segunda-feira, 31 de maio de 2010

O sandinismo, ontem e hoje - Guilhermo Huembes e Manuel Sandoval

Membros do PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES (PRT) - COSTA RICA. Públicado na revista Marxismo Vivo número 21. Tradução de Irinéia vieira. Texto disponível em: http://www.archivoleontrotsky.org/phl/www/arquivo/MV21pt/mv21pt-12hs.pdf

Quem que não conhecesse nada da história da América Central dos últimos 30 anos e viajasse a Manágua hoje, dificilmente conseguiria perceber que no final dos anos 70 ocorreu um processo revolucionário de tal profundidade que ameaçou de morte o sistema capitalista. A Nicarágua atual, ainda que os Ortega estejam novamente no poder, exibe os mesmos males de qualquer outro país capitalista atrasado e explorado pelas multinacionais. Como veremos neste artigo, a direção sandinista empenhou-se em reconstituir o Estado burguês, ferido de morte com a destruição da Guarda Nacional de Somoza depois da insurreição popular que culminou em 19 de julho de 1979. E acabou transformando-se em ala da burguesia nicaraguense, mediante o roubo das propriedades expropriadas de Somoza e sua camarilha e de todo tipo de negociações sob o amparo do aparato do Estado. Hoje se deve extrair as lições dessa experiência histórica para que o sacrifício e o heroísmo revolucionário dos povos centro-americanos daquele momento não tenham sido em vão. Em meio à crise econômica internacional, confiamos em que os povos centro-americanos voltarão a lutar pelo poder. Mas agora trata-se de construir uma direção operária, socialista e internacionalista, que não vacile em expropriar a burguesia e em unificar a luta revolucionária na América Central.


A revolução que derrubou Somoza

Durante décadas, a ditadura dos Somoza controlou ferreamente a Nicarágua. No entanto, em janeiro de 1978, com o assassinato do burguês de oposição Pedro Joaquim Chamorro, é iniciada uma poderosa mobilização de massas em protesto, com incêndios de empresas ligadas ao somozismo em Manágua, e produz-se um salto na situação política. Este assassinato situa-se numa crise já vivida pela ditadura somozista, quando enfrenta um crescente repúdio da burguesia e o início da intensificação da ação militar da Frente Sandinista.

A população indígena de Monimbó, em Masaya, a segunda cidade do país, rebela-se em fevereiro, dando uma lição ao conjunto das massas populares da Nicarágua sobre os métodos para realizar uma insurreição urbana de massas. Com a tomada do Palácio Nacional em agosto, numa operação dirigida pelo Comandante Zero, Edén Pastora, da tendência Terceirista, a crise da ditadura começa a se tornar palpável. A burguesia opositora convoca uma greve nacional em setembro, coincidindo com uma ofensiva combinada das diferentes tendências sandinistas.

Neste momento, a burguesia opositora, a Igreja católica, a social-democracia europeia e vários governos latino-americanos tentam convencer o sandinismo a compartilhar o poder com a burguesia frente a uma eventual queda da ditadura. A ajuda em armas, em recursos financeiros e logística fica assim vinculada ao surgimento de um governo de unidade nacional, que se concretizará finalmente com a incorporação de Violeta Barrios de Chamorro (viúva de Pedro Joaquim Chamorro) e Alfonso Robelo (presidentedo Conselho Superior de Empresas Privadas - COSEP) à futura Junta de Reconstrução Nacional.

A queda da ditadura somozista, em meio a um processo insurrecional, que provoca a debandada da Guarda Nacional, destrói as bases do Estado burguês na Nicarágua. Na fase final da luta, em junho-julho de 1979, quando as colunas guerrilheiras avançam aos centros populosos no Norte, Manágua e a franja do Pacífico, produz-se uma incorporação massiva dos setores populares, que se armam e formam milícias, executam membros dos aparatos repressivos que não conseguem fugir e começam a ocupar fábricas e fazendas dos Somoza e de sua camarilha. Surge assim uma situação de duplo poder, onde o poder das massas se expressa embrionariamente nas milícias, nas organizações de bairros e nos sindicatos que começam a surgir a partir de 19 de julho.


