segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A Restauração Capitalista na China - Marcos Margarido

Texto extraído da revista Marxismo Vivo disponível em: https://www.archivoleontrotsky.org/revista.php?revista=6969&p=26

A China assombra o mundo com seu desenvolvimento econômico acelerado. A esse respeito, o presidente chinês, Hujintao declarou, por ocasião do 17° Congresso do Partido Comunista da China (PCCh). “Há trinta anos: a Repúbfica Popular da China iniciava sua experiência de abertura e reformas. lniciada em 1978, são opções cruciais que determinam o destino da China contemporânea. Trouxe mudanças históricas para a China socialista”. O objetivo deste artigo é mostrar que tais mudanças históricas foram o último ato da burocracia chinesa em direção à restauração capitalista.


Uma situação de instabilidade social

Em novembro de 1978, paralelamente à disputa no interior do PCCh pela sucessão de Mao, entre o “reformista” Deng Xiaoping e Hua Guofeng(1), surgiu um movimento de vanguarda nas principais cidades da China, dedicado à renovação democrática do sistema social e político chinês. O Movimento Democracia era formado basicamente pela juventude operária e estudantil da chamada “geração perdida” criada pela Revolução Cultural(2). O movimento expressava-se através dos dazíbao - jornal mural - colados no Muro da Democracia e de vários jornais e boletins de grupos políticos e literários, que reuniam milhares de pessoas diariamente na Praça Tiananmen.

Paralelamente a este processo de florescimento teórico - baseado em sua grande maioria no marxismo - um grande número de camponeses famintos de todas as partes da China começou a chegar a Beijing, além da volta ilegal de estudantes que haviam sido enviados para o campo para sua “reeducação” e exigiam a regularização de seus vistos de residência. Em janeiro de 79 uma grande demonstração em Beijing exigia o ñm da fome e da opressão, democracia e direitos humanos. Em fevereiro, a principal estrada de ferro de Xangai foi bloqueada pelos estudantes sem vistos. Estes movimentos unificaram-se nas mobilizações e na autodefesa. Sempre que um líder era preso, as publicações do Movimento Democracia saiam em sua defesa e realimentavam as lutas.

Inicialmente o setor de Deng, que no inicio de 78 havia lançado o “movimento para emancipação da mente”, tolerava o Movimento Democracia e utilizava-se dele para reforçar a disputa interna no partido. Mas, tão logo sua posição foi vencedora no 3° Plenário do Comitê Central em dezembro e as mobilizações foram ampliadas, começou a caracteriza-lo como uma ameaça à “estabilidade e à unidade”(3). A partir de abril de 79, quando algumas publicações começaram a questionar o próprio Deng, os ativistas começaram a ser presos e sentenciados a penas que chegavam a 15 anos de prisão. Em outubro o Muro da Democracia foi fechado. Ao mesmo tempo, uma sombra de liberdade democrática foi lançada, ao se aprovar eleições para os órgãos locais do Congresso Nacional do Povo.

Foi nesse cenário que Deng Xiaoping passou a executar uma politica de “abertura ao mundo ocidental” para enfrentar a grave crise econômica e política que se abatia sobre o país, após dez anos de caos social provocado pela Revolução Cultural.


As quatro modernizações

Deng inicia as “mudanças históricas para a China socialista” com uma nova teoria, que passaria a ser considerada pelo PCCh uma continuidade do pensamento maoísta. Trata-se, em resumo, da condenação da luta de classes como o motor da história e a superação do primeiro estágio do socialismo, por meio do desenvolvimento das forças produtivas, numa sociedade harmoniosa onde todos; operários, camponeses e “empreendedores” fazem parte da classe trabalhadora.

Em termos práticos foram aplicadas medidas conhecidas como as “quatro modernizações” - da agricultura, da indústria, das Forças Armadas, da ciência e tecnologia. O objetivo oñcial era fortalecer 0 socialismo através de alguns mecanismos de mercado para dinamizar a economia, instituindo o chamado “socialismo de mercado”.

