segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O primado da Política: Revolução Permanente e Transição - Alvaro Bianchi

Artigo retirado da revista Outubro


A desagregação da União Soviética reacendeu um debate que já parecia ter esgotado todos os seus argumentos. De fato, a discussão sobre a chamada natureza social da União Soviética ganhou um novo impulso, seja porque o acesso a fontes até então proibidas tornou-se possível, seja porque se tornou necessário, agora, fornecer uma explicação coerente para a derrocada dessas sociedades.

Para além dos muros que separavam povos, caíram, também, os muros que isolaram, durante décadas, as diferentes posições críticas às sociedades do chamado Leste europeu.1 Posições que antes permaneciam hermeticamente fechadas, fornecendo explicações auto-alimentadas, sempre as mesmas, para processos sobre as quais a história ainda não havia dado a palavra final, foram obrigadas a criar e recriar um diálogo que havia recebido uma solução de continuidade já na década de 70. Não todas, é claro, mas, principalmente, aquelas
correntes que aceitavam os desafios políticos impostos pelas profundas transformações daquelas sociedades, empenharam-se nesse debate.

Não podemos, entretanto, acreditar que setenta anos de discussões sobre o tema se passaram em vão. Ainda mais que essas discussões repercutiam em opções políticas que não deixaram de ter sérias conseqüências sobre o desenvolvimento da esquerda mundial, principalmente da esquerda revolucionária anti-stalinista. E aqueles que alimentarem a ilusão de recomeçar do zero estarão cometendo um grave erro.

A agenda de discussão sobre a natureza social das sociedades do “Leste europeu” deve levar a trajetória desse debate em conta. Um programa de pesquisa sobre este tema pode, portanto, desenvolver três linhas de trabalho de maneira concomitante e correlata:

1) Uma reconstrução do pensamento daqueles que primeiramente abordaram este tema e que, por isso mesmo, assumiram estatuto de classicidade. Trata-se, em grande medida, da obra de militantes políticos. Obra, portanto, que deve ser avaliada sob uma dupla perspectiva: a da construção e um critério explicativo e a da prática que ele alimentava. Falamos aqui da obra, em primeiro lugar de Lenin e Leon Trotsky, mas não podemos esquecer autores como Christian Rakovski, Antonio Gramsci, Karl Korsh e Bruno Rizzi.

2) Uma reavaliação da obra de alguns autores, principalmente da década de 70, que trabalharam sobre esse problema tendo como parte de sua reflexão a obra dos clássicos, mas apresentando sua própria contribuição ao debate. Dentre o grande número de autores que compõem este bloco sublinhamos, pela importância e repercussão, a obra de Charles Bethelheim e do grupo de pesquisadores franceses articulado em torno da revista Communisme, de inspiração maoísta; e daqueles autores que identificados com a Quarta Internacional desenvolveram um debate, em grande parte desconhecido do público e boa parte registrado apenas em documentos de pequena circulação, mas, ao mesmo, tempo, extremamente rico. Dentre estes últimos destacamos Tony Cliff, dirigente do Socialist Workers Party, da Inglaterra; Ernest Mandel, membro do Secretariado Unificado da Quarta Internacional; e Nahuel Moreno, fundador da Liga Internacional dos Trabalhadores.

3) Por último um trabalho de pesquisa que, levando em conta os autores acima citados e as novas condições de desenvolvimento do trabalho científico depois da abertura dos arquivos soviéticos, retome, sob um novo prisma, velhos problemas colocados pela difícil transição ao socialismo, bem como aborde os novos problemas trazidos à luz pela “transição ao capitalismo”.2

Se enunciamos este ambicioso programa de pesquisa não foi, entretanto, para cumpri-lo neste pequeno espaço. Foi, antes de mais nada, para apontar a direção que esse debate deveria tomar para derrubar definitivamente os muros que dividiram a esquerda anti-stalinista e, ao mesmo tempo, justificar a importância do resgate histórico da posição que Leon Trotsky defendeu nesse debate. Se procedemos a tal tentativa de resgate não é, portanto, imbuídos do espírito do arqueólogo, e sim do pesquisador e militante preocupado com os problemas da transição ao socialismo.


A teoria do desenvolvimento desigual e combinado

A análise da obra de um autor como Leon Trotsky coloca uma grande número de problemas que é preciso ter em mente. Trata-se, em primeiro lugar, de uma obra de grande extensão que se desenvolve de maneira não linear, apresentando inflexões, rupturas e transformações implícitas e explícitas em seu interior. Trata-se, em segundo lugar, da obra de um militante político, de um personagem ativo dos acontecimentos históricos aos quais se refere.

As particularidades de tal obra nos obrigam, portanto, a tomar certos cuidados, para valorizá-la de maneira adequada. É preciso verificar o estatuto que cada texto, grande parte artigos de polêmica ou documentos partidários, ocupa no interior da própria obra. É preciso cotejá-la com a prática política do autor. Tal procedimento não implica em uma seleção arbitrária daquilo que é relevante e do que não. Pelo contrário, ele exige que, antes de começarmos, tracemos a linha que percorre o pensamento do autor, ou seja, exige que identifiquemos qual é o problema chave que percorrerá sua obra. Em Trotsky este problema não é, senão, a revolução mundial, corolário de sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado. 3

Os primeiros esboços dessa teoria encontram-se presentes em 1905 e Balanço e perspectivas, as duas obras que Leon Trotsky consagrou a análise da primeira revolução operária do século. Nestes dois textos, o ponto de partida é a análise do capitalismo russo e suas profundas relações com o capitalismo europeu. É a inserção da Rússia na economia européia o que a iria distinguir. Segundo Trotsky, “a sociedade russa que se formava sobre uma determinada base econômica interior estava sempre sob o influxo, e inclusive a pressão, do meio sócio-histórico exterior”.4

Pressão essa que se exercia no terreno da economia, mas também, senão principalmente, na arena política. Cercada por potências estrangeiras, a Rússia viu-se empurrada para o capitalismo em condições ditadas pelo primitivismo de sua economia nacional. Faltava ao país dos czares aquele dinamismo interno que havia permitido a transformação de pequenos produtores em empresários capitalistas. O impulso transformador não viria de baixo para cima. Teria que vir, então, de cima para baixo e de fora para dentro.