A FSLN no poder: frear a revolução para reconstruir o Estado burguês

Da mesma forma que em fevereiro de 1917 na Rússia, quando a burguesia é obrigada a recorrer à ficção de um governo de unidade nacional com social revolucionários e mencheviques, as direções colaboracionistas de classes à frente dos sovietes, o poder real reside nos órgãos de poder que as massas mobilizadas estão criando. Na Nicarágua daquele momento, a única possibilidade da débil burguesia opositora é refugiar-se atrás da Junta de Reconstrução Nacional (organismo que só ganha vida pela autoridade da FSLN) e tentar aglutinar-se por meio do COSEP para pressionar o sandinismo a cumprir o programa do GRN, que limita a revolução ao estabelecimento de um regime democrático-burguês.

A direção sandinista que, como vemos, não tinha uma experiência histórica em frear o movimento de massas como a dos aparatos stalinistas, encontra-se pressionada desde o primeiro momento pela política de colaboração de classes, que a obriga a conter a revolução para que não vá além da conquista democrática representada pela queda de Somoza e não entre em um curso anticapitalista, como o que se anuncia, com o armamento das massas e o processo aberto de ocupação de fábricas e terras. A fuga da camarilha dos Somoza significa de fato a expropriação da fração burguesa mais poderosa do país, gerando uma dinâmica anticapitalista em meio à mobilização de massas. Por esta razão, o sandinismo começa a anunciar que as expropriações são contra os burgueses vende-pátria, e não contra os “patrióticos”.

A situação pegou o sandinismo, que não contava com a possibilidade de ocorrer um processo de organização independente das massas, de surpresa. Contudo, rapidamente, consegue definir um projeto de controle político e militar do movimento de massas para reconstituir o Estado burguês, transformando a guerrilha em um aparato militar profissional.

Esta escalada repressiva era parte de uma operação contrarrevolucionária bem calculada para controlar o movimento de massas. Como se evidenciará com a chegada de Fidel Castro a Manágua para celebrar o primeiro aniversário do triunfo da revolução, ao aconselhar o sandinismo a manter-se preso a uma política de colaboração de classes com a burguesia, com a expectativa de que o imperialismo norte-americano, em troca desta colaboração, abrisse um processo de negociação com Cuba e terminasse com as sanções e o isolamento. O aparato repressivo estabelecido pelo sandinismo será criado com a assessoria do G-2 cubano.

Sem partidos fortes da burguesia, com todas as instituições chaves do Estado burguês profundamente debilitadas (há um expurgo dos somozistas do aparato judicial e de todos os ministérios), e com um grande setor da economia de propriedade anterior de Somoza e seus adeptos controlado agora pelos “administradores” sandinistas, o regime político que o sandinismo começa a conformar para controlar o movimento de massas é, desde o primeiro momento, profundamente autoritário e bonapartista.

Ainda que contraditoriamente, pois o sandinismo estabelece este regime para sustentar o sistema capitalista na Nicarágua, os confiscos da propriedade somozista e a articulação da institucionalidade burguesa em torno ao mando militar guerrilheiro provocam as primeiras fricções com a burguesia opositora, causando a saída de Robelo e de Violeta Chamorro da Junta de Reconstrução Nacional em meados dos anos 80 e a morte de Jorge Salazar Argüello, dirigente do COSEP, que mantinha contato com setores do somozismo, num enfrentamento com a segurança do Estado.


O imperialismo dá “ar” à economia mista do sandinismo

A derrota militar no Vietnam em 1975, como resultado da combinação da resistência vietnamita, da solidariedade internacional a nível mundial e da mobilização contra a guerra nos próprios Estados Unidos, provocará uma profunda crise de direção do imperialismo norte-americano para enfrentar os processos revolucionários além de suas fronteiras. O ano de 1979 é crucial, porque caem dois peões em regiões chaves para o imperialismo: Somoza na América Central e o Xáno Irã. Estamos assim às portas de um salto, de um aprofundamento do ascenso revolucionário no plano mundial, que começou a dar-se desde finsdos anos sessenta.

Neste marco Washington enfrenta a “síndrome do Vietnam”, a oposição do povo norte-americano às guerras contrarrevolucionárias com intervenção direta de seu exército.

O fracasso da tentativa de libertação dos reféns na Embaixada norte-americana em Teerã pela força pôs o imperialismo norte-americano em xeque e o deixa paralisado frente a um processo revolucionário de massas, ante o qual se comprometeu até o último momento ao apoiar a odiada ditadura do Xá. O Irã converte-se em uma ameaça muito séria, porque a direção burguesa à frente do processo (o clero xiita encabeçado pelo aiatolá Khomeini) pretende assumir um desenvolvimento capitalista autônomo, com base nos recursos petrolíferos do país. Possivelmente este desconcerto inicial contribui para converter o problema iraniano em um verdadeiro trauma até o dia de hoje na definição da estratégia de dominação global do imperialismo ianque.

