, 1986. Disponível em: . Acesso em: 23. out. 2008.
14 GOLDMANN, Lucien.Ciências humanas e filosofia. O que é a sociologia? São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
15 KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
16 PANNEKOEK, Anton. Lênin filósofo. Buenos Aires: PYP, 1970. A visão de Pannekoek da Revolução Russa é a de que ela se caracterizou por ser uma “contra-revolução burocrática” que criou um regime denominado por ele como Capitalismo de Estado.
17 BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Glosas Críticas Marginais - Karl Marx

Glosas Críticas Marginais ao Artigo "O Rei da Prússia e a Reforma Social". De um prussiano.
Karl Marx
7 de Agosto de 1844

Publicado originalmente no jornal Vorwärts, nºº 63, sete de agosto de 1844. Extraído do elo: http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/08/07.htm


O jornal Vorwärts, nº 60, contém um artigo intitulado: O rei da Prússia e a reforma social, assinado: "Um prussiano".

O assim chamado prussiano começa referindo-se ao conteúdo da ordem do gabinete do rei da Prússia sobre a insurreição dos trabalhadores silesianos e à opinião do jornal francês La Refórme sobre a ordem do gabinete prussiano.

La Refórme entende que a ordem do gabinete foi motivada pelo "terror e pelo sentimento religioso"" do rei. E até descobre nesse documento o pressentimento das grandes reformas que ameaçam a sociedade civil. O "prussiano" ensina ao Refórme nestes termos:

"O rei e a sociedade alemã não chegaram ainda ao pressentimento de sua reforma" e menos ainda as insurreições silesiana e boêmia deram origem a tal sentimento. É impossível, para um país não-político como a Alemanha, compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e muito menos que representa um problema para o conjunto da sociedade. Para os alemães, esse acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso o rei o considera como um defeito de administração ou de assistência. Por esse motivo e também porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões, a demolição das fábricas e das máquinas não incute "terror", nem ao rei, nem às autoridades. Além do mais, a ordem do gabinete nem sequer foi ditada pelo sentimento religioso: trata-se de uma sóbria expressão da arte política cristã e de uma doutrina que não deixa subsistir nenhuma dificuldade diante do seu único remédio, "a boa disposição dos corações cristãos". Miséria e crime são duas grandes calamidades: quem poderá repará-las? O Estado e as autoridades? Não, mas, ao contrário, a união de todos os corações cristãos".

O suposto prussiano nega o "terror" do rei, entre outras coisas, porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões.

Ora, em um país no qual banquetes com brindes liberais e espuma liberal de champanhe - lembre-se a festa de Dusserdorf - provocam uma ordem do gabinete real pela qual não houve necessidade de um só soldado para acabar com os anseios de liberdade de imprensa e de constituição de toda a burguesia liberal; em um país em que a obediência passiva está na ordem do dia; em um tal país não seria um acontecimento e um acontecimento aterrorizante ter que recorrer à força armada? Considere-se ainda o fato de que os frágeis tecelões saíram vencedores no primeiro choque. Apenas mediante consideráveis reforços de tropas é que foram vencidos. A revolta de uma massa de trabalhadores é por acaso menos perigosa pelo fato de não ser necessário um exército para sufocá-la? Que o inteligente prussiano compare a revolta dos tecelões silesianos com as revoltas dos operários ingleses e os tecelões silesianos lhe parecerão tecelões fortes.

