terça-feira, 17 de agosto de 2010

Democracia Burguesa e Democracia Proletária - Lenin

Texto retirado do arquivo marxista na internet.

Democracia Burguesa e Democracia Proletária


A questão tão descaradamente confundida por Kautsky apresenta-se na realidade assim.

A não ser para troçar do senso comum e da história, é claro que não se pode falar de «democracia pura» enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. (Digamos entre parênteses que «democracia pura» é não só uma frase de ignorante, que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um hábito, extinguir-se-á, mas nunca será democracia «pura».)

A «democracia pura» é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operários. A história conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir a burguesa.

Se Kautsky consagra até dezenas de páginas a «demonstrar» a verdade de que a democracia burguesa é progressiva em comparação com a Idade Média e de que o proletariado deve obrigatoriamente utilizá-la na sua luta contra a burguesia, isto é precisamente charlatanice de liberal, destinada a enganar os operários. Trata-se de um truísmo não só na culta Alemanha como também na Rússia inculta. Kautsky atira simplesmente areia «sábia» aos olhos dos operários, falando-lhes com ar importante tanto de Weitling, como dos jesuítas no Paraguai e de muitas outras coisas para eludir a essência burguesa da democracia contemporânea, isto é, capitalista.

Kautsky toma do marxismo aquilo que é aceitável para os liberais, para a burguesia (a crítica da Idade Média, o papel histórico progressista do capitalismo em geral e da democracia capitalista em particular) e rejeita, silencia e esbate no marxismo aquilo que é inaceitável para a burguesia (a violência revolucionária do proletariado contra a burguesia para a suprimir). Eis porque, por força da sua posição objectiva e seja qual for a sua convicção subjectiva, Kautsky se revela inevitavelmente um lacaio da burguesia.

A democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre — e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo — estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres. É esta verdade, que constitui uma parte integrante essencial da doutrina marxista, que o «marxista» Kautsky não compreendeu. Nesta questão — fundamental — Kautsky oferece «amabilidades» à burguesia, em vez de uma crítica científica das condições que fazem de qualquer democracia burguesa uma democracia para os ricos.

Comecemos por recordar ao doutíssimo senhor Kautsky as declarações teóricas de Marx e Engels que o nosso letrado vergonhosamente «esqueceu» (para agradar à burguesia), e depois explicaremos as coisas de maneira mais popular.

Não só o Estado antigo e feudal, mas também «o moderno Estado representativo é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital» (Engels, na sua obra sobre o Estado)[N15]. «Ora, como o Estado é, de facto, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade, mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal» (Engels na carta a Bebel de 28.III.1875)[N16]. «O Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia» (Engels no prefácio à Guerra Civil de Marx)[N17]. O sufrágio universal é «o barómetro da maturidade da classe operária. Mais não pode ser nem será nunca, no Estado de hoje» (Engels na sua obra sobre o Estado[N18]. O senhor Kautsky mastiga da forma mais fastidiosa a primeira parte desta tese, aceitável para a burguesia. Mas o renegado Kautsky passa em silêncio a segunda, que sublinhámos e que não é aceitável para a burguesia!). «A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo . . . Em vez de decidir de três em três anos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir (ver- und zertreten) o povo no Parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio» (Marx na obra sobre a Comuna de Paris, A Guerra Civil em França)[N19].

Cada uma destas teses, que o doutíssimo senhor Kautsky conhece perfeitamente, é para ele uma bofetada e descobre toda a sua traição. Em toda a brochura de Kautsky não há a mínima compreensão destas verdades. Todo o conteúdo da sua brochura é um escárnio do marxismo!

Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai a sua administração, tomai a liberdade de reunião ou de imprensa, tomai a «igualdade dos cidadãos perante a lei», e vereis a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de facto em caso de «violação» pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. Kautsky embeleza desavergonhadamente a democracia burguesa, nada dizendo, por exemplo, daquilo que fazem os burgueses mais democráticos e republicanos na América ou na Suíça contra os operários em greve.