No caso da Nicarágua e do ascenso de massas aberto em toda América Central em fins dos anos setenta, a administração Carter começa a ensaiar outra estratégia contrarrevolucionária, ao tomar consciência da impossibilidade de uma intervenção militar direta para impedir a queda de Somoza, pactuando com o sandinismo o congelamento do processo revolucionário nos limites do capitalismo após a queda da ditadura. No Irã não existia um intermediário internacional para promover uma negociação com o clero xiita, a fim de assegurar os interesses de Washington e garantir um compromisso de que a revolução não se estendesse às massas xiitas do Oriente Médio. Já em relação ao sandinismo, houve um trabalho prévio por parte da burguesia opositora, da social-democracia internacional e de alguns governos burgueses da América Latina para “moderá-lo”.

Washington joga-se a fundo para “permitir” que a FSLN tome o poder… e vai mais além: outorga um crédito de mais de 2 bilhões de dólares, que permite ao sandinismo fazer importantes concessões ao movimento de massas nos dois primeiros anos de governo. O projeto de economia mista do sandinismo: articular a propriedade estatal com o setor privado da economia recebe um oxigênio vital.

O bondoso rosto que o ex-presidente Carter tentou projetar nos anos recentes, denunciando as violações aos direitos humanos em vários países da periferia e clamando por ajuda ao “terceiro mundo”, não nos deve fazer esquecer, no entanto, que a ofensiva contrarrevolucionária do imperialismo, tanto nos próprios Estados Unidos como a nível internacional, inicia-se no último ano de seu governo. Em casa, nomeou o agora octogenário Volcker (um dos principais assessores econômicos de Obama) para a Reserva Federal (FED). Este aumentou as taxas de juros e fez a economia entrar em recessão, resultando no aumento do desemprego e na queda dos salários. Na América Central, a política “amável” para o sandinismo deu passagem ao que em nossa corrente internacional denominamos desde então de política de reação democrática da “cenoura e o garrote”, ou seja, pressão política e militar (com a imposição da contrarrevolução armada) para obrigar o sandinismo a outorgar cada vez mais concessões à burguesia local e ao imperialismo.

Com bandos dispersos de guardas somozistas que não fugiram para Honduras e se refugiaram nas montanhas da Nicarágua, a CIA e o Pentágono iniciam a montagem da guerrilha “contra”, com uma estratégia de “guerra de baixa intensidade”.

A subida de Reagan à Casa Branca em 1981 dá impulso a esta política, gerando um curso de confrontação muito forte, destinado a arrancar concessões substanciais do sandinismo. A mudança na estratégia do imperialismo é produzida como resultado de dois processos: à diferença do sandinismo, que não aborda a revolução nicaraguense como parte de um processo revolucionário de toda a América Central, o imperialismo toma consciência rapidamente de que, para derrotar o ascenso no resto da América Central, estimulado pelo triunfo revolucionário na Nicarágua, tem que desgastar o movimento de massas neste país e arrancar o sandinismo do poder. O triunfo revolucionário sobre a ditadura somozista foi um exemplo muito perigoso para sua dominação, numa região que tende historicamente à sua integração e mantém por isso profundos vasos comunicantes na luta de classes.

Enquanto impulsiona a ação dos “contras” para desgastar o sandinismo e reforça os exércitos da Guatemala, Honduras e El Salvador, realiza uma operação de maquiagem “democrática” das velhas ditaduras militares destes países e mantém economicamente a “democracia” costarriquense para que se converta no ideal ao qual possam aspirar, pacificamente, as massas centro-americanas.

A segunda razão é que, embora o sandinismo esteja fortemente comprometido a defender o sistema capitalista, trata-se de uma direção independente, com fortes vínculos com Cuba, na qual o imperialismo não pode confiar plenamente. O deslocamento da burguesia opositora do aparato do Estado, porque não tem maior incumbência num regime bonapartista estruturado em torno à oficialidade sandinista, provoca finalmente a ruptura de Arturo Cruz e Rafael Córdoba Rivas, que haviam substituído Robelo e Chamorro no Governo de Reconstrução Nacional.