Partindo da relação geral da política com os males sociais, poderemos esclarecer porque a revolta dos tecelões não podia infundir nenhum "terror" particular ao rei. Por ora seja suficiente isto: a revolta não era dirigida diretamente contra o rei da Prússia, mas contra a burguesia. Como aristocrata e monarca absoluto, o rei da Prússia não pode amar a burguesia; menos ainda se pode aterrorizar se a sua submissão e a sua impotência forem acrescidas de relações tensas e difíceis com o proletariado. Além do mais: o católico ortodoxo é mais hostil ao protestante ortodoxo do que ao ateu, assim como o legitimista é mais hostil ao liberal do que ao comunista. Não porque o ateu e o comunista tenham mais afinidade com o católico e o legitimista, mas porque eles são mais estranhos do que o protestante e o liberal, uma vez que se situam do lado de fora do seu círculo. Enquanto homem político, o rei da Prússia tem, na política, o seu antagonista direto no liberalismo. Para o rei, o antagonismo com o proletariado existe tão pouco quão pouco o rei existe para o proletariado. O proletariado já deveria ter alcançado uma força decisiva para sufocar as antipatias, os antagonismos e atrair sobre si a total hostilidade da política. Por último: para o bem conhecido caráter do rei, desejoso de coisas interessantes e significativas, devia constituir de fato uma surpresa agradavelmente excitante o fato de encontrar no seu território aquele "interessante" e "tão falado" pauperismo, e com isso uma ocasião para fazer com que falassem novamente de si. Como deve ter-lhe sido agradável a notícia de que ele já possuía o seu "próprio" real pauperismo prussiano.

O nosso "prussiano" é ainda mais infeliz quando nega que o "sentimento religioso" seja a fonte da ordem do gabinete real. Por que o sentimento religioso não é a fonte dessa ordem de gabinete? Porque é "uma muito sóbria expressão da arte política cristã", uma "sóbria" expressão da doutrina que "diante do seu único remédio, a boa disposição dos corações cristãos, não deixa subsistir nenhuma dificuldade".

O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã? Não se funda no sentimento religioso uma doutrina que possui o seu remédio na boa disposição dos corações cristãos? Uma expressão sóbria do sentimento religioso deixa de ser uma expressão do sentimento religioso muito cheio de si, muito apaixonado aquele que procura o "remédio para os grandes males" na "união dos corações cristãos", negando-o ao "Estado e às autoridades". É um sentimento religioso muito apaixonado aquele que - segundo admite o "prussiano" - particulariza todo o mal na falta de sentido cristão, remetendo as autoridades ao único meio para reforçar este sentido, à "exortação". A disposição cristã é, segundo o "prussiano", o objetivo da ordem do gabinete. É claro que, quando não é sóbrio, ele se considera o único bem. Lá onde descobre males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem, também é somente ele que pode produzir o bem. A ordem do gabinete, ditada pelo sentimento religioso, dita por sua vez, como conseqüência, o sentimento religioso. Um político com sentimento religioso sóbrio, na sua "perplexidade", nunca procuraria o seu "auxílio" na "exortação do piedoso pregador ao sentimento cristão".

Como demonstra, então, o suposto prussiano, ao Réforme, que a ordem do gabinete não é uma emanação do sentimento religioso? Apresentando sempre a ordem do gabinete como uma emanação do sentimento religioso. Pode-se esperar que uma mente tão ilógica seja capaz de penetrar nos acontecimentos sociais? Ouçamos um pouco as suas conversas sobre as relações da sociedade alemã com o movimento dos trabalhadores e com a reforma social em geral.

Distingamos aquilo que o "prussiano" negligencia, distingamos as diferentes categorias que são compreendidas na expressão "sociedade alemã": governo, burguesia, imprensa, enfim os próprios trabalhadores. Essas são as diferentes massas todas juntas e, todas em massa. Para ele, a sociedade alemã nem sequer chegou ainda a pressentir a sua reforma.

Por que lhe falta esse instinto?

"Num país não-político como a Alemanha", responde o prussiano, "é impossível compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e menos ainda que é um dano para o conjunto da sociedade. Para os alemães, o acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso, o rei o considera como um 'defeito de administração e de assistência'."

O "prussiano" explica então essa concepção invertida da miséria dos trabalhadores, através da peculiaridade de um país não-político.

Admitir-se-á que a Inglaterra seja um país político. Admitir-se-á, além do mais, que a Inglaterra seja o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Por isso, o exame da Inglaterra é a experiência mais segura para conhecer-se a relação de um país político com o pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se limita aos distritos industriais, mas se estende aos agrícolas. Aqui, os movimentos não estão numa fase inicial, mas acontecem periodicamente há quase um século.