Estas medidas foram comparadas à Nova Política Econômica (NEP), implementada pelos bolcheviques na URSS em 1921, quando foram adotadas medidas de caráter capitalista na esfera da distribuição, principalmente a compra de alimentos e matérias primas para a indústria em substituição à requisição forçada do período de “comunismo de guerra”. Mas as bases fundamentais do Estado operário - propriedade coletiva dos meios de produção, planejamento centralizado e controle estatal do comércio exterior - foram mantidas.

Na China, as medidas adotadas em 1978 tiveram o objetivo de fortalecer a economia capitalista à custa das bases socialistas do Estado. Foram criadas quatro zonas Econômicas Especiais na região costeira do sul a partir de investimentos estrangeiros, onde foi eliminado o controle estatal do comércio exterior. As comunas rurais foram díssolvidas com a introdução do sistema de responsabilidade familiar e o estabelecimento de um mercado agrícola. Junto à dissolução das comunas, aprova-se a criação das Empresas Municipa.is Rurais, as EMR, que empregavam mais de 100 milhões de assalariados rurais no início dos anos 90.

As medidas do desenvolvimento industrial visavam atrair o investimento estrangeiro, ampliando os laços com o imperialismo iniciados na visita de Nixon em 1972, quando este concedeu o status de “nação mais favorecida” à China e suspendeu o embargo comercial. Mas a restauração capitalista começou pelo campo, por ser o setor preponderante do ponto de vista econômico e populacional. O aumento e liberação dos preços agrícolas e a criação das EMR foram fundamentais para o surgimento de uma nova burguesia a partir dos camponeses ricos e da burocracia convertida ao capitalismo. A famosa palavra de ordem “enriquecer é glorioso”, lançada por Deng em 1978, era o principal guia para a ação destes setores.

As medidas capitalistas foram estendidas ao setor urbano em 1985, com o corte das despesas públicas e da descentralização das decisões, obrigando os governos locais a atrair investimentos privados através do estabelecimento de parcerias, fusões, fechamento de empresas estatais e da transferência de ativos ao capital privado“(4). Em 1987 é adotado o sistema de “contratos”, que permitiu às empresas estatais negociar diretamente com o estrangeiro. Ao mesmo tempo, aprova-se o fim das restrições ao tamanho das empresas privadas e a Lei de Quebra em 1988, que punha fim à garantia de emprego vitalício da classe operária chinesa. O conjunto destas ações amplia a participação do setor privado na produção industrial.

No campo acontece 0 mesmo. Embora a terra continuasse propriedade estatal, em 1986 foi aprovada a Lei de Gestão do Solo, autorizando-se o arrendamento de terras por trinta anos, e ampliado para sessenta em 1988. Finalmente, a transferência do arrendamento é legalizada em 1991, configurando-se um mercado privado de compra e venda de concessões.

Todos estes ataques foram respondidos apenas com ações esporádicas pela classe operária chinesa. Em primeiro lugar, porque a população rural aprovou a retomada da atividade econômica no campo, e em segundo porque Deng Xiaoping afirmou o respeito absoluto ao que foi chamado de quatro princípios; a) seguir o caminho do socialismo, mas aprendendo com a experiência dos países capitalistas, b) manter a “ditadura democrática do povo”, c) manter a liderança do Partido Comunista e d) preservar os pensamentos de Marx, Lenin e Mao. A restauração estava sendo feita em nome do marxismo.

Porém, as leis do mercado levaram ã inflação galopante, ao desemprego nas cidades e à desigualdade social, que atingia níveis inimagináveis. O preço de uma refeição nos novos restaurantes privados era equivalente ao salário anual de um operário chinês. Para enfrentar as dificuldades econômicas, que levariam à redução do crescimento do PIB, de 12% em 1988 para 4% em 1989 e 1990, o governo anunciou em maio de 1988 a liberação geral dos preços. Isto provocou pânico e importantes tumultos sociais, que culminaram com a revolta na Praça Tiananmen.


O massacre de Tiananmen

Em 21 de abril de 1989 os estudantes da Universidade de Beijing rebelam-se. Lançam um rnanifesto com reivindicações democráticas; pelo fim da repressão, por liberdade de expressão e de imprensa e denunciam a corrupção e enriquecimento ilícito dos membros do partido.