As condições sob as quais a pressão externa foi exercida levaram o Estado russo a exercer o papel de protagonista na construção do capitalismo naquele país. Dessa forma, o mercado mundial condicionou o desenvolvimento do capitalismo na Rússia através da mediação do Estado czarista. O capitalismo russo “aparece como filho do Estado”.5

O império dos czares, afirma Trotsky, não adentra ao capitalismo pela porta dos fundos e sim o faz, com pompa e circunstâncias, pela porta da frente do capitalismo financeiro. Não de maneira espontânea e sim, sob a constante pressão da Europa: “A nova Rússia tomou um caráter particular na medida em que recebeu o batismo capitalista, na segunda metade do século XIX, do capital europeu, que se apresentou sob sua forma mais concentrada e abstrata, como capitalismo financeiro”.6

No clássico História da revolução russa, Trotsky retomará estas idéias desenvolvidas em sua juventude, formulando, desta vez de maneira explícita, a teoria do desenvolvimento desigual e combinado. O capitalismo é, aqui, entendido como uma totalidade que “prepara e, até certo ponto, realiza a universalidade e permanência na evolução da humanidade”.7 A universalização do capitalismo acelerou tempos, mergulhando as economias nacionais de países “atrasados”, para usar a linguagem da época, em um contexto dominado por um mercado mundializado.

O capitalismo chegava a galope. Recusando a teoria evolucionista das etapas históricas Trotsky assim enunciou as conseqüências dessa aceleração histórica: “O privilégio dos países historicamente atrasados — que é realmente — está em poder assimilar as coisas, ou melhor dizendo, em serem obrigados assimilá-las, antes do prazo previsto, saltando por cima de toda uma série de etapas intermediárias.”8

Diferentes fases do processo histórico confundiriam-se, assim, no interior de uma mesma formação social, atribuindo-lhe uma fisionomia própria. É claro, alerta Trotsky, que a capacidade de saltar essas fases nunca é absoluta. Ela “encontra-se condicionada em última instância pela capacidade de assimilação econômica e cultural do país”.9 Vale lembrar que a importação da técnica ocidental durante o reinado de Pedro I produziu, na Rússia um inusitado agravamento do regime servil como forma fundamental de organização do trabalho.

A discussão sobre a maturidade da Rússia para a revolução socialista, que havia caracterizado o marxismo legal de Struve e o menchevismo de Plekhanov, recebia uma resposta inovadora e extremamente poderosa: a maturidade para a revolução socialista não é definida pelo desenvolvimento nacional e sim pela inserção da Rússia na economia mundial. As condições objetivas para a revolução eram, assim, definidas externamente à Rússia: “as condições objetivas prévias de uma revolução socialista já foram criadas pelo desenvolvimento econômico dos países capitalistas avançados”.10

E relembrando a lei do desenvolvimento desigual, já enunciada por Lenin em sua obra O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, Trotsky afirma: “Dessa lei do desenvolvimento desigual da cultura deriva-se outra, que, faltando um nome mais adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das diferentes etapas do caminho e à confusão de diferentes fases, à amalgama de formas arcaicas e modernas.”11

A teoria do desenvolvimento desigual e combinado é, na verdade, uma teoria do desenvolvimento do capitalismo em sua fase imperialista. É importante notarmos, aqui, que ao contrário de Lenin, Nicolai Bukharin e Rosa Luxemburgo não há em Trotsky uma obra econômica propriamente dita. Existe sim uma teoria do imperialismo, presente de maneira mais ou menos explícita em suas obras, mas não uma teoria econômica do imperialismo. Ou seja, não há em Trotsky um “discurso econômico”, muito embora existam observações sobre a economia mundial em vários pontos de sua obra.12

A teoria do imperialismo que perpassa a obra do marxista russo é, ao mesmo tempo, econômica e política. Ela coloca em seu centro a contradição fundamental existente entre a nação-Estado e a internacionalização crescente das forças produtivas, transformando o mercado mundial em um elemento decisivo para a apreensão do imperialismo. Contradição esta que se manifesta, por um lado nas contradições entre a lei do valor no mercado mundial e a regulamentação estatal da economia no interior das fronteiras nacionais e, por outro, naquelas que existem entre os países imperialistas e os países coloniais e semicoloniais.13

Há, portanto, uma dimensão política inerente ao conceito de imperialismo utilizado por Trotsky. Uma dimensão que é colocada pela aguda observação sobre as crescentes contradições econômicas, sociais e políticoideológicas próprias à época imperialista. Tais contradições ficam ainda mais evidentes nas soluções capitalistas à crise do capitalismo — a contra-revolução e a guerra — e no lugar ocupado pelo Estado na regulação do capitalismo, lugar esse que já havia sido identificado por Trotsky, no caso russo, em 1905, por ocasião de suas análises da revolução daquele ano.

A teoria do desenvolvimento desigual e combinado permitiu a Trotsky pensar a unidade dialética existente entre economia e política situando-se, imediatamente no nível da política e, mais especificamente, no nível da atualidade da revolução proletária.


Teoria da revolução e transição ao socialismo

O lugar da teoria do desenvolvimento desigual e combinado fica ainda mais claro na teoria da revolução permanente. Ao longo de sua atribulada vida, Trotsky cunhou pelo menos três formulações da teoria.

A primeira delas nasceu do entroncamento da já citada análise do desenvolvimento do capitalismo na Rússia com a experiência da própria revolução de 1905 e daquilo que ela havia aportado de novo à história das revoluções: a universalização da greve geral como arma privilegiada da luta operária e a construção de organismos de poder operário denominados soviets.

Assim como a derrota das revoluções de 1848 mostraram a Marx e Engels que a burguesia havia abandonado o caminho da revolução, os acontecimentos de 1905 serviram para mostrar, na Rússia, os fortes vínculos existentes entre a burguesia e o regime autocrático. A luta pela democracia na Rússia teria, inevitavelmente, que ser feita contra a burguesia e não por ela; deveria, afirmava Trotsky, conduzir o proletariado ao poder. A realização das tarefas democráticas pela ditadura do proletariado colocaria na ordem do dia tarefas socialistas.

Tome-se o caso da jornada de trabalho de oito horas, reivindicação que, em si, não era contraditória com a existência do capitalismo. Mas num quadro revolucionário a coisa muda de figura. A jornada de oito horas encontraria a resistência organizada dos capitalistas e enfrentaria, até mesmo, o lock out patronal e demissões ou ameaças de demissões em massa. O que faria, nessa situação, um governo operário. Não restaria outra saída que a expropriação das fábricas fechadas ou daquelas que demitirem e a organização da produção pelos trabalhadores. A concretização de uma reivindicação mínima dos trabalhadores, pelo governo operário conduziria, assim, à expropriação da burguesia.