Como, então, concebem o pauperismo a burguesia inglesa e o governo e a imprensa a ela ligados?

Na medida em que a burguesia inglesa admite que o pauperismo é uma responsabilidade da política, o whig considera o tory e o tory o whig a causa do pauperismo. Segundo o whig, o monopólio da grande propriedade fundiária e a legislação protecionista contra a importação de cereais são a fonte principal do pauperismo. Segundo o tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a causa na política em geral, pelo contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário; porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade.

A expressão mais clara da interpretação inglesa do pauperismo - referimo-nos sempre às opiniões da burguesia inglesa e do governo inglês - é a economia política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação econômica nacional inglesa.

Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que conhece a situação atual e deve ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade burguesa, um discípulo do cínico Ricardo, MacCulloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa preleção pública, em meio a manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia:

"O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu juízo, progrida pouco a pouco e supere um depois do outro os obstáculos que impedem como montanhas o curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro, onde a natureza se expõe diante dos olhos em toda a sua beleza e onde, por meio de uma senda em cômodo declive, pode-se descer até os últimos detalhes da prática".

Bom ar puro a atmosfera pestilencial das habitações nos pardieiros ingleses! Grande beleza da natureza os fantasiosos trapos com que se vestem os pobres ingleses e a carne mirrada e enrugada das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que jazem no esterco; os abortos provocados pelo excesso de trabalho no uniforme mecanismo das fábricas! E os graciosíssimos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a forca!

Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular, mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e sem graça.

Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo Recent measures for he promotion of education in England, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Com efeito, por falta de educação o que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí a sua rebelião. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês, abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade das instituições políticas e sociais".

A tal ponto chega a desconsideração da burguesia inglesa e de sua imprensa pelo pauperismo, por esta epidemia nacional da Inglaterra.

Admitamos, porém, que sejam fundadas as recriminações que o nosso "prussiano" faz à sociedade alemã. Será que o motivo reside na situação não-política da Alemanha? Conduto, se a burguesia da não-política Alemanha é incapaz de tomar consciência da importância universal de uma miséria parcial, a burguesia da política Inglaterra é capaz de desconhecer a importância universal de uma miséria universal, de uma miséria que evidenciou a sua importância universal, tanto através do seu retorno periódico no tempo como através da sua difusão no espaço e também através do fracasso de todas as tentativas de remediá-la.

O "prussiano" atribui ainda à situação não-política da Alemanha o fato de que o rei da Prússia encontre a causa do pauperismo numa falha de administração e de assistência, os meios contra o pauperismo.

Por acaso, será exclusivo do rei da Prússia este modo de ver? Dê-se uma rápida olhada à Inglaterra, o único país no qual se pode falar de uma grande ação política contra o pauperismo.

A atual legislação inglesa sobre a pobreza data da lei contida no Ato 43 do governo de Elisabeth. Em que consistem os meios desta legislação? Na obrigação imposta às paróquias de socorrer os seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na beneficiência legal. Essa legislação - a assistência por via administrativa - durou três séculos. Depois de longas e dolorosas experiências, quais são as posições do parlamento no seu Amendment Bill de 1834?

Antes de mais nada, o assustador aumento do pauperismo é atribuído a uma "falha de administração".

Por isso, a administração do imposto para os pobres, constituída por empregados das respectivas paróquias, é reformulada. São constituídas Uniões de cerca de vinte paróquias, unidas em uma única administração. Um comitê de funcionários - Board of Guardians - eleitos pelos contribuintes, reúne-se em um determinado dia na sede da União e avalia os pedidos de subsídio. Esses comitês são dirigidos e supervisionados por delegados do governo, da Comissão Central da Somerset House, o ministério do pauperismo, segundo a precisa definição de um francês. O capital de que essa administração cuida quase equivale à soma que a administração militar custa na França. O número de administrações locais que dependem dela chega a quinhentas e cada uma dessas administrações locais, por sua vez, ocupa, pelo menos, doze funcionários.