Oh! o sábio e douto Kautsky silencia isto! Ele não compreende, este douto político, que silenciar isto é uma infâmia. Prefere contar aos operários contos para crianças, como por exemplo o de que a democracia significa «protecção da minoria». É incrível, mas é assim! No ano de 1918 do nascimento de Cristo, no quinto ano da carnificina imperialista mundial e de estrangulamento das minorias internacionalistas (isto é, daquelas que não atraiçoaram vilmente o socialismo, como o fizeram os Renaudel e os Longuet, os Scheidemann e os Kautsky, os Henderson e os Webb, etc), em todas as «democracias» do mundo, o douto senhor Kautsky canta com uma voz doce, muito doce, a «protecção da minoria». Quem o desejar, pode lê-lo na página 15 da brochura de Kautsky. E na página 16, esse douto ... indivíduo falar-vos-á dos whigs e dos tories[N20] do século XVIII na Inglaterra!

Oh, sapiência! Oh, refinado servilismo perante a burguesia! Oh, maneira civilizada de rastejar perante os capitalistas e de lhes lamber as botas! Se eu fosse Krupp ou Scheidemann ou Clemenceau ou Renaudel, pagaria milhões ao senhor Kautsky, compensá-lo-ia com beijos de Judas, elogiá-lo-ia perante os operários, recomendaria a «unidade do socialismo» com pessoas tão «respeitáveis» como Kautsky. Escrever brochuras contra a ditadura do proletariado, falar dos whigs e dos tones do século XVIII na Inglaterra, afirmar que democracia significa «protecção da minoria» e silenciar os programas contra os internacionalistas na «democrática» república da América, não são serviços de lacaio à burguesia?

O douto senhor Kautsky «esqueceu» — provavelmente esqueceu por acaso . . . — uma «ninharia», a saber: o partido dominante de uma democracia burguesa só garante a protecção da minoria a outro partido burguês, enquanto o proletariado, em qualquer questão séria, profunda e fundamental, em vez de «protecção da minoria» apenas recebe o estado de guerra ou os pogromes. Quanto mais desenvolvida é a democracia tanto mais próxima se encontra do pogrome ou da guerra civil em qualquer caso de profunda divergência política perigosa para a burguesia. O douto senhor Kautsky podia ter observado esta «lei» da democracia burguesa no caso Dreyfus[N21] na França republicana, no linchamento de negros e de internacionalistas na democrática república da América, no exemplo da Irlanda e do Ulster na democrática Inglaterra[N22], na perseguição dos bolcheviques e na organização de pogromes contra eles em Abril de 1917 na democrática república da Rússia. Cito intencionalmente exemplos não só do tempo da guerra, mas também do tempo de antes da guerra, do tempo de paz. O melífluo senhor Kautsky prefere fechar os olhos perante estes factos do século XX e contar aos operários em vez disso coisas espantosamente novas, notavelmente interessantes, inusitadamente instrutivas e incrivelmente importantes sobre os whigs e os tories no século XVIII.

Tomai o parlamento burguês. Será possível admitir que o douto Kautsky nunca tenha ouvido dizer que os parlamentos burgueses estão tanto mais submetidos à Bolsa e aos banqueiros quanto mais desenvolvida está a democracia? Daqui não decorre que não se deva utilizar o parlamentarismo burguês (e os bolcheviques utilizaram-no talvez com maior êxito que qualquer outro partido no mundo, pois em 1912-1914 conquistámos toda a cúria operária da IV Duma[N23]). Mas disto decorre que só um liberal pode esquecer, como Kautsky esquece, o carácter historicamente limitado e relativo do parlamentarismo burguês. No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a «democracia» dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente esta contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo. É precisamente esta contradição que os agitadores e propagandistas do socialismo denunciam constantemente perante as massas a fim de as preparar para a revolução! E quando começou a era das revoluções, Kautsky voltou-lhe as costas e pôs-se a celebrar os encantos da democracia burguesa moribunda.

A democracia proletária, de que o Poder Soviético é uma das formas, desenvolveu e alargou como nunca no mundo a democracia precisamente para a gigantesca maioria da população, para os explorados e os trabalhadores. Escrever todo um livro sobre a democracia, como fez Kautsky, falando em duas paginazinhas de ditadura e em dezenas de páginas de «democracia pura» e não notar isto é deturpar por completo as coisas como um liberal. Tomai a política externa. Em nenhum país burguês, nem mesmo o mais democrático, ela é feita abertamente. Em toda a parte se engana as massas, e nas democráticas França, Suíça, América, Inglaterra cem vezes mais ampla e refinadamente que nos outros países. O Poder Soviético arrancou revolucionariamente o véu de segredo que encobria a política externa. Kautsky não o notou, silencia isto, se bem que numa época de guerras de rapina e de tratados secretos sobre a «partilha das esferas de influência» (isto é, a partilha do mundo pelos bandidos capitalistas) isto tenha uma importância capital, porque disto depende a questão da paz, a questão da vida ou da morte de dezenas de milhões de pessoas.