A social-democracia russa não pode governar, conclui Trotsky, prometendo aos trabalhadores não abrir mão de seu programa mínimo e, ao mesmo tempo, prometendo à burguesia não ultrapassá-lo. Na ditadura do proletariado, a diferença entre o programa mínimo e o máximo se esfuma.

Só é possível realizar o programa mínimo enfrentando o capital. Revolução democrática e revolução socialista formam assim uma unidade, a unidade da “revolução ininterrupta, que entrelaçava a liquidação do absolutismo e do sistema de servidão civil com a revolução socialista através de uma série de conflitos sociais em agudização paulatina, através do surgimento de novas camadas sociais entre as massas e de contínuos ataques do proletariado aos privilégios econômicos e políticos das classes dominantes.”14

A teoria da revolução permanente em sua formulação de 1905 pode ser resumida como se segue: “a vitória completa da revolução democrática na Rússia somente pode ser concebida na forma de ditadura do proletariado seguido pelos camponeses. A ditadura do proletariado, que inevitavelmente colocaria sobre a mesa não somente tarefas democráticas, como também socialistas, daria, ao mesmo tempo, um impulso vigoroso à revolução socialista internacional. Somente a vitoria do proletariado do Ocidente poderia proteger a Rússia da restauração burguesa, dando-lhe a garantia de completar a implantação do socialismo.”15

Posição divergente assumiam, à época, tanto os mencheviques, como os bolcheviques liderados por Lenin. A posição dos mencheviques, teorizada por Plekhanov, afirmava o caráter burguês da revolução. Esse caráter seria determinado pelas próprias tarefas colocadas para a revolução e pelo papel dirigente que atribuíam à burguesia liberal na luta contra o anacrônico absolutismo russo. De acordo com Plekhanov, “o único objetivo não fantástico dos socialistas russos somente pode ser, atualmente, por um lado, a conquista de instituições políticas livres e, por outro, a elaboração dos elementos necessários à criação do futuro partido socialista operário da Rússia.”16

Trotsky resumia essa concepção das seguinte maneira: “a idéia menchevique da revolução, despojada de suas episódicas estratificações e desvios individuais, consistia no seguinte: a vitória da revolução burguesa na Rússia só era possível sob a direção da burguesia liberal e deve dar a esta última o poder. Depois, o regime democrático elevaria o proletariado russo, com um êxito muito maior que até então, ao nível de seus irmãos maiores ocidentais, pelo caminho da luta rumo ao socialismo.”17

Essa caracterização da burguesia liberal definia uma determinada política de alianças. Plekhanov não se cansava de repetir: “Sem assustar ninguém com o ‘fantasma vermelho’, por enquanto ainda distante, tal programa político atrairia a nosso partido revolucionário a simpatia de todos os que não são inimigos sistemáticos da democracia; juntamente com os socialistas poderiam subscrevê-lo muitíssimos representantes de nosso liberalismo”.18

A posição dos bolcheviques era outra. Apesar de definir a revolução como burguesa pelas tarefas que a ela estavam colocadas, Lenin descartava toda aliança com a burguesia liberal. O problema fundamental da revolução burguesa na Rússia atrasada era o da questão agrária. À política de alianças defendida por Plekhanov, Lenin contrapunha a aliança do proletariado com o campesinato e afirmava que somente uma ditadura destas duas classes, com os operários sob a direção do Partido Bolchevique, daria condições para a revolução cumprir as tarefas que para ela estavam colocadas. Essa ditadura seria não uma ditadura socialista, mas uma ditadura democrática. Evidentemente que uma ditadura com tal caráter poderia ser hegemonizada pelo campesinato, a classe mais numerosa de então.19

De uma forma sintética podemos notar que as três concepções, que se desenhavam em 1905, atribuíam tarefas, sujeitos sociais e sujeitos políticos diferentes para a revolução russa. Os mencheviques falavam de uma revolução com tarefas democráticas, dirigida pela burguesia. Os bolcheviques atribuíam a ela um caráter também democrático, mas afirmavam que o papel dirigente cabia aos operários e camponeses e ao partido revolucionário papel de sujeito político. Trotsky falava em revolução socialista, com o proletariado a sua frente, mas afirmava seu caráter espontâneo (ver o quadro).

Embora as tarefas da revolução Russa e seu sujeito social estivessem claramente definidos no pensamento de Trotsky desde aquela época, é só em 1917 que ele acrescentará a sua teoria, o papel dirigente do partido, ou seja, é só aí que ele definirá o sujeito político de tal transformação social. Temos, então, uma segunda formulação da teoria da revolução permanente. Tal formulação, ganhou corpo com a adesão de Trotsky e da Organização Interdistrital (Mezharaionka) ao Partido Bolchevique e se transformou em letra no livro Lições de Outubro, escrito em 1924.20


O encontro de Trotsky com o bolchevismo não resultou apenas de sua compreensão da questão do partido como também foi possibilitado pela vitória de Lenin na conferência realizada pelos bolcheviques em abril de 1917. Nas teses que apresentou à conferência, Lenin abandonou a idéia de uma revolução democrática na Rússia e afirmou o caráter socialista da revolução, opondo-se a um grande número de velhos bolcheviques, entre os quais Kamenev e Zinoviev. O giro promovido por Lenin no interior do Partido Bolchevique deu a Trotsky a certeza de que não havia mais razões para continuarem a caminhar separados pela mesma trilha.21

Chama a atenção que Trotsky, mesmo depois de 1917 e particularmente na obra Lições de Outubro, não procurou generalizar a teoria da revolução permanente. Foi somente em fins de 1929, já no seu exílio, que ele afirmou que tal teoria deveria ser apresentada “em ligação com o caráter, os laços internos e os métodos da evolução internacional em geral” e, mais especificamente, “para os países de desenvolvimento burguês retardatário (...) coloniais e semicoloniais”.22 Universalizada de tal forma, a teoria da revolução permanente aparece em sua terceira versão.