O parlamento inglês não se limitou à reforma formal da administração.

Segundo ele, a causa principal da grave situação do pauperismo inglês está na própria lei relativa aos pobres. A assistência, o meio legal contra o mal social, acaba favorecendo-o. E quanto ao pauperismo em geral seria, de acordo com a teoria de Malthus, uma eterna lei da natureza:

"Uma vez que a população tende a superar incessantemente os meios de subsistência, a assistência é uma loucura, um estímulo público a miséria. Por isso, o Estado nada mais pode fazer do que abandonar a miséria ao seu destino e, no máximo, tornar mais fácil a morte dos pobres".

A essa filantrópica teoria, o parlamento inglês agrega a idéia de que o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores são culpados, e ao qual portanto não se deve prevenir como uma desgraça, mas antes reprimir e punir como um delito.

Surgiu, assim, o regime das workhouses, isto é, das casas dos pobres, cuja organização interna desencoraja os miseráveis de buscar nelas a fuga contra a morte pela fome. Nas workhouses, a assistência é engenhosamente entrelaçada com a vingança da burguesia contra o pobre que apela à sua caridade.

Como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo aumento do pauperismo, não a necessária conseqüência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres. Ela entendeu a miséria universal unicamente como uma particularidade da legislação inglesa. Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, deste modo, neles punida.

A lição geral que a política Inglaterra tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi configurando-se como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma administração ramificada e bastante extensa, uma administração, no entanto, que não tem mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo. Essa administração renunciou a estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe, com ternura policial, um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial. Bem longe de ultrapassar as medidas de administração e de assistência, o Estado inglês desceu muito abaixo delas. Ele já não administra mais do que aquele pauperismo que, em desespero, deixa agarrar-se e prender-se.

Até agora, portanto, o "prussiano" não mostrou nada de particular no comportamento do rei da Prússia. Mas, por que, exclama o rei com rara ingenuidade: "Por que o rei da Prússia não determina imediatamente a educação de todas as crianças abandonadas? Por que se dirige antes às autoridades, esperando seus planos e projetos?"

O inteligentíssimo prussiano se tranqüilizará quando souber que o rei da Prússia é, nisso, tão pouco original quanto o é no resto das suas ações e que, pelo contrário, trilhou o único caminho que o chefe de um Estado pode trilhar.

Napoleão queria acabar de um golpe com a mendicância. Encarregou as suas autoridades de preparar planos para a eliminação da mendicância em toda a França. O projeto demorava: Napoleão perdeu a paciência, escreveu ao seu ministro do interior, Crétet, e lhe ordenou que destruísse a mendicância dentro de um mês, dizendo:

"Não se deve passar sobre a terra sem deixar traços que relembrem à posteridade a nossa memória. Não me peçam mais três ou quatro meses para receber informações; vocês têm funcionários jovens, prefeitos inteligentes, engenheiros civis bem preparados, ponham ao trabalho todos eles; não fiquem modorrando no costumeiro trabalho de escritório".

Em poucos meses tudo estava terminado. No dia cinco de julho de 1808 foi promulgada a lei que reprime a mendicância. Como? Por meio dos depósitos, que se transformaram em penitenciárias com tanta rapidez que bem depressa o pobre chegava aí exclusivamente pela estrada do tribunal da polícia correcional. E, no entanto, naquele tempo, o senhor Noailles du Gard, membro do corpo legislativo, exclamava:

"Reconhecimento eterno ao herói que assegura à necessidade um lugar de refúgio e à miséria os meios de subsistência. A infância não será mais abandonada, as famílias pobres não serão mais privadas de recursos, nem os operários de estímulo e ocupação. Nos pas ne seront plus arrêtés par l'image dégoûtante des infirmités et de la honteuse misère".

O último cínico período é a única verdade desse panegírico.