A sagacidade contrarrevolucionária do imperialismo contrasta ao mesmo tempo com a cegueira nacionalista da cúpula da FSLN. Fiel a um pacto implícito de não permitir a ida de guerrilheiros sandinistas para lutar em El Salvador ou Honduras, persegue, desarma e encarcera os militantes que tentam fazê-lo por sua conta. Junto com a direção cubana, refreia, além disso, a guerrilha salvadorenha organizada na FMLN para que não se lance a um assalto insurrecional, em meio ao forte ascenso operário e de massas que sacode El Salvador em 80-81, e inicie um “diálogo” com os “militares patrióticos e honestos” da Junta Militar que substituiu a velha ditadura, para constituir “um governo de ampla participação”. Esta política deixa passar o momento mais favorável para a insurreição em El Salvador, e quando o movimento de massas começa a ser golpeado pelos esquadrões da morte e a repressão do exército (o clímax do terror contrarrevolucionário vem com o assassinato do Monsenhor Romero), a guerrilha salvadorenha retrocede e se entrincheira em algumas zonas montanhosas, para manter uma guerra de posições com o exército, sob a óptica de negociar uma democratização do regime político.

O retrocesso revolucionário em El Salvador intensifica a ofensiva militar do imperialismo por meio das guerrilhas “contras”, situação que obrigará cada vez mais o sandinismo a golpear as conquistas que o movimento de massas conquistou após a queda da ditadura, para poder manter a orientação utópica da economia mista.


Economia mista e concessões ao movimento de massas

O comandante Jaime Weelock Román, outrora da Tendência Proletária, transforma-se no teórico do projeto econômico sandinista. É interessante, por isso, recordar como o define. Em uma entrevista a Martha Harnecker, em dezembro de 83, nos diz:

Deve-se perguntar se existe a possibilidade teórica de que a burguesia produza, sem poder, que possa limitar-se como classe a um poder produtivo, ou seja, que se limite a explorar seus meios de produção e que utilize estes meios para viver, e não como instrumentos de poder, de imposição. Eu creio que isso é possível na Nicarágua (…) Não se trata, portanto de substituí-los, mas de buscar fórmulas de vinculação, de integração.

A ideologia de colaboração de classes que se expressa nestas linhas não é muito diferente da ideologia do “socialismo do século XXI” defendido por Chávez. É o mesmo programa dos mencheviques durante a revolução russa, retomado pelo stalinismo para justificar sua política de aliança com algumas burguesias dos países capitalistas atrasados para resistir a pressão imperialista e tentar manter o status quo internacional. Trata-se da possibilidade de suprimir os antagonismos sociais para promover, a partir do Estado, um desenvolvimento capitalista nacional que permitisse o fortalecimento da classe operária e pudesse, em uma segunda etapa, instaurar a luta pelo socialismo.

Para suprimir os antagonismos sociais, o sandinismo “disciplinou” fortemente o movimento de massas mediante a repressão e tentou ao mesmo tempo fazer algumas concessões importantes: a criação de um sistema único de saúde, onde tanto os contribuintes da previdência social como os não contribuintes teriam acesso a todos os serviços médicos; a recuperação salarial e restaurantes com alimentação subsidiada em todos os centros de trabalho; centros de atenção infantil nos bairros populares; uma gigantesca campanha nacional de alfabetização e a extensão da cobertura do sistema educacional; terras para bairros populares; legislação progressista em matéria de proteção social; preços agrários subsidiados para controlar a inflação e a nacionalização do comércio exterior.

Para ganhar o favor da burguesia, pagou generosamente pela nacionalização de bancos quebrados, tentou uma boa relação com o imperialismo assumindo o pagamento dos juros da dívida externa e manteve a ofensiva para convencer o movimento de massas a não afetar a propriedade da burguesia patriótica. Já vimos anteriormente que não convenceu ninguém. Ameaçada sempre pelo ascenso do movimento de massas e por um regime que a marginaliza do poder político em todas as esferas do Estado, a burguesia opositora recebe as dádivas do sandinismo enquanto se dedica a descapitalizar as empresas e até a financiar os “contras”, alentada pelo incentivo à confrontação dado pelo imperialismo. Se a economia começa a recuperar-se em relação à queda de 78-79 (de um terço do PIB) e ainda em 1984, em meio ao clímax da ofensiva militar dos “contras”, consegue crescer 4,4%, é graças ao sacrifício do movimento de massas, que aplica a bandeira do sandinismo: “aumentar a produção”, e porque ainda está fluindo dinheiro de empréstimos internacionais.