Foi a revolução chinesa de 1927 e a política da Internacional Comunista stalinizada o que levou Trotsky a debruçar-se de novo sobre tal teoria. Para Mandel, a demora de Trotsky em generalizar sua teoria se deveu entre outras razões à oposição que a ela manifestavam seus aliados da Oposição Unificada (Zinoviev e Kamenev), mas também à resistência demonstrada por alguns membros da Oposição de Esquerda (Karl Radek e Evgeni Preobrazhenski). A dimensão do processo revolucionário na China fez com que abandonasse sua atitude diplomática e encarasse frontalmente o problema, mesmo às custas de perder aliados.23

É dessa época a troca de correspondência entre Trotsky e Preobrazhenski sobre os problemas da revolução chinesa. Nestas cartas, Trotsky trava viva polêmica sobre a natureza social da revolução chinesa e a política de alianças levada à cabo pelo Partido Comunista Chinês. Discordando tanto da Internacional Comunista como de seu camarada da Oposição, Trotsky rejeitava a bandeira de “ditadura democrática” e afirmava a necessidade do proletariado conquistar o poder sob a direção do Partido Comunista Chinês.24

A versão mais acabada dessa formulação da teoria aparece em A revolução permanente, obra concluída em novembro de 1929. Como seria de se esperar, longas páginas são dedicadas à revolução chinesa. Mas, o que para nossos propósitos vale a apenas destacar são os três aspectos da teoria da revolução permanente, explicitados no capítulo introdutório de tal obra.25 São eles:

1) O cumprimento das tarefas democráticas nos países burgueses atrasados conduz, diretamente, à ditadura do proletariado, que coloca as tarefas socialistas na ordem do dia. Tornava-se, assim, permanente o processo revolucionário que ia da revolução democrática à transformação socialista da sociedade.

2) O caráter internacional da revolução socialista é o resultado do estado da economia e da estrutura social do planeta. O internacionalismo, longe de ser um princípio abstrato é o reflexo teórico e político “do caráter mundial da economia, do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes. A revolução socialista começa no âmbito nacional mas nele não pode permanecer. A revolução proletária não pode ser mantida em limites nacionais senão sob a forma de um regime transitório, mesmo que este dure muito tempo, como demonstra o exemplo da União Soviética. No caso de existir uma ditadura proletária isolada, as contradições internas e externas aumentam inevitavelmente e ao mesmo passo que os êxitos. Se o Estado proletário continuar isolado, ele, ao cabo, sucumbirá vítima dessas contradições. (...) A revolução internacional, a despeito de seus recuos e refluxos provisórios, representa um processo permanente.”26

3) A conquista do poder é apenas o início de um longo processo no qual “todas as relações sociais se transformam no transcurso de uma luta interior contínua. (...) Os acontecimentos que se desenrolam guardam necessariamente caráter político, dado que assumem a forma de choques entre os diferentes grupos da sociedade em transformação. As explosões da guerra civil e das guerras externas se alternam com os períodos de reformas ‘pacíficas’. As profundas transformações na economia, na técnica, na ciência, na família, nos hábitos e nos costumes, completando-se, formam combinações e relações recíprocas de tal modo complexas que a sociedade não pode chegar a um estado de equilíbrio. Nisto se revela o caráter permanente da própria revolução socialista.”27

Em sua formulação, tal como apresentada no texto de 1929, a teoria da revolução permanente é, ao mesmo tempo, uma teoria da revolução e uma teoria da transição ao socialismo baseada na permanente transformação das relações sociais. Este aspecto, o terceiro em nossa enumeração, tem, com bastante freqüência, escapado à atenção dos comentaristas, o que tem impedido não só de compreender o alcance dessa teoria, como tem produzido uma dissociação entre ela e a discussão sobre a natureza social da União Soviética.28

Tal desatenção é totalmente injustificada. Trotsky é claro ao afirmar a dimensão internacional da construção do socialismo, rejeitando a teoria do socialismo em um só país. Mas não é menos claro ao colocar a necessidade de transformação contínua das relações sociais. De todas as relações sociais. Mas se isso não estivesse claro no texto, ainda haveria seu esforço, durante os anos chaves da guerra civil, em discutir os problemas da cultura e da vida cotidiana na Revolução Russa.29


Sobre a natureza social da União Soviética

Para compreendermos a apreciação de Trotsky sobre a natureza social da União Soviética é preciso ter como ponto de partida a teoria da revolução permanente. Entre as maiores realizações da revolução de outubro de 1917 na Rússia está, sem dúvida, a expropriação da grande burguesia. A fração stalinista, já a partir de meados da década de 20, identificou essa expropriação com o advento do socialismo. Com isso, afirmava a possibilidade de construção do socialismo em um só país.

Trotsky combateu até o fim de sua vida essa identidade, afirmando que a expropriação não é suficiente para definir como socialista a natureza social da Rússia. Para Trotsky, “a transformação das formas de propriedade, não soluciona a questão do socialismo, apenas a coloca.”30

Ou seja, a transformação das relações de propriedade representa apenas o primeiro passo da transição ao socialismo. Para tornar-se social, a propriedade privada tem que passar inevitavelmente pela estatização, afirma Trotsky. Mas a condição necessária não é suficiente. A propriedade só se torna de todo o “povo”, ou seja, só é plenamente socializada, quando desaparecem os privilégios e as distinções sociais.

E ressaltando a necessidade de transformar profundamente as relações sociais, ou seja, a necessidade da permanente revolução (da revolução permanente) dessas relações, afirma: “A passagem das fábricas para o Estado mudou a situação do operário apenas juridicamente. Na realidade, ele é compelido a viver necessitando trabalhar um certo número de horas por um dado salário. As esperanças que teve outrora o operário no partido e nos sindicatos, transportou-as, após a revolução, para o Estado criado por ela. Mas o funcionamento útil deste Estado foi limitado pelo nível técnico e cultural. Para melhorar este nível, o novo Estado recorreu aos velhos métodos de pressão sobre os músculos e os nervos do trabalhador. Formou-se todo um corpo de estímulos. A gestão da indústria se tornou extremamente burocrática. Os operários perderam toda a influência sobre a direção das fábricas. Com o pagamento por peça, as duras condições de existência material, a ausência de liberdade para se deslocar, com a terrível repressão policial penetrando a vida de cada fábrica, o operário dificilmente se poderá sentir um ‘trabalhador livre’. Na burocracia ele vê um chefe, no Estado um patrão. O trabalho livre é incompatível com a existência de um Estado burocrático”.31

A revolução russa, portanto, longe de realizar o socialismo não fez senão inaugurar uma fase de transição entre o capitalismo e o socialismo.32 Para Trotsky, após a revolução as tendências socialistas e capitalistas continuam a se enfrentar no interior da sociedade russa após a vitória da revolução e de maneira ainda mais intensa após a morte de Lenin.33

Essa fase transitória só poderia ser completada com a vitória da revolução socialista em escala mundial. O mercado capitalista mundial cria entraves econômicos e estimula forças políticas de tal monta que transformam aquele setor do mundo no qual a burguesia foi expropriada em uma fortaleza sitiada.