Surgem também as primeiras organizações independentes de trabalhadores, as “gongzilian”. Em 21 de maio, a Federação Autônoma Operária de Beijing divulga um comunicado exigindo liberdade de organização, participação nas decisões políticas e econômicas, controle dos operários sobre o Partido Comunista e controle operário das empresas estatais. Após a repressão que se abateu sobre o movimento, Han Dongfang, operário ferroviário e fundador da Federação, foi preso e expulso para Hong Kong em 1993.

No auge do movimento, entre 17 e 22 de maio, metalúrgicos da siderúrgica de Beijing, carteiros, condutores e outras categorias entraram em greve. Pela Praça Tiananmen, centro político e organizativo do movimento, passavam diariamente de 1 a 2 milhões de pessoas. No dia 20 de maio é decretada a Lei Marcial, e em 4 de junho acontece a invasão dos tanques à Praça e a morte de um número incerto de manifestantes, que pode ter chegado a milhares em todo o país.

A resistência mantida por mais alguns dias não foi capaz de reverter o quadro. Os estudantes, a vanguarda do movimento, não conseguiram combinar suas exigéncias por democracia com as reivindicações operárias e camponesas, como o fim do desemprego, aumento de salários e 0 fim da carestia. Deng Xiaoping, que desde a visita de Kissinger em 1971 colaborava com o imperialismo, acusou os estudantes de... serem ferramentas do imperialismo norte-americano e da CIA.


A consolidação da restauração

Com a derrota da resistência ao projeto restauracionista, a burocracia pôde avançar de maneira decisiva. Em setembro de 1989 aplica a liberação de preços que havia tentado antes. Em outubro de 1992, o 14° Congresso do PCCh elimina os setores proibidos para o investimento privado, deixando claro a necessidade de “desenvolver as diversas formas de propriedade (estatal e privada) lado a lado”. As burocracias locais passam a fazer todos os tipos de concessões ao capital, e se aproveitam para tornarem-se sócios dos novos negócios. As empresas estatais reduzem sua participação na economia, de 73% em 1988 para 35% em fins da década de 1990.

Mas o principal motor da recuperação econômica foi o ataque à classe operária. Em 1994 foi aprovada a Lei Trabalhista, que irnplanta o trabalho assalariado, o fim do controle do regime de emprego e desvincula a seguridade social do Estado, acabando com as conquistas operárias da revolução - o sistema conhecido como “tigela de ferro” - emprego vitalício, seguridade social e aluguel subsidiado. A educação e saúde são privatizadas.

A economia chinesa, já completamente integrada ao mercado internacional, enfrentaria sua primeira crise de superprodução em 1999. O governo chinês consegue ameniza-la através do financiamento estatal às empresas e do aumento de sua divida externa, que sofre um crescimento de 27% em 2001. Ainda assim, houve uma queda de 2% nas exportações e de ll,4% nos investimentos estrangeiros, mas o PIB manteve-se com um crescimento médio anual de 8% no período 1998-2002.

O maior peso da crise foi descarregado sobre os trabalhadores e as empresas estatais que, sem condições de concorrer com o capital privado, entram em bancarrota. A capacidade produtiva ociosa das empresas chegou a 40%, gerando 40 milhões de demissões. No campo, as EMR abrem falência em massa, pois dependiam muito das encomendas estatais. O fim destas empresas e a concentração de terras geraram 250 rnilhões de “sem-terras” e o êxodo de 100 a 150 milhões de camponeses para as cidades, formando um gigantesco exército industrial de reserva, chamado de “população flutuante”, que pressiona ainda mais a já enfraquecida classe operária das empresas estatais.