Tomai a estrutura do Estado. Kautsky agarra-se às «ninharias», mesmo ao facto de que as eleições são «indirectas» (na Constituição soviética), mas não vê o fundo do problema. Não nota a essência de classe do aparelho de Estado, da máquina de Estado. Na democracia burguesa, servindo-se de mil estratagemas — tanto mais engenhosos e eficazes quanto mais desenvolvida está a democracia «pura» —, os capitalistas afastam as massas da administração, da liberdade de reunião e de imprensa, etc. O Poder Soviético é o primeiro no mundo (falando rigorosamente, o segundo, porque a Comuna de Paris começou a fazer o mesmo) que chama as massas, precisamente as massas exploradas, à administração. Mil barreiras fecham às massas trabalhadoras a participação no parlamento burguês (que nunca resolve as questões mais importantes na democracia burguesa: estas são resolvidas pela Bolsa e pelos bancos), e os operários sabem e sentem, vêem e percebem perfeitamente que o parlamento burguês é uma instituição alheia, um instrumento de opressão dos proletários pela burguesia, uma instituição de uma classe hostil, da minoria exploradora.

Os Sovietes são a organização directa das próprias massas trabalhadoras e exploradas, às quais facilita a possibilidade de organizarem elas próprias o Estado e de o administrarem de todas as maneiras possíveis. Precisamente a vanguarda dos trabalhadores e dos explorados, o proletariado das cidades, tem neste sentido a vantagem de ser o mais unido pelas grandes empresas; é-lhe mais fácil que a quaisquer outros eleger e controlar os eleitos. A organização soviética facilita automaticamente a unificação de todos os trabalhadores e explorados em torno da sua vanguarda, o proletariado. O velho aparelho burguês — o funcionalismo, os privilégios da riqueza, da instrução burguesa, das relações, etc. (estes privilégios de facto são tanto mais variados quanto mais desenvolvida está a democracia burguesa) — tudo isso desaparece com a organização soviética. A liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois se expropriam à burguesia as tipografias e o papel. O mesmo acontece com os melhores edifícios, os palácios, palacetes, casas senhoriais, etc. O Poder Soviético retirou imediatamente aos exploradores milhares e milhares destes melhores edifícios, tornando assim um milhão de vezes mais «democrático» o direito de reunião para as massas, esse direito de reunião sem o qual a democracia é um engano. As eleições indirectas dos Sovietes não locais facilitam os congressos dos Sovietes, tornam todo o aparelho mais barato, mais ágil, mais acessível aos operários e aos camponeses num período em que a vida ferve e é necessário poder actuar com especial rapidez para revogar o seu deputado local ou enviá-lo ao congresso geral dos Sovietes.

A democracia proletária é um milhão de vezes mais democrática que qualquer democracia burguesa. O Poder Soviético é um milhão de vezes mais democrático que a mais democrática república burguesa.

Para não notar isto é preciso ser um servidor consciente da burguesia ou um homem totalmente morto politicamente, que não vê a vida viva por trás dos poeirentos livros burgueses, impregnado até à medula de preconceitos democrático-burgueses, pelo que se tornou objectivamente um servidor da burguesia.

Para não perceber isto é preciso ser um homem incapaz de colocar a questão do ponto de vista das classes oprimidas: existe algum país no mundo, entre os países burgueses mais democráticos, onde o operário médio, da massa, o assalariado agrícola médio, da massa, ou semiproletário do campo em geral (isto é, o representante da massa oprimida, da imensa maioria da população) goze, mesmo aproximadamente, da liberdade de realizar as suas reuniões nos melhores edifícios, da liberdade de ter as maiores tipografias e as melhores reservas de papel para expressar as suas ideias e para defender os seus interesses, da liberdade de enviar precisamente homens da sua classe para governar e «organizar» o Estado, como acontece na Rússia Soviética?