A inserção da Rússia no mercado mundial havia, na análise de Trotsky, permitido à Rússia saltar etapas e realizar a primeira revolução socialista vitoriosa da história. Mas o fato de haver chegado primeiro à revolução não significava que a Rússia fosse o primeiro país a chegar ao socialismo, o que teria como pressuposto o fim da coerção do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho criada pelo capitalismo.

A derrota da revolução no Ocidente (Alemanha e Hungria) e no Oriente (China), isolou a revolução russa, adiando a possibilidade de superação definitiva do capitalismo. A fração stalinista transformou esse fato em teoria afirmando a possibilidade de construção do socialismo em um só país. Não foi, entretanto, original. Em sua luta com a fração stalinista, Trotsky relembra que foi Georg von Vollmar, um dos líderes da ala revisionista da social-democracia alemã, um dos primeiros a pensar um “Estado socialista isolado”.34

Para Vollmar, uma Alemanha socialista manteria relações econômicas freqüentes com a economia capitalista mundial. Uma técnica mais desenvolvida e baixos custos de produção dariam a Alemanha uma superioridade incontestável no mercado mundial. O socialismo poderia, assim, ser vitorioso através do mercado, pela intervenção dos preços baixos, dispensando a revolução socialista. A conclusão de Trotsky é profética: a teoria do socialismo em um Estado isolado “baseia-se na perspectiva da coexistência pacífica dos sistemas socialista e capitalista.”35 Perspectiva essa que foi compartilhada pela fração stalinista.

Era contra essa coexistência pacífica que Trotsky lutava. Ele via na revolução mundial a única tábua de salvação para a sociedade soviética. Era a possibilidade que ela tinha de romper o isolamento e avançar na construção do socialismo. No pensamento de Trotsky a construção do socialismo estava subordinada ao primado da revolução mundial, o primado da política.

É por essa razão que ao descrever longamente a sociedade soviética, em uma conhecida passagem de A revolução traída, Trotsky termina apostando suas fichas na revolução mundial. Ou seja, a vitória do capitalismo ou do socialismo no interior da sociedade soviética era definida externamente pelo avanço ou retrocesso da relação, mundialmente definida, de forças entre as classes. Vejamos a conhecida citação para verificarmos como Trotsky coloca o problema: “A União Soviética é uma sociedade contraditória a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo, na qual: a) as forças produtivas estão longe de ser suficientes para conferir à propriedade de Estado um caráter socialista; b) a propensão para a acumulação primitiva, nascida da necessidade manifesta-se através dos inúmeros poros da economia planificada; c) as normas de repartição preservam um caráter burguês sobre a base de uma nova diferenciação social; d) o crescimento econômico; melhorando lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para a rápida form ão de uma camada de privilegiados; e) a burocracia, explorando os antagonismos sociais, tornou-se uma casta incontrolável, estranha ao socialismo; f) a revolução social, traída pelo partido governante, vive ainda nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) a evolução das contradições acumuladas pode conduzir ao socialismo ou fazer recuar a sociedade para o capitalismo; h) a contra-revolução em marcha para o capitalismo deverá quebrar a resistência dos operários; i) os operários, dirigindo-se para o socialismo, deverão derrubar a burocracia. Neste caso, a questão será decidida através da luta das forças vivas na arena nacional e internacional.”36

O último parágrafo do livro A revolução traída, deixa o problema ainda mais claro. Escreve Trotsky: “Mais do que nunca, os destinos da Revolução de Outubro estão hoje ligados aos destinos da Europa e do mundo. Os problemas da União Soviética se resolvem na península espanhola, na França e na Bélgica”.37

O primado da política, que se expressava na arena mundial, aparecia também na análise que Trotsky realizava das tarefas da construção do socialismo na União Soviética. Para o marxista russo, as novas relações de propriedade estabelecidas pela revolução estavam vinculadas indissoluvelmente ao caráter do Estado. O predomínio de tendências socialistas estaria assim assegurado não por um desenvolvimento automático da economia e sim pelo poder político da ditadura do proletariado. “O caráter da economia, como umtodo, depende, pois, do caráter do poder estatal”, concluirá Trotsky.38

E contrariando os argumentos economicistas próprios do marxismo vulgar definirá a política como o fator decisivo da economia soviética: “A política é a economia concentrada. Na presente etapa, a questão econômica da República Soviética resolve-se mais do que nunca do ponto de vista da política.”39

A ênfase que Trotsky dá na discussão sobre a natureza da sociedade soviética à definição do caráter do Estado, não é, portanto, arbitrária. Ela procura colocar o problema tal qual ele se apresenta para a ação revolucionária, definindo a política da Oposição de Esquerda, primeiro, e da Quarta Internacional, depois, frente a esse Estado. 40