Mas, se Napoleão se dirigia ao discernimento dos seus funcionários, prefeitos e engenheiros, por que não o rei da Prússia às suas autoridades?

Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a pergunta do "prussiano": Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas as crianças abandonadas? Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada menos que a eliminação do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo.

A Convenção teve, por um momento, a coragem de determinar a eliminação do pauperismo, não certamente "de modo imediato", como o "prussiano" exigiria do seu rei, mas depois de haver encarregado o seu Comitê de Salvação Pública de elaborar os planos e as propostas necessários, e depois que esse utilizou os amplos levantamentos da Assembléia Constituinte sobre as condições da miséria na França e propôs, através de Barère, a fundação do Livre de la bienfaisance nationale etc.. Qual foi a conseqüência da determinação da Convenção? Que houvesse uma determinação a mais no mundo e que um ano depois mulheres esfomeadas cercassem a Convenção.

E, no entanto, a Convenção era o máximo da energia política, da força política, e do intelecto político.

Assim, de modo imediato, sem um acordo com as autoridades, nenhum governo do mundo tomou medidas a respeito do pauperismo. O parlamento inglês chegou até a mandar, a todos os países da Europa, comissários para conhecer os diferentes remédios administrativos contra o pauperismo. Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da administração e da assistência.

Pode o Estado comportar-se de outra forma?

O Estado jamais encontrará no "Estado e na organização da sociedade" o fundamento dos males sociais, como o "prussiano" exige do seu rei. Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado.

O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.

Finalmente, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exatamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado.

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga - fracas antíteses clássicas - não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo de traficantes, hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que murmuram contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as conseqüências necessárias dessa liberdade.

Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. O período clássico do intelecto político é a Revolução francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais, os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das más condições políticas. Deste modo, Robespierre vê na grande miséria vê na grande miséria e na grande riqueza um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais. Não é preciso argumentar mais contra a insensata esperança do "prussiano", segundo a qual o "intelecto político" é chamado a descobrir as raízes da miséria social na Alemanha.

Foi loucura não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e Napoleão juntos tiveram; foi loucura exigir dele um modo de ver do qual o inteligente "prussiano" está pelo menos tão longe quanto o seu rei. Toda essa declaração foi ainda mais insensata na medida em que o "prussiano" nos confessa:

"As boas palavras e as boas disposições são baratas, o que é caro são a perspicácia e as ações eficazes; neste caso, elas são mais do que caras, estão muito longe da possibilidade de efetivação".

Se estão muito longe da possibilidade de efetivação, imagine-se quem, então, a partir daí tentar alcançar o possível. No mais, deixo a critério do leitor julgar se, neste caso, a linguagem mercantil, de cigano, na base do "barato", "caro", "mais do que caro", "longe da possibilidade de efetivação", possa ser incluída na categoria das "boas palavras" e das "boas disposições".

Suponhamos, porém, que as observações do "prussiano" sobre o governo alemão e sobre a burguesia alemã - esta última está, sem dúvida, compreendida na sociedade alemã - tenham pleno fundamento. Será que essa parte da sociedade é mais irrefletida na Alemanha do que na Inglaterra ou na França? Pode-se ser mais irrefletido do que na Inglaterra, onde a irreflexão foi erigida em sistema? Se, hoje, em toda a Inglaterra pipocam manifestações de trabalhadores, é porque a burguesia e o governo locais não estão hoje mais lúcidos do que no último trintênio do século dezoito. Seu único juízo é a força material e uma vez que a força material decresce na mesma medida em que cresce a extensão do pauperismo e a consciência do proletariado, do mesmo modo aumenta, em proporção geométrica, a irreflexão inglesa.