Sem emprego no campo e sem visto de residência nas cidades devido ao sistema “hukou”, que os torna ilegais em seu próprio país, os rnigrantes aceitam empregos por salários mais baixos e sem direitos sociais. Trabalham em média 13 horas a mais por semana e recebem metade do salário dos operários estatais. Além disso, a praga da terceirização atinge a classe operária chinesa. O emprego irregular (precário, informal, temporário, etc.) abriu 80 milhões de vagas de 1990 a 2002. No mesmo período, o emprego regular gerou apenas 1,7 milhão de postos.(5)

Surgem, assim, dois movimentos operários paralelos e separados. De um lado a classe operária tradicional das estatais, que está sendo desintegrada, de outro um novo setor, nos estados do sul do país, a partir dos migrantes do campo. Os primeiros lutam contra a perda de emprego e de suas conquistas sociais, enquanto os trabalhadores das empresas privadas protestam contra as condições de trabalho degradantes e o gerenciamento despótico.


A resistência operária

Um dos maiores símbolos do primeiro caso foi a luta dos trabalhadores da região de Daking, o principal centro produtor de petróleo do país e símbolo da construção socialista da China. Em março de 2002, 50 mil petroleiros saíram às ruas por seus direitos sociais e salários não pagos e ocuparam o Escritório de Administração de Petróleo por uma semana, enquanto outros 30 mil trabalhadores metalúrgicos de Liaoyang, na mesma região, saíam às ruas em mobilizações que duraram três meses.

As manifestações estenderam-se às províncias de l-Ieilongjiang, Liaoning, Sichuan e Hebei, com bloqueios de estradas, piquetes e passeatas para exigir cesta básica para aposentados e a demissão de funcionários corruptos e incompetentes. O movimento acaba com concessões parciais e a prisão de cinco líderes do movimento, que haviam iniciado a construção de um sindicato independente, o SindicatoProvisório dos Operários de Daking, antes das ações de março, indicando que estas não foram espontâneas.” (6)

Entre a nova classe operária, os exemplos são numerosos e espantosos. A indústria da construção civil vive um “boom” com a construção de estradas, shopping-centers, residências e as instalações para as Olimpíadas, mas os trabalhadores chegam a ficar um ano sem receber seus salários. Apenas em Beijing, a dívida salarial dos empresários chegou a cerca de US$ 300 milhões em 2002. Mesmo as empresas a serviço do Estado deixam de paga-los. Por exemplo, os operários da construção de uma linha de metrô para as Olimpiadas entraram em greve após seis meses sem receber. (7)

Nas fábricas a situação não é diferente. Os trabalhadores da Aigao Electronics de Dongguan entraram em greve contra o aumento do preço da refeição, que é descontado de seus salários, em dezembro de 2007. Quando tentaram sair para uma manifestação, foram atacados por centenas de policiais e cães.

Na Eletrônica Feihuan, fábrica alemã de componentes para celulares, metade das 10 mil trabalhadoras fizeram greve contra a ameaça de não receber se não atingissem as metas de produção, em agosto de 2007. Por ñm, os operários da fábrica de móveis DeCoro entraram em greve contra 0 espancamento de dez de seus companheiros pelos chefes italianos, uma humilhação, quando reclamaram da redução dos salários de outubro de 2005.

Estes são apenas alguns exemplos da luta da classe operária chinesa, embora fragmentada e sempre violentamente reprimida, com a prisão dos líderes e o desmantelamento dos sindicatos independentes. Sua magnitude se expressa nas estatísticas oficiais. Segundo o Ministério de Segurança Pública, “incidentes de massa, demonstrações ou rebeliões chegaram a 74 mil em 2004, das 10 mil há uma década, e 58 mil em 2003”. Em 2005, 4 milhões de chineses participaram de 78 mil protestos.(8)

Segundo Han Dongfang, atuahnente editor do China Labour Bulletin, na Foz do Rio Pérola acontecem conflitos envolvendo fábricas com mais de mil trabalhadores pelo menos uma vez por dia. “Estas greves são auto-organizadas, não pertencem ao sindicato oficial”, disse Han em janeiro deste ano. Nesta região, onde é fabricado um terço dos produtos de exportação chineses, os operários quebram ou perdem 40 mil dedos por ano.” (9)


Olimpíadas e terremoto: o amortecedor e o acelerador da insatisfação social

A realização das Olimpíadas de Beijing em agosto deste ano tem contribuído para amortecer a tensão existente na China. Em primeiro lugar pelo boom na construção civil, que absorve temporariamente os milhões de migrantes da “população flutuante” das cidades. Em segundo lugar pela gigantesca propaganda do governo chinês, criando um clima de unidade nacional e patriotismo. Dessa forma, denúncias como o trabalho escravo de jovens e crianças em olarias clandestinas de Dongguan não tiveram a mesma repercussão que a denúncia de fato semelhante ocorrido em Shanxi no ano passado.