Seria ridículo supor que o senhor Kautsky encontre em qualquer país um em mil operários ou assalariados agrícolas informados que duvidasse da resposta a esta pergunta. Instintivamente, ouvindo fragmentos de admissões da verdade através dos jornais burgueses, os operários de todo o mundo simpatizam com a República Soviética porque vêem nela a democracia proletária, a democracia para os pobres, e não uma democracia para os ricos, como na realidade é toda a democracia burguesa, mesmo a melhor.

Somos governados (e o nosso Estado é «organizado») por funcionários burgueses, parlamentares burgueses, juizes burgueses. Esta é uma verdade simples, evidente, indiscutível, conhecida por experiência própria, sentida e percebida diariamente por dezenas e centenas de milhões de homens das classes oprimidas de todos os países burgueses, incluindo os mais democráticos.

Mas na Rússia quebrámos completamente o aparelho burocrático, não deixámos dele pedra sobre pedra, afastámos todos os velhos juizes, dissolvemos o parlamento burguês e demos precisamente aos operários e aos camponeses uma representação muito mais acessível, os seus Sovietes substituíram os funcionários, ou os seus Sovietes foram colocados acima dos funcionários, os seus Sovietes tornaram electivos os juizes. Este simples facto basta para que todas as classes oprimidas reconheçam que o Poder Soviético, isto é, esta forma da ditadura do proletariado, é um milhão de vezes mais democrática que a mais democrática república burguesa.

Kautsky não compreende esta verdade, compreensível e evidente para qualquer operário, porque «esqueceu», «desacostumou-se» de colocar a questão: democracia para que classe? Ele raciocina do ponto de vista da democracia «pura» (isto é, sem classes? ou acima das classes?). Argumenta como Shylock[N24]: «uma libra de carne» e nada mais. Igualdade de todos os cidadãos — senão não há democracia.

Devemos perguntar ao douto Kautsky, ao «marxista» e «socialista»Kautsky:

pode haver igualdade entre o explorado e o explorador?

É monstruoso, é inacreditável que tenhamos de fazer esta pergunta ao discutir um livro do chefe ideológico da II Internacional. Mas, «atrelado ao carro, não te queixes da carga». Propusemo-nos escrever sobre Kautsky — é preciso explicar a este douto homem por que não pode haver igualdade entre o explorador e o explorado.


Pode Haver Igualdade Entre o Explorado e o Explorador?

Kautsky raciocina do modo seguinte:

(1) «Os exploradores constituíram sempre apenas uma pequena minoria da população» (p. 14 do livro de Kautsky).


Isto é uma verdade indiscutível. Como devemos raciocinar a partir desta verdade? Podemos raciocinar como marxistas, como socialistas; então teremos de tomar por base a relação entre explorados e exploradores. Podemos raciocinar como liberais, como democratas burgueses; então teremos de tomar por base a relação entre maioria e minoria.

Se raciocinamos como marxistas, teremos que dizer: os exploradores transformam inevitavelmente o Estado (e trata-se da democracia, isto é, de uma das formas do Estado) em instrumento de domínio da sua classe, da classe dos exploradores sobre os explorados. Por isso, também o Estado democrático, enquanto houver exploradores que dominem sobre uma maioria de explorados, será inevitavelmente uma democracia para os exploradores. O Estado dos explorados deve distinguir-se radicalmente desse Estado, deve ser a democracia para os explorados e a repressão dos exploradores, e a repressão duma classe significa a desigualdade dessa classe, a sua exclusão da «democracia».

Se raciocinamos como liberais, teremos que dizer: a maioria decide, a minoria submete-se. Os insubmissos são castigados. E nada mais. É inútil falar sobre o carácter de classe do Estado em geral ou sobre a «democracia pura» em particular; isso nada tem a ver com a questão, porque a maioria é a maioria e a minoria é a minoria. Uma libra de carne é uma libra de carne, e basta.

Kautsky raciocina precisamente assim:

(2) «Que motivos há para que a dominação do proletariado tome e tenha de tomar uma forma que é incompatível com a democracia?» (p. 21).