Enfim é falso, efetivamente falso, que a burguesia alemã desconheça inteiramente a importância geral da revolta silesiana. Em várias cidades, os mestres artesãos procuram associar-se aos aprendizes. Todos os jornais liberais, os órgãos da burguesia liberal, estão repletos de referências à organização do trabalho, à reforma da sociedade, à crítica aos monopólios e à concorrência etc.. Tudo isso em conseqüência dos movimentos dos trabalhadores. Os jornais de Tréveris, Aquisgrana, Colônia, Wesel, Mannheim, Breslau e até de Berlim trazem freqüentemente artigos sociais facilmente compreensíveis, dos quais o "prussiano" pode até aprender alguma coisa. Mais ainda, em cartas da Alemanha se exprime constantemente o espanto diante da fraca resistência da burguesia contra as tendências e idéias sociais.

O prusiano - se tivesse maior familiaridade com a história dos movimentos sociais - teria formulado a sua pergunta ao contrário. Por que também a burguesia alemã vê na miséria parcial uma miséria relativamente tão universal? De onde provém a animosidade e o cinismo da burguesia política, de onde provém a falta de resistência e as simpatias da burguesia não-política para com o proletariado?

Vamos agora aos oráculos do "prussiano" sobre os trabalhadores alemães.

"Os Alemães pobres", graceja, "não são mais inteligentes do que os pobres alemães, quer dizer, não enxergam nada além do seu lar, da sua fábrica, do seu distrito; até agora toda a questão está ainda abandonada pela alma política que penetra em tudo".

Para poder comparar a situação dos trabalhadores alemães com a situação dos trabalhadores franceses e ingleses, o "prussiano" deveria comparar a primeira etapa, o início do movimento dos trabalhadores franceses e ingleses com o movimento alemão que começou agora. Mas ele negligencia isto. Deste modo, o seu raciocínio cai em obviedades, como essa de que a indústria na Alemanha ainda não está tão desenvolvida como na Inglaterra, ou então de que um movimento no seu início se apresenta diferente do que numa etapa posterior. Ele gostaria de falar das particularidades do movimento dos trabalhadores alemães. No entanto, não diz uma palavra a respeito desse assunto.

Que o "prussiano" se situe, pois, do ponto de vista correto. Verá que nenhuma das revoltas dos operários franceses e ingleses teve um caráter tão teórico e consciente como a revolta dos tecelões silesianos.

Lembre-se, antes de mais nada, a canção dos tecelões, aquela audaz palavra-de-ordem de luta na qual lar, fábrica e distrito não são mencionados uma vez sequer e na qual, pelo contrário, o proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este caráter superior. Não só são destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o banqueiro, o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta de trabalhadores ingleses foi conduzida com tanta coragem, reflexão e duração.

No que concerne à condição ou à capacidade cultural dos trabalhadores alemães em geral, remeto aos geniais escritos de Witilng, os quais, sob o aspecto teórico, muitas vezes ultrapassam o próprio Proudhon, embora permaneçam aquém dele no que se refere à forma. Onde poderia a burguesia - incluídos os seus filósofos e eruditos - exibir uma obra igual à de Weitilng: Garantien der Harmonie und Freiheit, relativa à emancipação da burguesia, à emancipação política? Caso se compare a insossa e tola mediocridade da literatura política alemã com essa enorme e brilhante estréia literária dos operários almães; caso se compare esse gigantesco calçado de criança do proletariado com a disforme pequenez do gasto calçado político da burguesia alemã, deve-se prognosticar para a Cinderela alemã uma figura de atleta. Deve-se admitir que o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o seu economista e o proletariado francês o seu político. Deve-se admitir que a Alemanha tem uma vocação tão clássica para a revolução social quanto é incapaz de uma revolução política. Com efeito, assim como a impotência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, assim a disposição do proletariado alemão - ainda que prescindindo da teoria alemã - é a disposição social da Alemanha. A desproporção entre o desenvolvimento filosófico e o desenvolvimento político na Alemanha não é nenhuma anormalidade. É uma desproporção necessária. Somente no socialismo pode um povo filosófico encontrar a sua práxis correspondente e, portanto, somente no proletariado o elemento ativo da sua libertação.