Por outro lado, o terremoto de 12 de maio deste ano na região rural de Sichuan pode ter o efeito contrário. O número oficial de mortos é de 69127, com a destruição de 15 milhões de residências. O governo destinou USS 2 bilhões para as regiões atingidas e determinou um corte de US$ 10 bilhões do orçamento anual, insuficientes para cobrir as perdas estimadas em US$ 20 bilhões.

O desabamento de sete mil escolas, causando a morte de pelo menos dez mil crianças, chocou a população. Suspeita-se de construção com material de segunda, já que outros edifícios públicos não sofreram tais danos. Os pais exigem a confirmação das suspeitas, mas não encontram nenhum respaldo legal.

Por outro lado, a comunidade financeira internacional comemorou o fato da região não ser industrializada e contribuir com apenas 4,2% do PIB nacional. Sichuan “é uma província importante em termos populacionais e agrícula, mas sua parcela na produção industrial é relativamente pequena”, disse Sun Mingchun, economista da Lehman Brothers.


A inflação dos alimentos

Toda esta situação agrava-se com a manutenção de uma alta taxa de inflação e baixos salários. O Índice de Preços ao Consumidor teve um crescimento anual de 8,5% em abril deste ano, com um aumento de 21% no preço dos alimentos e 30,9% para o petróleo. Em fevereiro a inflação chegou a 8,7% anuais, a mais alta Estudos desde 1996. (10)

O salário, por sua vez, está entre o mais baixo do mundo. Em 2004 era de USS 0,6 por hora em média, vinte vezes menor que o salário nos Estados Unidos, dezesseis vezes menor que da Coréia do Sul e metade ao do Brasil. Para conter os protestos, autoridades regionais anunciam reajustes salariais, como na província de Guangdong. No entanto, os porta-vozes do capital rejeitam tais medidas, como Chen Xingdong do BNP Paribas, que declarou: “um aumento salarial certamente contribuirá para o aumento da inflação”.

Os índices de crescimento da China continuam imbatíveis, mantendo-se em 9,7% em média, de 2001 a 2006, e continua o país mais atraente para os investimentos estrangeiros. Em maio houve um aumento de 38% em relação a maio de 2007. O superávit da balança comercial alcançou US$ 378 bilhões em 2007.

Mas a economia chinesa atualmente é bastante dependente das exportações - responsáveis por 30% do PIB. Com a queda de consumo nos Estados Unidos, atingidos pelo estouro da bolha imobiliária e o aumento do desemprego, os primeiros sintomas já se fazem sentir na China. O índice de crescimento econômico caiu de 11,7% no primeiro quadrimestre do ano passado para 10,6% neste ano. A produção industrial também foi reduzida de 18,3% para 16,4% no mesmo período. As exportações sofreram uma queda bem maior, de 6,4% em relação aos quatro primeiros meses de 2007.

Segundo Li Xiaochao, do Instituto Nacional de Estatísticas, "face as incertezas do crescimento econômico, precisamos estar preparados para evitar tanto quedas bruscas do crescimento quanto a alta sustentada dos preços”. Esta preparação traduz-se numa política de arrocho, com o anúncio da elevação do depósito bancário compulsório para impedir o crescimento da inflação, cuja meta para 2008 é de 4,8%.“