Notas

1 Com o perdão da geografia acabam sendo enquadradas nessa categoria países tão distantes do “Leste europeu” como Cuba, China e Vietnam.
2 A abertura dos arquivos está dando lugar a um grande número de trabalhos monográficos, nos quais aspectos da política soviética têm sido esclarecidos. Faltam ainda trabalhos nos quais estes novos materiais forneçam a base para uma reflexão sobre a natureza da sociedade soviética. Uma amostra do resultaod desses trabalhos monográficos, pode ser encontrada na série From the Secret Archives of the Former Soviet Union, publicada pela editora Prometheus. Merecem destaque Valentina P. Vilkova, The struggle for power: Russia in 1923, Amherst, Prometheus, 1996; Yuri Buranov, Lenin’s will: Falsified and forbidden, Amherst, Prometheus, 1995; e Yuri l. Dyakov e Tatyana s. Bushuyeva, The Red Army and the Wehrmacht: How the soviets militarized Germany in 1923-1933 and paved the way for fascism, Amherst, Prometheus, 1995.
3 A rigor, Trotsky falará em Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado, muita embora reconheça que não é a expressão mais adequada. Assim como Michel Löwy preferimos a expressão Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado, que nos parece, neste caso, mais apropriada. Michel Löwy, “A teoria do desenvolvimento desigual e combinado”, Outubro,1, 1998, pp. 73-80.
4 Leon Trotsky. 1905. Resultados y perspectivas, Paris, Ruedo Ibérico, 1971, v. 2, p. 147.
5 Idem, v. 2, p. 151.
6 Idem, v. 1, p. 59.
7 Leon Trotsky, Historia de la revolución russa, Bogotá, Pluma, 1982, v. 1, p. 14.
8 Idem, p. 15
9 Idem.
10 Leon Trotsky, 1905, Resultados y perspectivas, op. cit., v. 2, p. 205.
11 Leon Trotsky, Historia de la revolución russa, op. cit., v. 1, p. 15.
12 Denise Avenas, Teoria e política no pensamento de Trotsky, Lisboa, Delfos, 1973, p. 34.A respeito da ausência de uma teoria econômica do imperialismo, ver Ernest Mandel, Trotsky como alternativa . São Paulo, Xamã, 1995.
13 Ernest Mandel, op. cit., p. 37 e ss.
14 Leon Trotsky, 1905, Resultados y perspectivas, op. cit., v. 2, p. 187.
15 Leon Trotsky, “Tres concepciones de la revolución rusa”, in : Ernest Mandel (org.), Trotsky: teoria e prática da revolução permanente, México D.F., Siglo XXI, 1983, p. 59.
16 Georghi Plekhanov, El socialismo y la lucha política, México D.F., Roca, 1975, p. 96. Uma exposição completa da posição dos mencheviques, com suas contradições internas, pode ser encontrada em John D. Basil, The mensheviks in the Revolution of 1917, Columbus, Slavica, 1983, pp. 11-25.
17 Leon Trotsky, op. cit., p. 58.
18 Georghi Plekhanov, op. cit., p. 96. De fato, Plekhanov chegou a atribuir a derrota da revolução de 1905 aos bolcheviques, que, com suas palavras-de-ordem, teriam assustado os liberais, levando-os a apoiar o governo do czar (Cf. John D. Basil, op. cit., p. 14.
19 A posição de Lenin pode ser encontrada em “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática” in Obras escolhidas, Lisboa, Avante, 1984, v. 1.
20 Leon Trotsky, Lecciones de Octubre, Buenos Aires, Biblioteca Proletaria, 1972. Escrito à época da aguda luta política no interior do Partido Bolchevique após a morte de Lenin, este pequeno livro recebeu um ataque frontal de Stálin, Zinoviev Kamenev e Bukharin.
21 Os mencheviques, por sua vez, não alteram substancialmente sua posição original, muito embora aceitem, em meio a crise do governo provisório, partilhar com os liberais a direção do Estado a partir de maio de 1917, quando o menchevique georgiano Iraklli Tsereteli assume o posto de ministro dos Correios e Telégrafos. Sobre as Teses de Abril e a adesão de Trotsky ao bolchevismo ver Pierre Broué, El Partido Bolchevique, Madri, Ayuso, 1973, pp. 116-126. Em sua “Carta ao Instituto Histórico do Partido” Trotsky protesta contra a falsificação da história da insurreição de Outubro e cita um grande número de documentos que dão conta de sua relação com o bolchevismo no decorrer do ano de 1917 (Leon Trotsky, A revolução desfigurada, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, pp. 1-66). Referência fundamental é, também, Isaac Deutscher, Trotsky. O profeta armado (1879-1921), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984, em especial o capítulo 9.
22 Leon Trotsky, La révolution permanente, Paris, Gallimard, 1970, p. 228.
23 Trotsky chega a comparar a derrota da revolução chinesa com a derrota alemã de 1923. Leon Trotsky. “Correspondencia entre Trotski y Preobrajenski”, in Ernest Mandel (org.), Trotski: teoría y prática de la revolucion permanente, op. cit., p. 254.
24 Necessidade que não era definida pela conjuntura e sim pelo longo processo de desenvolvimento do capitalismo na China. Isso quer dizer que Trotsky não exigia a imediata conquista do poder e sim que a classe operária e o Partido Comunista Chinês lutassem por ele. O stalinismo procurou ao longo dos tempo qualificar a teoria da revolução permanente como uma aventura, o que Trotsky insistentemente desmentiu, como na seguinte citação: “Entende-se, evidentemente, que de forma nenhuma trata-se de convocar o Partido Comunista Chinês a fazer uma insurreição imediata pela tomada do poder. O ritmo depende inteiramente das circunstâncias. A tarefa consiste em garantir que o Partido Comunista esteja impregnado complemente da convicção de que a terceira revolução chinesa pode chegar a um final vitorioso somente através da ditadura do proletariado sob a direção do Partido Comunista.” Idem, p. 270.
25 Leon Trotsky, La révolution permanente, op. cit., pp. 42-44.
26 Idem, pp. 43-44.
27 Idem, p. 43.
28 É este o caso de Knei-Paz, que vê na teoria da revolução permanente, uma teoria da “revolução do atraso”. Baruch Knei-Paz, “Trotski: revoluçãopermanente e revolução do atraso”, in Eric J. Hobsbawn (org.) História do marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, v. 5.
29 Ver, por exemplo, Leon Trotsky, El nuevo curso. Problemas de la vida cotidiana, México D. F., Pasado y Presente, 1978. 30 Leon Trosky, The revolution betrayed. What is the Soviet Union and where is it going, Detroit, Labor 1991, p. 24.
31 Idem, p. 205.
32 “É, pois, bastante mais exato chamar o atual regime soviético, em toda a sua contraditoriedade, não socialista mas um regime transicional preparatório entre o capitalismo e o socialismo.” Idem, p. 41.
33 “O capítulo da Revolução de Outubro posterior à morte de Lenin, caracteriza-se tanto pelo desenvolvimento das forças socialistas quanto pelo das forças capitalistas da economia soviética.” Leon Trotsky, A revolução desfigurada, op. cit., pp. XII-XIII. Um daqueles muros que as correntes anti-stalinistas construíram separando-se entre si é responsável pela equivocada afirmação de que em A revolução traída, Trotsky teria afirmado a contradição entre “de um lado o caráter objetivamente socialista da base econômica e de outro, sua apropriação pela burocracia staliniana” (João Quartim de Moraes, “A difícil supressão das relações mercantis”, Crítica Marxista, 1(1): 1994, p. 69).
34 Leon Trotsky, La Internacional Comunista desde la muerte de Lenin, Buenos Aires, Materiales Sociales, 1973, pp. 106 e ss.
35 Idem, p. 107.
36 Idem, p. 216. Grifos nossos.
37 Idem, p. 247. Quando Trotsky escreve essas linhas, a guerra civil já havia começado na Espanha.
38 Leon Trosky, The revolution betrayed, op. cit. , p. 212.
39 Leon Trotsky, A revolução desfigurada, op. cit., pp. XIV.
40 Quando, durante o ano de 1939 uma aguda luta política se desenvolveu no interior da seção norte-americana da Quarta Internacional, o Socialist Workers Party, em torno do caráter da sociedade soviética, Trotsky fez questão de afirmar, logo no início do debate: “Quem disser que a URSS já não é mais um Estado operário degenerado, mas sim uma nova formação social, deve dizer claramente o que é que acrescenta de novo as nossas conclusões políticas.” Leon Trotsky, Em defesa do marxismo, op. cit., p. 15.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Observações à margem do Programa do Partido Operário Alemão - Karl Marx