Mas, nesse momento, não tenho nem tempo nem disposição para explicar ao "prussiano" a relação da "sociedade alemã" com a revolução social, e, a partir dela, de um lado a fraca reação da burguesia alemã contra o socialismo e, de outro, as excelentes disposições para o socialismo do proletariado alemão. Ma minha Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel (Deutsch-Franzosische Jahrbucher), ele encontrará os primeiros elementos para compreender esse fenômeno.

A inteligência dos alemães pobres está, portanto, em uma relação inversa com a inteligência dos pobres alemães. No entanto, pessoas para as quais qualquer assunto deve servir para exercícios públicos de estilo, vêem-se levadas, através dessa atividade formal, a um conteúdo equivocado, equivocado, por sua vez, imprime novamente à forma o selo da banalidade. Deste modo, a tentativa do "prussiano", em uma ocasião como essa das revoltas dos operários silesianos, de expressar-se na forma de antíteses, leva-o à maior antítese contra a verdade. A única tarefa de uma mente pensante e amiga da verdade frente à primeira explosão da revolta dos trabalhadores silesianos, não consistia em desempenhar o papel de pedagogo desse acontecimento, mas, pelo contrário, em estudar o seu caráter peculiar. Para isto, requer-se, antes de mais nada, uma certa perspicácia científica e um certo amor pela humanidade, ao passo que, para a outra operação, é suficiente uma fraseologia ligeira, embebida em uma complacência vazia.

Por que o "prussiano" julga com tanto desprezo os trabalhadores alemães? Porque ele acha que toda a questão - isto é, a questão da miséria dos operários - está abandonada "ainda até hoje" pela "alma política que penetra tudo". Eis como ele vai derramando o seu amor platônico pela alma política:

"No sangue e na incompreensão serão sufocadas todas as revoltas que explodem nesse desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais; mas logo que a miséria tiver gerado o intelecto e o intelecto político dos alemães tiver descoberto as raízes da miséria social, então também na Alemanha esses acontecimentos serão percebidos como sintomas de uma grande mudança".

Permita-nos o "prussiano", antes de mais nada, uma observação estilística. Sua antítese está incompleta. Na primeira metade, diz-se: a miséria gera o intelecto e na segunda metade: o intelecto político descobre as raízes da miséria social. O intelecto simples, na primeira metade da antítese, torna-se, na segunda metade, um intelecto político, como a miséria simples da primeira metade da antítese torna-se, na segunda, uma miséria social. Por que motivo o nosso estilista tratou de maneira tão desigual as duas metades da antítese? Não creio que tenha notado isso. Vou mostrar-lhe o seu verdadeiro instinto. Se o "prussiano" tivesse escrito: "A miséria social gera o intelecto político e o intelecto político descobre as raízes da miséria social", nenhum leitor atento teria deixado de perceber a falta de sentido dessa antítese. Todo mundo se teria perguntado, antes de mais nada, por que o anônimo não opõe o intelecto social à miséria social e o intelecto político à miséria política, como manda a lógica mais elementar. Mas vamos ao que interessa!

Tão falso é que a miséria social gere o intelecto político, como mais verdadeiro é antes o contrário, isto é, que o bem-estar social gera o intelecto político. O intelecto político é um espiritualista e é concedido a quem já possui e desfruta das comodidades. Que o nosso "prussiano" ouça, a esse propósito, um economista francês, o senhor Michel Chevalier:

"No ano de 1789, quando a burguesia se sublevou, para ser livre faltava-lhe apenas a participação no governo do país. Para ela, a libertação consistiu em arrebatar das mãos dos privilegiados que tinham o monopólio dessas funções, a direção dos negócios públicos, as mais altas funções civis, militares e religiosas. Sendo rica e ilustrada, podendo bastar-se e dirigir-se a si mesma, ela queria subtrair-se ao régime du bon plaisir".