Segue-se a explicação de porque é que o proletariado tem pelo seu lado a maioria, explicação muito circunstanciada e muito palavrosa, e com uma citação de Marx e com números de votos na Comuna de Paris. Conclusão:

«Um regime tão fortemente enraizado nas massas não tem o menor motivo para atentar contra a democracia. Nem sempre poderá evitar a violência nos casos em que a violência for empregue para reprimir a democracia. À violência só se pode responder com a violência. Mas um regime que sabe que tem as massas com ele só usará a violência para defender a democracia, e não para a suprimir. Cometeria um verdadeiro suicídio se quisesse suprimir a sua base mais segura, o sufrágio universal, fonte profunda duma poderosa autoridade moral» (p. 22).


Como se vê, a relação entre explorados e exploradores desapareceu da argumentação de Kautsky. Não resta mais do que a maioria em geral, a minoria em geral, a democracia em geral, a «democracia pura» que já conhecemos.

Note-se que isto é dito a propósito da Comuna de Paris! Para maior evidência, vejamos o que diziam Marx e Engels da ditadura a propósito da Comuna:

Marx:

« ... Quando os operários substituem a ditadura da burguesia pela sua ditadura revolucionária . . . para quebrarem a resistência da burguesia . . ., dão ao Estado uma forma revolucionária e transitória . . .»[N25]


Engels:

«... E o partido que triunfou» (na revolução) «tem de afirmar o seu domínio por meio do medo que as suas armas inspiram aos reaccionários. E se a Comuna de Paris não se tivesse servido da autoridade de um povo armado contra a burguesia, acaso se teria mantido mais do que um dia? Não podemos, inversamente, censurar-lhe o ter-se servido excessivamente pouco desta autoridade?. . .»[N26]


Também ele:

«Ora como o Estado é, de facto, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade, o Estado deixa de existir como tal . . .»[N27]


Entre Kautsky e Marx e Engels há uma distância como do céu à terra, como entre um liberal e um revolucionário proletário. A democracia pura e simplesmente a «democracia» de que fala Kautsky, não é mais do que uma reprodução desse mesmo «Estado popular livre», isto é, um puro absurdo. Com a sapiência de um doutíssimo imbecil de gabinete, ou com a candura duma menina de 10 anos, Kautsky pergunta: para que é necessária a ditadura, quando se tem a maioria? E Marx e Engels explicam-no:

— Para quebrar a resistência da burguesia;

— para inspirar medo aos reaccionários;

— para manter a autoridade do povo armado contra a burguesia;

— para que o proletariado possa reprimir pela violência os seus adversários.

Kautsky não compreende estas explicações. Enamorado da «pureza» da democracia, não vendo o seu carácter burguês, sustenta «Consequentemente» que a maioria, uma vez que é maioria, não tem necessidade de «quebrara resistência» da minoria, não tem necessidade de a «reprimir pela força» — basta reprimir os casos de violação da democracia. Enamorado da «pureza» da democracia, Kautsky incorre por descuido nesse pequeno erro que sempre cometem todos os democratas burgueses, a saber: aceita a igualdade formal (que é completamente mentirosa e hipócrita no capitalismo) por igualdade de facto! Uma ninharia!

O explorador não pode ser igual ao explorado.

Esta verdade, por mais desagradável que seja para Kautsky, é o conteúdo mais essencial do socialismo.

Outra verdade: não pode haver igualdade real, de facto, enquanto não estiver totalmente suprimida toda a possibilidade da exploração duma classe por outra.

Pode-se derrotar dum só golpe os exploradores com uma insurreição com êxito no centro ou uma rebelião das tropas. Mas, com exclusão de casos muito raros e especiais, não se pode suprimir os exploradores dum só golpe. Não se pode expropriar dum só golpe todos os latifundiários e capitalistas de um país duma certa extensão. Além disso, a expropriação por si só, como acto jurídico ou político, está muito longe de resolver o problema, porque é necessário desalojar de facto os latifundiários e os capitalistas, substituir de facto a sua administração das fábricas e das propriedades agrícolas por outra administração, operária. Não pode haver igualdade entre os exploradores, que, durante longas gerações, se distinguiram pela instrução, pelas condições de uma vida rica e pelos hábitos, e os explorados, cuja massa, mesmo nas repúblicas burguesas mais avançadas e democráticas, é embrutecida, inculta, ignorante, assustada e dividida. Durante muito tempo depois da revolução os exploradores conservam inevitavelmente uma série de enormes vantagens de facto: mantêm o dinheiro (não é possível suprimir o dinheiro de imediato), certos bens móveis, frequentemente consideráveis, conservam as relações, os hábitos de organização e de administração, o conhecimento de todos os «segredos» (costumes, processos, meios, possibilidades) da administração, conservam uma instrução mais elevada, a proximidade com o pessoal técnico superior (que vive e pensa à maneira burguesa), conservam (e isto é muito importante) uma experiência infinitamente superior na arte militar, etc, etc.