A renda e o consumo familiares vêm sofrendo uma queda ao longo dos anos - de 25% entre 1988 e 2006 - e tais medidas indicam a manutenção desta tendência, já que os baixos salários são o principal atrativo aos investimentos privados e a fonte da competitividade dos produtos chineses em todo o mundo. Se somarmos a todos estes ingredientes o aumento da dívida externa chinesa, que passou de US$ 45 bilhões em 1989 para US$ 322 bilhões em 2006, e os combinarmos com a possibilidade de uma crise econômica mundial, uma situação explosiva estará sendo criada na China. Isto se dá porque o crescimento baseado em dois fatores - mão-de-obra barata e investimentos estrangeiros - é frágil , parecido “a outros milagres conhecidos, que o imperialismo, em vários momentos sustentou” e que leva o país a “ter, cada vez mais, uma economia dependente do imperialismo”. (12)

É uma equação dificil de resolver, demonstrada pela declaração de Dominique Strauss-Kahn, presidente do FMI em relação à situação chinesa: “Como sabemos pela experiênria passada, estes tipos de questões algumas vezes acabam em guerra"(13).

A classe operária chinesa, com toda sua tradição revolucionária e com a chegada dos novos contingentes que estão sendo provados na luta contra o capital, é quem dará a palavra final, através da construção de seus organismos independentes e da luta contra a ditadura do PCCh e a superexploração reinantes. Mais uma vez as palavras de Marx no Manifesto Comunista são confirmadas 160 anos depois de escritas: a burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros.


A metamorfose do PC chinês

O partido dirigente da revolução socialista que expropriou a burguesia em 1949 passou por inúmeras transformações a partir da restauração capitalista da China. De partido stalinista, à frente de um Estado operário burocratizado, passa a dirigir um Estado burguês sob um regime de ditadura contra-revolucionária. A metamorfose do PC da China inicia-se em 1978, quando Deng Xiaoping lançou o “socialismo de mercado” e declarou que “enriquecer é glorioso”, repetindo a palavra de ordem de Bukharin e Stalin de “enriquecei-vos”, dirigida aos kulaks(14) na URSS de 1923.

O 14° Congresso do Partido Comunista da China (PCCh), reunido em 1992,substitui o “socialismo de mercado” pela “economia de mercado socialista”, onde o preponderante passava a ser a economia de mercado, refletindo as mudanças econômicas após o massacre da Praça Tiananmen.

Em 1997, durante o 15° Congresso, foi proposta uma nova definição de socialismo nos estatutos do partido, de “justiça social e economia de mercado". O vice-presidente da Academia de Ciências Sociais, Liu Ji, resumiu o marxismo como sendo uma doutrina onde “o interesse do povo é o mais importante, e o partido deve servir seu povo de todo coração”(15), onde a burguesia chinesa nascente estava incluída.

No 16° Congresso, realizado em 2002, 0 PC passou a representar “as forças produtivas avançadas, a cultura inovadora e os interesses das amplas massas”. O objetivo era permitir a filiação de capitalistas - que representavam o avanço das forças produtivas - no partido. Numa pesquisa da Academia de Ciências Sociais da China realizada em 2007, 11% dos 13 milhões de empresários chineses desejavam entrar no PCCh(16). É claro que este número não levava em conta os que já haviam entrado desde a resolução do Congresso.

Todas estas mudanças ideológicas respondem a alterações profundas na composição social do PC chinês. A burocracia estava em postos chaves para beneficiar-se das medidas de privatização implantadas, tornando-se proprietária das empresas estatais que dirigiam, ou aproveitando-se da liberação do mercado para acumular capital. Um orgulhoso delegado ao 17° Congresso do PC, por exemplo, afirmou numa entrevista que em 1994 havia investido US$ 15 mil numa fábrica de reciclagem de papel e em 2006 conseguiu construir uma fábrica de lâmpadas(17) Este delegado era um camponês, líder do PC em seu povoado.

Por ocasião do 15° Congresso, calculava-se que 5% da população ganhava mais de USÊS 12 mil anuais, um valor considerável para os padrões chineses. Em 2006 já se contavam sete multimilionários e 300 mil milionários, 400 dos quais com mais de USS 60 milhões. Muitos desses são antigos membros do partido.