Escrito por K. Marx em princípios de maio de 1875. Publicado pela primeira vez (com certas omissões) por F. Engels em 1891, na revista Neue Zeit. Publica-se de acordo com a edição soviética de 1952. cujo texto foi traduzido do manuscrito em alemão. Traduzido do espanhol. disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/gotha.htm como parte do texto "Crítica do Programa de Gotha". (grifo meu)


I

1. "O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura, e como o trabalho útil só é possível dentro da sociedade e através dela, todos os membros da sociedade têm igual direito a perceber o fruto integro do trabalho".

Primeira parte do parágrafo: "O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura".

O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (que são os que verdadeiramente integram a riqueza material!), nem mais nem menos que o trabalho, que não é mais que a manifestação de uma força natural, da força de trabalho do homem. Essa frase encontra-se em todas as cartilhas e só é correta se se subentender que o trabalho é efetuado com os correspondentes objetos e instrumentos. Um programa socialista, porém, não deve permitir que tais tópicos burgueses silenciem aquelas condições sem as quais não têm nenhum sentido. Na medida em que o homem se situa de antemão como proprietário diante da natureza, primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, e a trata como possessão sua, seu trabalho converte-se em fonte de valores de uso, e, portanto, em fonte de riqueza. Os burgueses têm razões muito fundadas para atribuir ao trabalho uma força criadora sobrenatural; pois precisamente do fato de que o trabalho está condicionado pela natureza deduz-se que o homem que não dispõe de outra propriedade senão sua força de trabalho, tem que ser, necessariamente, em qualquer estado social e de civilização, escravo de outros homens, daqueles que se tornaram donos das condições materiais de trabalho. E não poderá trabalhar, nem, por conseguinte, viver, a não ser com a sua permissão.

Mas, deixemos a tese tal como está, ou melhor, tal como vem capengando. Que conclusão deveria ter-se tirado dela? Evidentemente, esta:

"Como o trabalho é a fonte de toda a riqueza, ninguém na sociedade pode adquirir riqueza que não seja produto do trabalho. Se, portanto, a pessoa não trabalha, é que vive do trabalho alheio e adquire também sua cultura às custas do trabalho de outros".

Em vez disto, acrescenta-se à primeira oração uma segunda mediante a locução copulativa "e como", para deduzir dela, e não da primeira, a conclusão.

Segunda parte do parágrafo: "O trabalho útil só é possível dentro da sociedade e através dela".

Consoante a primeira tese, o trabalho era a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura, isto é, sem trabalho, não era possível igualmente a existência de uma sociedade. Agora, inteiramo-nos, opostamente, de que sem a sociedade não pode existir o trabalho "útil".

Do mesmo modo, teria sido possível dizer-se que o trabalho inútil é inclusive prejudicial à comunidade, só pode converter-se em ramo industrial dentro da sociedade, que só dentro da sociedade pode-se viver do ócio, etc., etc.; numa palavra, copiar aqui Rousseau inteiramente. E que é trabalho "útil"? Não pode ser senão um: o trabalho que consegue o efeito útil proposto. Um selvagem - e o homem é um selvagem desde o momento em que deixa de ser mono - que mata um animal a pedrada, que junta frutos, etc., executa um trabalho "útil".

Terceiro. Conclusão: "E como o trabalho útil só é possível dentro da sociedade e através dela, todos os membros da sociedade têm igual direito a perceber o fruto íntegro do trabalho".

Formosa conclusão! Se o trabalho útil só é possível dentro da sociedade e através dela, o fruto do trabalho pertencerá à sociedade, e o trabalhador individual só perceberá a parte que não seja necessária para manter a "condição" do trabalho, que é a sociedade.

Na realidade, os defensores de toda ordem social existente fizeram valer esta tese em todos os tempos. Em primeiro lugar, vêm as pretensões do governo e de tudo o que está ligado a ele, pois o governo é o órgão da sociedade para a manutenção da ordem social; detrás dele vêm as diferentes classes de propriedade privada, com suas respectivas pretensões, pois as diferentes classes de propriedade privada são as bases da sociedade, etc. Como vemos, com estas frases ocas podem-se dar as voltas e as interpretações que se queira.

A primeira e a segunda parte do parágrafo somente guardariam uma certa relação lógica se fossem assim redigidas:

"O trabalho só é fonte de riqueza e de cultura como trabalho social", ou, o que é o mesmo, "dentro da sociedade e através dela".

Esta tese é, indiscutivelmente, exata, pois ainda que o trabalho do indivíduo isolado (pressupondo suas condições materiais) também possa criar valores de uso, não pode criar nem riqueza nem cultura.

Mas, igualmente indiscutível é esta outra tese:

"Na medida em que o trabalho se desenvolva socialmente, convertendo-se assim em fonte de riqueza e de cultura, desenvolvem-se também a pobreza e o desamparo do operário, e a riqueza e a cultura dos que não trabalham." Esta é a lei de toda a história, até hoje. Assim, pois, em vez dos tópicos surrados sobre "o trabalho" e "a sociedade", o que competia era indicar concretamente como, na atual sociedade capitalista, já se produzem, afinal, as condições materiais, etc., que permitem e obrigam os operários a destruir essa maldição social.

Mas, de fato, todo este parágrafo, que é igualmente falso tanto pelo estilo como pelo conteúdo, não tem outra finalidade senão a de inscrever como lema no alto da bandeira do Partido, o tópico lassalliano do "fruto integro do trabalho". Voltarei mais adiante a essa coisa de "fruto do trabalho", de "direito igual", etc., já que o mesmo é repetido logo depois sob uma forma algo diferente.

2. "Na sociedade atual, os meios de trabalho são monopólio da classe capitalista; o estado de dependência da classe operária que disto deriva, é a causa da miséria e da escravidão em todas as suas formas".

Assim "corrigida", esta tese, tomada dos estatutos da Internacional, é falsa.