Este ano, no entanto, a situação começa a tornar-se insustentável, com a metade do orçamento nacional sendo devorado pelo gasto da guerra aos “contras”. A direção sandinista começa a descarregar a crise sobre os trabalhadores e o povo: eliminam-se os subsídios aos grãos básicos, desaparecemos mercadinhos ou vendas populares, para garantir o abastecimento de produtos básicos a preços acessíveis aos setores populares, permite-se que a inflação dispare, os acordos coletivos são congelados e se impõe o Sistema Nacional de Organização do Trabalho e do Salário (SNOTS) para asfixiar as reivindicações salariais numa camisa de força. O sandinismo começa a eliminar as conquistas que o movimento de massas conseguira para poder desenvolver uma política de concessões para a burguesia opositora.


Os “contras” conseguiram penetrar no campesinato

Nestes primeiros anos, é no campo, onde o projeto de economia mista do sandinismo será mais desastroso. Para impulsionar o setor agroexportador e a grande produção, o sandinismo tentará manter a maior parte das grandes fazendas confiscadas na Área de Propriedade do Povo (administrada pelos sandinistas) enquanto congela o processo em relação às grandes propriedades da burguesia opositora.

Em algumas zonas fronteiriças onde os bandos contrarrevolucionários começaram a operar (Chontales, Matagalpa, Nueva Guinea, Madriz) não houve nenhuma reforma agrária. Foi assim como o descontentamento camponês começou a nutrir as filas da contrarrevolução, dando-lhes uma base social de apoio.

O pequeno produtor camponês viu-se afetado porque os preços dos produtos agropecuários eram tabelados caprichosamente abaixo do custo de produção e era obrigado a vendê-los ao ENABAS para abastecer as vendas dos bairros. Os produtos de quem tentava vendê-los por sua conta eram confiscados pelos Comitês de Defesa Sandinista.

Esta política, contraditoriamente, não garantiu um abastecimento adequado das cidades, porque deixava os capitalistas com as mãos livres para que especulassem, fazendo com que a população enfrentasse grandes dificuldades. Os salários começaram a deteriorar-se rapidamente, ao disparar o custo de vida.


A burguesia descapitaliza suas empresas

Enquanto isso, a política econômica em relação à burguesia agroexportadora estava cheia de estímulos para quem conseguisse uma alta produtividade. Os produtores cafeeiros e algodoeiros recebiam transporte gratuito para escoar sua produção ou mobilizar a mão de obra, com a convocação da juventude para participar de brigadas para a safra de cana-de-açúcar ou a colheita de algodão nos latifúndios da burguesia. “E agora o quê? Cortar café. E com um pouco de manha, cortaremos também a cana”, cantavam os brigadistas em muitas fazendas dos burgueses patrióticos, embora estes se dedicassem a descapitalizar e retirar os lucros do país. O engenho San Antonio, em Chinandega, propriedade dos Pellas, é uma prova disso. Quando o sandinismo finalmente o expropriou, era quase sucata.


A guerra aos “contras”: uma guerra perdida, sem expropriar a burguesia

Os “contras” terminaram sendo nutridos pelo descontentamento de todos estes setores camponeses e das comunidades indígenas do Atlântico: os miskitos, sumos e ramas, que se chocaram com o sandinismo ao reivindicar sua autonomia. Os comandos contrarrevolucionários conseguiram assim um salto qualitativo em sua estrutura organizativa, passando a constituir forças-tarefas que obrigaram o Exército Popular Sandinista (EPS) a mobilizar contingentes cada vez maiores para freá-las.

O clímax do enfrentamento militar ocorre em 1984, que abre caminho à ruína econômica do país. O sandinismo vê-se obrigado a responder politicamente, passando a repartir grandes extensões de terra da Área de Propriedade do Povo (APP) nas zonas onde os “contras” operam, e a negociar com os caciques miskitos, sumos e ramas.

A guerrilha “contra” é contida, mas a negação do sandinismo em expropriar a burguesia e apoiar-se nas massas centro-americanas para defender a revolução permite ao imperialismo golpear ainda mais a massas nicaraguenses.