Se os exploradores são derrotados num só país — e este é, naturalmente, o caso típico, pois a revolução simultânea numa série de países constitui uma rara excepção —, continuarão a ser mo entanto mais fortes do que os explorados, pois as relações internacionais dos exploradores são enormes. Que uma parte dos explorados, da massa menos desenvolvida de camponeses médios, artesãos, etc, segue e é susceptível de seguir os exploradores, provam-no até agora todas as revoluções, incluindo a Comuna (porque entre as tropas de Versalhes havia também proletários, coisa que o doutíssimo Kautsky «esqueceu»).

Em tal estado de coisas, supor que numa revolução minimamente profunda e séria a solução do problema depende simplesmente da relação entre a maioria e a minoria, é a maior estupidez, é o mais tolo preconceito de um vulgar liberal, é enganar as massas, esconder-lhes uma verdade histórica manifesta. Esta verdade histórica consiste em que, em qualquer revolução profunda, a regra é que os exploradores, que durante uma série de anos conservam sobre os explorados grandes vantagens de facto, opõem uma resistência prolongada, obstinada e desesperada. Nunca — a não ser na doce fantasia do doce tonto Kautsky — os exploradores se submetem à decisão da maioria dos explorados antes de terem posto à prova a sua superioridade numa desesperada batalha final, numa série de batalhas.

A transição do capitalismo para o comunismo constitui toda uma época histórica. Enquanto ela não terminar os exploradores continuam a manter a esperança da restauração, e esta esperança transforma-se em tentativas de restauração. E depois da primeira derrota séria, os exploradores derrubados, que não esperavam o seu derrubamento, não acreditavam nele, não admitiam a ideia dele, lançam-se com energia decuplicada, com uma paixão furiosa, com um ódio cem vezes acrescido na luta pelo regresso do «paraíso» que lhes foi arrebatado, pelas suas famílias que viviam tão docemente e a quem a «vil população» condena à ruína e à miséria (ou ao «simples» trabalho . . .). E atrás dos capitalistas exploradores arrasta-se uma grande massa da pequena burguesia, que, como mostra a experiência histórica de dezenas de anos de todos os países, oscila e vacila, que hoje segue o proletariado e amanhã se assusta com as dificuldades da revolução, cai no pânico à primeira derrota ou semiderrota dos operários, se enerva, se agita, choraminga, corre de um campo para outro . . . tal como os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários.

E em tal estado de coisas, numa época de guerra desesperada, aguda, quando a história coloca na ordem do dia as questões da existência ou não existência de privilégios seculares e milenários, fala-se de maioria e minoria, de democracia pura, de que não é necessária a ditadura, de igualdade entre exploradores e explorados!! Que abismo de estupidez e filistinismo é preciso para isto!

Mas decénios de um capitalismo relativamente «pacífico», de 1871 a 1914, acumularam nos partidos socialistas que se adaptam ao oportunismo estábulos de Augias[N28] de filistinismo, de estreiteza e de renegação . . .
* * *

O leitor notou provavelmente que Kautsky, na passagem do seu livro citada mais acima, fala de atentado contra o sufrágio universal (que qualifica — diga-se entre parênteses — de fonte profunda de poderosa autoridade moral, enquanto Engels, a propósito da mesma Comuna de Paris e a propósito da mesma questão da ditadura, fala da autoridade do povo armado contra a burguesia; é característico comparar a concepção de um filisteu e de um revolucionário sobre a «autoridade». . .).