Além de leis favoráveis, aproveitaram-se de relações privilegiadas no aparato e de uma gigantesca corrupção. Por exemplo, He Minxu, ex-vice governador de Anhui, foi condenado à morte por ter recebido subornos da ordem de US$ 1,12 milhão. Outro membro do PC, Wang Huaizhong, recebeu uma injeção letal em 2004 por ter acumulado USS 640 mil em enriquecimento ilícito.(18)

O programa aprovado no 17° Congresso enfatiza que 0 objetivo do partido é a “construção do socialismo com características chinesas”, sob a “ditadura democrática do povo”. Para isso foi necessário, em 1978, “repudiar a teoria e prática errôneas de 'considerar a luta de classes como a linha principal” e priorizar o desenvolvimento econômico para, dessa forma, tirar o país do “primeiro estágio do socialismo” que “durará mais de cem anos”.(19)

A tarefa principal é, portanto, “desenvolver as forças produtivas” através das reformas, com harmonia interna de acordo com a lei e em “coexistência pacífica” com as demais nações para “preencher as très tarefas históricas... de reunificação nacional, salvaguardar a paz mundial e promover o desenvolvimento comum”.

Dessa forma, a ditadura do proletariado é substituída pela ditadura do povo e a luta de classes é abandonada, para que a classe operária chinesa suporte mais cem anos de exploração capitalista durante o primeiro estágio do socialismo com características chinesas. Tudo isso em coexistência pacífica com o imperialismo e pela paz mundial. É com esta coleção de renegações do marxismo que o PCCh completa sua metamorfose rumo a um partido da lei e da ordem capitalistas.


Notas

(1) Mao Zedong, principal dirigente da revolução chinesa de 1949 e do PCCh, morto em l976; Deng Xjaoping, membro da “velha guarda" do PCCh, afastado durante a Revolução Cultural e reabilitado em 1973. Vice-primeiro ministro em 1976, venceu a luta interna contra a gangue dos quatro pela sucessão de Mao; Hua Guofeng, indicado por Mao como seu sucessor, era o representante da “esquerda” partidária
(2) Revolução Cultural (1966-l976); fruto da teoria maoista de continuidade da luta de classes no socialismo, para justificar a eliminação de membros de nove “categorias sociais indesejáveis": ex-latifundiário, ex-camponeses ricos, contra-revolucionários, maus elementos, direitistas, renegados, espiões, revisionistas e intelectuais. Teve o objetivo de canalizar a mobilização da juventude estudantil - os guardas vermelhos - para combater os setores burocráticos contrários a Mao.
(3) Robin Munro, Chen Erjin and the Chinese Democracy Movement em Chen Erjin, China Crossroads Socialism; Verso Editions, 1984.
(4) Wang Hui, As origens do neoliberalismo na China, original publicado no Le Monde Diplomatique, 12/10/2007
(5) Martin Hart-Landsberg & Paul Burkett, China, capitalist accumulation and labor, Monthly Review.
(6) Roland LeW, Rebellion in the rust belt, IV Online Magazine, setembro de 2002.
(7) Simon Gilbert, China´s strike wave, www.isj.org.uk, 29/06/05.
(8) Robert Weil, Condition of the working classes in China, Monthly Review, junio/2006.
(9) China fr Pearl River Delta: 40000 fingers lost annualy, 1000 workers strike daily, www.rfaunplugged.wordpress.com, 16/01/2008.
(10) Wholesale inflation accelerates in May, www.chinadaily.com.cn, 11/06/2008.
(11) Chinas´s economic growth slows as food prices soar, www.china.org.cn, 16/04/2008.
(12) Martín Hernández, O veredicto da história, Editora Sundermann,2008. Sobre a China, ler pag. 73 a 84.
(13) Food price inflation formidable challenge for China (Inflación en el precio de los alimentos, formidable reto para China), www.china.org.cn, 16/04/2008.
(14) Camponeses russos que empregavam trabalho assalariado.
(15) G. Buster, The transition to capitalism, IV Online Magazine, dezembro de 2003..
(16) Private companies playing a bigger role, www.china.org.cn /english/congress.
(17) Village Party Chief prosperty for all, www.china.org.cn/english/congress.
(18) Former vice governor setenced to death for bribery, www.china.org.cn/english.
(19) Informe ao 17° Congresso do PCCh, www.china.org.cn/english/Congress/225438.htm.

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