O imperialismo está seguindo uma estratégia friamente calculada para desgastar o apoio popular ao sandinismo. Antes da administração Reagan decretar um embargo comercial e financeiro à Nicarágua em maio de 1985, a constituição do grupo de Contadora por vários governos latino-americanos (México, Venezuela, Panamá e Colômbia) já servia para iniciar um processo destinado a arrancar concessões do sandinismo, levando-o pouco a pouco a uma rendição na mesa de negociações. Os sacrifícios provocados pela guerra e a destruição do aparato produtivo do país. (calcula-se que os “contras” provocaram perdas de mais de US$ 2 bilhões, três ou quatro vezes o PIB de então) levaram as massas ao cansaço, uma situação habilmente explorada por Washington.

À medida que a guerra se prolonga e submete os setores populares a terríveis privações (em 1986, a cesta básica equivalia a oito vezes o salário mínimo de 10650 córdobas e o salário real valia 34% de seu valor em 1977), o custo em vidas humanas dos jovens assassinados pelos “contras” enquanto cumpriam com o Serviço Militar Obrigatório principia a provocar a deserção dos jovens de setores médios das cidades, que emigram massiçamente para a Costa Rica. O marasmo econômico leva quase ao aniquilamento do proletariado agrícola e fabril, que começa a cruzar em massa a fronteira da Costa Rica. (a população costarriquenha ronda os 4,8 milhões de habitantes, e provavelmente 1/5 é de imigrantes nicaraguenses). Incapaz de aprofundar a revolução, o sandinismo empreende a rota da rendição.


A rendição em Esquípulas e Sapoá

O imperialismo buscou desde o princípio uma negociação global com o sandinismo, com o desarmamento de todas as guerrilhas centro-americanas e a integração da burguesia opositora ao regime político nicaraguense. A partir do Documento de Objetivos de Contadora e das três Atas de Contadora, o sandinismo comprometia-se a não ajudar a guerrilha da FMLN, a instaurar um regime democrático-burguês com eleições periódicas, a respeitar os vizinhos e aceitar o controle e verificação do armamento na região.

Com o apoio da direção castrista, desde 1983 a cúpula do FSLN realizou uma operação para suprimir a ala mais lutadora da guerrilha salvadorenha e enquadrá-la na política da negociação. Estamos falando do assassinato de Cayetano Carpio (Marcial) em Manágua, o principal comandante das Forças Populares de Libertação (FPL) Farabundo Martí, a guerrilha mais poderosa, que defendia uma estratégia de destruição da Guarda Nacional e a tomada do poder em El Salvador. As coisas se apresentam como se Marcial houvesse assassinado a Comandante Ana Maria por diferenças políticas e, arrependido, suicidara-se. Foi uma operação no pior estilo stalinista, destinado a desprestigiar e isolar os seguidores das posições de Marcial e, se fosse o caso, como efetivamente sucedeu em algumas frentes, a exterminá-los. A FMLN passa ao mesmo tempo a constituir-se como um aparato guerrilheiro unificado, catapultando o Partido Comunista stalinista, que não tivera maior protagonismo até então, o que leva Shafik Handall, secretário geral do PC, a dominar sua direção até há dois anos, quando sofre um enfarto mortal.

A cúpula sandinista dá o passo final neste curso de capitulação em agosto de 1987, ao assinar o Acordo de Esquípulas, que estabelecia o cessamento da luta armada e a reintegração das guerrilhas aos regimes burgueses dos países-centro americanos, em troca de anistias, garantias eleitorais e liberdades democráticas. No ano seguinte, a negociação de Sapoá concretiza passos para a reincorporação dos “contras” em Nicarágua: a liberação de uma região de 21000 km² para eles, a libertação de guardas somozistas presos e a permissão de ajuda “humanitária” do imperialismo para seus mercenários; abrindo finalmente um processo para as eleições de 90, quando se concede a lei de autonomia municipal reclamada pela guerrilha “contra”.

É interessante chamar a atenção para o fato de que o apoio do imperialismo aos “contras” começa a decair desde 1987. Para dizê-lo um pouco grosseiramente, com suas concessões e a política econômica contra as massas populares, o sandinismo conseguiu convencer Reagan de suas verdadeiras intenções.