É preciso notar que a questão da privação dos exploradores do direito devoto é uma questão puramente russa, e não uma questão da ditadura do proletariado em geral. Se Kautsky tivesse, sem hipocrisia, intitulado a sua brochura Contra os Bolcheviques, este título corresponderia ao conteúdo da brochura e Kautsky teria então o direito de falar francamente do direito de voto. Mas Kautsky quis intervir, antes de mais nada, como «teórico». Intitulou a sua brochura «A Ditadura do Proletariado» em geral. Só fala especialmente dos Sovietes e da Rússia na segunda parte da brochura, a partir do seu sexto parágrafo. Na primeira parte (donde retirei a passagem citada), trata-se da democracia e da ditadura em geral. Ao falar do direito de voto, Kautsky traiu-se como polemista contra os bolcheviques sem dar a mínima importância à teoria. Pois a teoria, isto é, o estudo dos fundamentos gerais (e não especificamente nacionais) de classe da democracia e da ditadura, não deve falar de uma questão particular como o direito de voto, mas de uma questão geral: poderá a democracia ser conservada também para os ricos, também para os exploradores, no período histórico do derrubamento dos exploradores e da substituição do seu Estado pelo Estado dos explorados?

É assim, e só assim, que um teórico pode colocar a questão.

Conhecemos o exemplo da Comuna, conhecemos todos os raciocínios dos fundadores do marxismo em relação a ela e a propósito dela. Na base deste material, analisei, por exemplo, a questão da democracia e da ditadura na minha brochura O Estado e a Revolução, escrita antes da Revolução de Outubro. Não disse nem uma palavra acerca da limitação do direito de voto. E agora é preciso dizer que a questão da limitação do direito de voto é uma questão especificamente nacional, e não uma questão geral da ditadura. A questão da limitação do direito de voto deve ser abordada com um estudo das condições particulares da revolução russa, da via particular do seu desenvolvimento. Isto será feito mais adiante na exposição. Mas seria um erro assegurar antecipadamente que as futuras revoluções proletárias da Europa, todas ou a maioria, trarão necessariamente a limitação do direito de voto para a burguesia. Pode acontecer assim. Depois da guerra e depois da experiência da revolução russa, é provável que assim aconteça, mas não é obrigatório para o exercício da ditadura, isto não constitui um traço necessário do conceito lógico de ditadura, isto não faz parte como condição necessária do conceito histórico e de classe de ditadura.

O que é um traço necessário, uma condição obrigatória da ditadura, é a repressão violenta dos exploradores como classe e, por conseguinte, a violação da democracia pura, isto é, da igualdade e da liberdade em relação a essa classe.

Assim e só assim pode ser colocada a questão teoricamente. E Kautsky, não colocando assim a questão, demonstra que actua contra os bolcheviques não como teórico, mas como um sicofanta dos oportunistas e da burguesia.

Em que países, em que condições específicas nacionais de um ou outro capitalismo será aplicada (exclusiva ou predominantemente) uma ou outra limitação, violação da democracia para os exploradores, é uma questão que depende das condições específicas nacionais de um ou outro capitalismo, de uma ou outra revolução. Teoricamente, a questão coloca-se de outro modo, coloca-se assim: é possível a ditadura do proletariado sem violação da democracia em relação à classe dos exploradores?

Kautsky eludiu precisamente esta questão, a única teoricamente importante e essencial. Kautsky cita todo o tipo de passagens de Marx e Engels, salvo aquelas que se referem a esta questão e que citei mais acima.

Kautsky fala de tudo o que queiram, de tudo o que é aceitável para os liberais e democratas burgueses, de tudo o que não sai do seu círculo de ideias — excepto do principal, excepto de que o proletariado não pode vencer sem quebrar a resistência da burguesia, sem reprimir pela violência os seus adversários, e onde há «repressão violenta», onde não há «liberdade», naturalmente não há democracia.

Kautsky não compreendeu isto.

Passemos à experiência da revolução russa e à divergência entre os Sovietes de deputados e a Assembleia Constituinte, a qual (divergência) conduziu à dissolução da Constituinte e à privação da burguesia do direito de voto[N29].