Já demonstramos ao "prussiano" quanto o intelecto político é incapaz de descobrir a fonte da miséria social. Apenas mais uma palavra sobre essa sua concepção. Quanto mais evoluído e geral é o intelecto político de um povo tanto mais o proletariado - pelo menos no início do movimento - gasta suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue. Uma vez que ele pensa na forma da política, vê o fundamento de todos os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e na derrocada de uma determinada forma de Estado. Demonstração: as primeiras revoltas do proletariado francês. Os operários de Lyon julgavam perseguir apenas fins políticos, ser apenas soldados do socialismo. Deste modo, o seu intelecto político lhes tornou obscuras as raízes da miséria social, falseou o conhecimento dos seus objetivos reais e, deste modo, o seu intelecto político enganou o seu instinto social.

Mas se o "prussiano" acha que a miséria gera o intelecto, por que então coloca junto os "sufocamentos no sangue" e os "sufocamentos na incompreensão"? Se a miséria é, em geral, um meio, a miséria sangrenta será então um meio muito agudo para gerar a compreensão. Portanto, o "prussiano" deveria ter dito: o sufocamento em sangue sufocará a incompreensão e trará à compreensão uma oportuna lufada de ar.

O "prussiano" prognostica o sufocamento das revoltas que irrompem no "desesperado isolamento dos homens da comunidade e na separação de suas idéias dos princípios sociais".

Já demonstramos que a revolta silesiana de modo nenhum se realizou num estado de separação entre as idéias e os princípios sociais. Temos agora que nos haver com o "desesperado isolamento dos homens da comunidade". Por comunidade se deve entender aqui a comunidade política, o Estado. É sempre a velha cantilena da não-politicidade da Alemanha.

Por acaso não rebentam todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do homem da comunidade? Será que qualquer revolta não supõe necessariamente esse isolamento? Teria havido a revolução de 1789 sem o desesperado isolamento dos cidadãos franceses da comunidade? Ela estava destinada exatamente a suprimir esse isolamento.

Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado é uma comunidade inteiramente diferente e de uma outra extensão que a comunidade política. Essa comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho, é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana. A essência humana é a verdadeira comunidade humana. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório, do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita quanto infinito é o homem em relação ao cidadão e a vida humana em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito.

O "prussiano" fecha dignamente o seu artigo com esta frase:

"Uma revolução social sem alma política (isto é, sem uma visão organizativa do ponto de vista da totalidade), é impossível".

É óbvio. Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque - mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial - ela é um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a essência humana. Ao contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder. O seu ponto de vista é aquele do Estado, de uma totalidade abstrata, que subsiste apenas através da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual do homem. Por isso, uma revolução com alma política organiza também, de acordo com a natureza limitada e discorde dessa alma, um círculo dirigente na sociedade às custas da sociedade.

Gostaríamos de confidenciar ao "prussiano" o que é "uma revolução social com uma alma política"; com isso também lhe revelamos o segredo de porque ele não consegue, mesmo nos seus torneios estilísticos, elevar-se para além do limitado ponto de vista político.

Uma revolução "social" com uma alma política ou é um completo absurdo, se o "prussiano entende por revolução "social" uma revolução "social" contraposta a uma revolução política e apesar de tudo confere à revolução social uma alma política, além de social, ou, então, uma "revolução social com uma alma política" não é mais do que uma paráfrase do que já se chamou uma "revolução política" ou "simplesmente uma revolução". Toda revolução dissolve a velha sociedade; neste sentido é social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido é política.

Que o "prussiano" escolha entre a paráfrase e o absurdo! Contudo, se é parafrásico ou absurdo uma revolução social com uma alma política, é racional, ao contrário, uma revolução política com uma alma social. A revolução em geral - a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações - é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político.

Toda essa prolixidade foi necessária para rasgar o tecido de erros que se esconde em apenas uma coluna de jornal. Nem todos os leitores podem ter a cultura e o tempo necessários para perceber uma tal charlatanice literária. Não tem, portanto, o "prussiano", diante do público leitor, o dever de renunciar momentaneamente a qualquer atividade de escritor no campo político e social, bem como às declamações sobre a situação da Alemanha, e de começar um consciencioso exame da sua própria situação?