Matando o povo de fome para manter os incentivos à burguesia agroexportadora

O sandinismo aprofunda uma orientação econômica sinistra para o movimento de massas: tentar recuperar a economia sustentando o setor exportador. Libera os preços dos produtos agrícolas, aprova uma lei de investimentos estrangeiros que permite a repatriação total ou parcial dos lucros e do capital investido, desmantela o monopólio do comércio exterior. Dos dólares a preços irrisórios para os grandes importadores (que fizeram um grande negócio enquanto a inflação disparava e eram necessários 40 mil córdobas por dólar no início de 1988), passam a duas desvalorizações sucessivas, favorecendo abertamente os exportadores (ao aumentar o câmbio oficial). Estes eram premiados com incentivos em dólares enquanto o ataque aos trabalhadores era brutal: 10 mil demitidos com a redução do Estado e a indexação dos empréstimos à inflação, disparando de forma indiscriminada as taxas de juros, que passam de 12% anuais a 42% mensais. E, embora a eliminação do Sistema Nacional de Organização do Trabalho e do Salário (SNOTS) rompesse a camisa de força dos patamares salariais fixos que este sistema estabelecia, o aumento dos salários ficou subordinado à maior produtividade, ou seja, ao aumento da exploração. O empobrecimento é tão brutal que foi preciso distribuir cestas básicas, chamadas de gallo pinto azucarado1. Contudo, depois da devastação da costa atlântica provocada pelo furacão Juana em outubro de 1988, o sandinismo decide limitar esta ajuda aos afetados pela catástrofe. Enquanto se mantém, é claro, os incentivos aos exportadores (que chegarão a alcançar US$ 20 milhões, cerca de 10% do valor das exportações). O sandinismo tem uma política econômica que aponta para a coerentização do funcionamento do capitalismo na Nicarágua, eliminando os mecanismos de proteção da classe trabalhadora e de controle da anarquia do mercado que havia tentado introduzir na primeira fase da revolução. O resultado é um empobrecimento brutal das massas populares, sua base social de apoio. Um grande favor feito à oposição burguesa, por lhe facilitar a vitória nas eleições e lhe haver economizado o custo de implementar o grosso do “ajuste”.


1990: uma mudança de regime burguês pactuada com o imperialismo

A implantação dos acordos de paz de Esquípulas e Sapoá pôs na ordem do dia a abertura do processo eleitoral de 1990 para favorecer a coalizão burguesa que o imperialismo promoveu, com o objetivo de tentar arrancar o sandinismo do poder pela via eleitoral. Praticamente todos os grupos burgueses de oposição se põem de acordo para apoiar a candidatura de Violeta Chamorro, através da União Nacional Opositora (UNO)

O sandinismo pactuou com o imperialismo a garantia de que entregaria o poder se perdesse as eleições, recebendo em troca a segurança de que as propriedades e privilégios adquiridos pela cúpula sandinista não seriam tocados. Este é um aspecto chave, porque os administradores e a casta militar sandinista vinham adquirindo privilégios através de uma gestão cada vez mais corrupta no setor econômico do Estado (APP) e na administração pública. A cúpula sandinista era conivente porque vinha de um processo de simbiose com o setor burguês agroexportador, através de alguns negócios dos Ortega e outros Comandantes com latifundiários da “burguesia patriótica”.

As instâncias de direção do sandinismo começavam a construir uma ideologia nos comitês de base, afirmando que se havia chegado a uma conjuntura de equilíbrio militar com a contrarrevolução onde nenhuma das duas forças enfrentadas tinha capacidade de derrotar o adversário e determinar o controle total do poder político. Em meio à crise econômica, isso levava à abertura e à negociação com o imperialismo, e à aceitação de um governo transicional da direita, enquanto se fortaleciam de novo.

Com o triunfo eleitoral de Violeta Chamorro, o processo de rapina nos três meses anteriores à cessão do governo pôs em evidência a vontade da cú- pula sandinista de conformar-se como uma fração burguesa, apropriando-se de boa parte dos bens do Estado e da propriedade confiscada do somozismo e, de forma clientelista, repartindo entre suas bases mais fiéis algumas migalhas, desde veículos até casas. Aproveitando-se do controle do poder judiciário, os quadros sandinistas apressaram-se em legalizar mansões, fábricas e fazendas que haviam organizado para mantê-las em suas mãos.