Notas

[N15]Ver Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 21, S. 167.
[N16] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 34, S. 129.
[N17] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 625.
[N18] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 21, S. 168.
[N19] Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 339, 340.
[N20] Whigs e Tories: partidos políticos de Inglaterra, constituídos nos anos 70-80 do século XVII. O partido dos whigs exprimia os interesses dos meios financeiros e da burguesia mercantil, assim como de uma parte da aristocracia aburguesada. Os whigs originaram o partido liberal. Os tories representavam os grandes proprietários rurais e o alto clero anglicano; defendiam as tradições do passado feudal e lutavam contra as reivindicações liberais e progressistas. Mais tarde os tories deram origem ao partido conservador. Os whigs e os tories sucediam-se no poder.
[N21] Lénine faz alusão ao processo provocatório organizado em 1894 pelos círculos monárquicos reaccionários da clique militar francesa contra o judeu Dreyfus, oficial do Estado-Maior General francês, falsamente acusado de espionagem e alta traição. O tribunal militar condenou Dreyfus à prisão perpétua. A condenação de Dreyfus foi aproveitada pelos círculos reaccionários da França para fomentar o anti-semitismo e desencadear uma ofensiva contra o regime republicano e as liberdades democráticas. O caso Dreyfus adquiriu um carácter nitidamente político e cindiu o país em dois campos: republicanos e democratas, por um lado, e o bloco de monárquicos, clericais, anti-semitas e nacionalistas, por outro. Em 1899, sob a pressão da opinião pública, Dreyfus foi indultado e em 1906 completamente reabilitado e reintegrado no exército.
[N22] Trata-se da repressão sangrenta pelos ingleses da insurreição irlandesa de 1916, que tinha por objectivo a libertação do país da dominação britânica.
Ulster: parte norte-oriental da Irlanda, cuja população é maioritariamente inglesa. Tropas do Ulster participaram juntamente com tropas inglesas na repressão da insurreição do povo irlandês.
[N23]Duma de Estado: instituição representativa que o governo tsarista se viu obrigado a convocar em consequência dos acontecimentos revolucionários de 1905. Formalmente, a Duma de Estado era um órgão legislativo, mas de facto não tinha poder efectivo algum. As eleições para a Duma de Estado não eram nem directas, nem iguais, nem gerais. Os direitos eleitorais das classes trabalhadoras, bem como das nacionalidades não russas que habitavam na Rússia, eram consideravelmente restringidos. Uma grande parte dos operários e camponeses era totalmente privada de direitos eleitorais. A I Duma de Estado (Abril - Julho de 1906) e a II Duma do Estado (Fevereiro—Junho de 1907) foram dissolvidas pelo governo tsarista. Depois de efectuar em 3 de Junho de 1907 um golpe de Estado, o governo tsarista promulgou uma nova lei eleitoral que limitava ainda mais os direitos dos operários, dos camponeses e da pequena burguesia urbana, assegurando o domínio total da aliança reaccionária dos latifundiários e dos grandes capitalistas na III (1907-1912) e na IV (1912-1917) Dumas de Estado.
[N24] Shylock: personagem da comédia de W. Shakespeare O Mercador de Veneza, insensível e cruel usurário que exigia implacavelmente, de acordo com as condições da letra de câmbio, que se cortasse ao seu devedor insolvente uma libra de carne.
[N25] Karl Marx, O Indiferenttsmo Político. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 300.
[N26] Friedrich Engels, Da Autoridade. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 308.
[N27] Ver carta de F. Engels a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875. In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 19, S. 7.
[N28] Estábulos de Augias: na mitologia grega, grandes estábulos do rei da Elida, Augias, que não foram limpos durante muitos anos e que foram limpos por Hércules num só dia. A expressão «estábulos de Augias» tornou-se sinónimo de acumulação de todo o tipo de imundície e lixo ou de estado de extremo abandono e desordem
[N29] As eleições para a Assembleia Constituinte realizaram-se após a vitória da Revolução de Outubro na data marcada anteriormente, isto é, no dia 12 (25) de Novembro de 1917. As eleições realizaram-se na base das listas constituídas antes da Revolução de Outubro e em conformidade com o regulamento aprovado pelo Governo Provisório, numa situação em que uma parte considerável do povo ainda não podia compreender a grande significação da revolução socialista. Os socialistas-revolucionários de direita aproveitaram isso e puderam obter a maioria dos votos nas províncias e regiões afastadas da capital e dos centros industriais. O governo soviético convocou a Assembleia Constituinte, que se inaugurou em 5 (18) de Janeiro de 1918 na cidade de Petrogrado. Devido ao facto de a maioria contra-revolucionária da Assembleia Constituinte ter rejeitado a «Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado» proposta pelo CECR e se ter negado a aprovar os decretos aprovados pelo II Congresso dos Sovietes, sobre a Paz, sobre a Terra, sobre a passagem do poder para os Sovietes, o CECR decretou, no dia 6 (19) de Janeiro, a dissolução desta Assembleia.

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