Produz-se assim uma mudança qualitativa na natureza social da Frente Sandinista, que torna-se o principal partido burguês da Nicarágua, ao entrar com tudo num jogo de alianças e compromissos com os outros partidos burgueses (particularmente com o Partido Liberal Constitucionalista de Arnoldo Alemán) para deter importantes quotas de poder no aparato do Estado, ainda que se visse obrigado a sair do Executivo em 90.

Desde as primeiras horas do triunfo de Chamorro, Ortega encarregou-se de frear os choques que se produziram, quando seus partidários começaram a sair às ruas, pedindo que não se entregasse o poder. Demagogicamente, dizia que governariam de baixo.

Esta transformação do sandinismo deu-se também em outro nível, com a separação formal entre o exército e a cúpula sandinista. Processo iniciado no próprio dia das eleições, ao aceitar que os membros do exército e da polícia não votassem, o que prejudicava eleitoralmente os sandinistas. Ao começar a desarmamento dos “contras” depois da negociação de Sapoá, o exército começou a ser desmobilizado e havia sido criada uma Academia para a profissionalização dos oficiais. O governo de Chamorro limita-se a se desfazer do setor mais plebeu da oficialidade, conservando as patentes de sobrenomes oligárquicos como o chefe do exército Joaquín Cuadra Lacayo. É muito importante ter presente que as patentes militares provenientes do sandinismo garantiram desde então, sob os governos de Chamorro, Alemán e Bolaños, a segurança da “democracia” na Nicarágua. Sem nenhuma resistência da oficialidade, o governo de Chamorro reduziu significativamente o exército, tal e como exigia o imperialismo, e finalmente será o próprio Daniel Ortega que, recentemente, se desfez dos foguetes terra-ar entregues pelos soviéticos nos anos oitenta.


A herança do sandinismo: um regime democrático-burguês instável e corrupto

O sandinismo deixou de ser uma formação nacionalista pequeno-burguesa e com isso mudou também sua relação com o movimento de massas. O enriquecimento ilícito através da rapina afastou o apoio de uma parte dos trabalhadores e do povo, que se orientará eleitoralmente rumo aos partidos burgueses, ante a falta de alternativas de esquerda. Isto explica porque teve que esperar quase duas décadas para poder retornar ao poder pela via eleitoral. A base e os quadros intermediários da Frente Sandinista, profundamente desmoralizados, não foram capazes de produzir nenhum agrupamento à esquerda.

Para retomar o poder nas últimas eleições, o sandinismo teve que retroceder ainda mais, destruindo as últimas conquistas remanescentes da revolução, como o direito ao aborto terapêutico, para que os religiosos chamassem o voto em Ortega. Para não ter nenhuma dúvida do caráter burguês e contrarrevolucionário de sua cúpula, não só é útil trazer a notícia, de que a Revista Forbes considera Humberto Ortega o principal milionário da América Central, com investimentos muito importantes na Costa Rica e Honduras. Mais importante é ter claro que o sandinismo regressou ao poder depois de permitir que fosse aprovado o Tratado de Livre Comércio entre a América Central e os Estados Unidos em 2005. Poderiam ter bloqueado sua aprovação na Assembléia Nacional, mas depois de alguma celeuma deixaram que se votasse. Os Ortega apostavam que a mão de obra miserável da Nicarágua lhes permitiria ganhar a concorrência com a Costa Rica na atração de investimentos estrangeiros (tal qual sucedia nos tempos de Somoza, uma das razões par que a burguesia costarriquenha desse apoio ao sandinismo naquela época).

Barganhando a proteção ao corrupto ex-presidente Alemán, o sandinismo conseguiu a conservação de uma importante quota de poder na Assembléia Nacional, no aparato judiciário e nas prefeituras. Agora que está no governo, recorrendo às piores táticas (desde a anulação de alguns partidos oposicionistas até os ataques com gangues durante as campanhas eleitorais) defende um regime que tenta descarregar a crise sobre as já empobrecidas e sofridas massas nicaraguenses.

No próximo ascenso revolucionário, as massas operárias e populares da Nicarágua terão que romper definitivamente com a direção sandinista e não vacilar na hora da expropriação dos burgueses sandinistas. Os marxistas revolucionários da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) trabalhamos para construir o partido revolucionário que dirija este processo.

Notas:
1 Gallo pinto: prato da culinária nicaraguense considerado um símbolo nacional, composto de arroz, feijão e pimenta. A cesta básica continha, ainda, açúcar, daí o nome de gallo pinto azucarado


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