Na sociedade atual os meios de trabalho são monopólio dos latifundiários (o monopólio da propriedade do solo é. inclusive, a base do monopólio do capital) e dos capitalistas. Os estatutos da Internacional não mencionam na passagem correspondente, nem uma nem outra classe de monopolistas. Falam dos "monopolizadores dos meios de trabalho, isto é, das fontes da vida." Esta adição "fontes da vida" indica claramente que o solo está compreendido entre os meios de trabalho.

Esta emenda foi introduzida porque Lassalle, por motivos que hoje já são do conhecimento de todos, só atacava a classe capitalista, e não os latifundiários. Na Inglaterra, a maioria das vezes o capitalista não é sequer proprietário do solo sobre o qual ergue a sua fábrica.

3. "A emancipação do trabalho exige que os meios de trabalho elevem-se a patrimônio comum da sociedade e que todo o trabalho seja regulado coletivamente, com uma repartição eqüitativa do fruto do trabalho".

Onde se diz "que os meios de trabalho elevem-se a patrimônio comum", deveria dizer-se, indubitavelmente, "convertam-se em patrimônio comum". Isto, porém, só de passagem.

Que é o "fruto do trabalho"? O produto do trabalho, ou seu valor? E neste último caso, o valor total do produto, ou só a parte do valor que o trabalho acrescenta ao valor dos meios de produção consumidos?

Isso de "fruto do trabalho" é uma idéia vaga com que Lassalle eludiu conceitos econômicos concretos.

Que é "repartição eqüitativa"?

Não afirmam os burgueses que a atual repartição é "eqüitativa"? E não é esta, com efeito, a única repartição "eqüitativa" cabível, sobre a base da forma atual de produção? Acaso as relações econômicas são reguladas pelos conceitos jurídicos? Pelo contrário, não são as relações jurídicas que surgem das relações econômicas? Não se forjam, também, os sectários socialistas as mais variadas idéias acerca da repartição "eqüitativa"?

Para saber o que se deve entender aqui pela frase "repartição eqüitativa", temos que cotejar este parágrafo com o primeiro. O parágrafo que glosamos supõe uma sociedade na qual os "meios de trabalho são patrimônio comum e todo o trabalho é regulado coletivamente", enquanto que no primeiro parágrafo vemos que "todos os membros da sociedade têm igual direito a perceber o fruto integro do trabalho".

"Todos os membros da sociedade"? Também os que não trabalham? Onde fica, então, o "fruto Integro do trabalho"? Ou só os membros da sociedade que trabalham? Onde deixarmos, então, o "direito igual" de todos os membros da sociedade?

Entretanto, isto de "todos os membros da sociedade" e "o direito igual" não são, manifestamente, senão frases. O essencial do assunto reside em que, nesta sociedade comunista, todo operário deve obter o "fruto integro do trabalho" lassalliano.

Tomemos, em primeiro lugar, as palavras "o fruto do trabalho" no sentido do produto do trabalho; então o fruto do trabalho coletivo será a totalidade do produto social.

Daqui, porém, é preciso deduzir:

Primeiro: uma parte para repor os meios de produção consumidos.

Segundo: urna parte suplementar para ampliar a produção.

Terceiro: o fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, transtornos devidos a fenômenos naturais, etc.

Estas deduções do "fruto integro do trabalho" constituem uma necessidade econômica e sua magnitude será determinada de acordo com os meios e forças existentes e, em parte, por meio do cálculo de probabilidades; o que não se pode fazer de modo algum é calculá-la partindo da eqüidade.

Fica a parte restante do produto total, destinada a servir de meios de consumo.

Mas, antes dessa parte chegar à repartição individual, dela é preciso deduzir ainda:

Primeiro: as despesas gerais de administração, não concernentes à produção. Nesta parte se conseguirá, desde o primeiro momento, urna redução oonsiderabilíssima, em comparação com a sociedade atual, redução que irá aumentando à medida que a nova sociedade se desenvolva.

Segundo: a parte que se destine a satisfazer necessidades coletivas, tais como escolas, instituições sanitárias, etc.

Esta parte aumentará consideravelmente desde o primeiro momento, em comparação com a sociedade atual, e irá aumentando à medida que a nova sociedade se desenvolva.

Terceiro: os fundos de manutenção das pessoas não capacitadas para o trabalho, etc.; em uma palavra, o que hoje compete à chamada beneficência oficial.

Só depois disto podemos proceder à "repartição", isto é, à única coisa que, sob a influência de Lassalle e com uma concepção estreita, o programa tem presente, ou sei a, a parte dos meios de consumo que será repartida entre os produtores individuais da coletividade.

O "fruto íntegro do trabalho" transformou-se já, imperceptivelmente, no "fruto parcial", ainda que o que se retira ao produtor na qualidade de indivíduo, a ele retorna, direta ou indiretamente, na qualidade de membro da sociedade.

E do mesmo modo como se evaporou a expressão "o fruto íntegro do trabalho", evapora-se agora a expressão "o fruto do trabalho", em geral. No seio de uma sociedade coletivista, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; o trabalho invertido nos produtos não se apresenta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma qualidade material, por eles possuída, pois aqui, em Oposição ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais já não constituem parte integrante do trabalho comum através de um rodeio, mas diretamente. A expressão "o fruto do trabalho", já hoje recusável por sua ambigüidade, perde assim todo sentido.

Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor individual obtém da sociedade - depois de feitas as devidas deduções precisamente aquilo que deu. O que o produtor deu à sociedade constitui sua cota individual de trabalho. Assim, por exemplo, a jornada social de trabalho compõe-se da soma das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada produtor em separado é a parte da jornada social de trabalho com que ele contribui, é sua participação nela. A sociedade entrega-lhe um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que trabalhou para o fundo comum), e com este bônus ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo a parte equivalente à quantidade de trabalho que prestou. A mesma quantidade de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente.

Aqui impera, evidentemente, o mesmo principio que regula o intercâmbio de mercadorias, uma vez que este é um intercâmbio de equivalentes. Variaram a forma e o conteúdo, porque sob as novas condições ninguém pode dar senão seu trabalho, e porque, de outra parte, agora nada pode passar a ser propriedade do indivíduo, fora dos meios individuais de consumo. Mas, no que se refere à distribuição destes entre os diferentes produtores, impera o mesmo princípio no intercâmbio de mercadorias equivalentes: troca-se quantidade de trabalho, sob uma forma, por outra quantidade igual de trabalho, sob outra forma diferente.

Por isso, o. direito igual continua sendo aqui, em princípio, o direito burguês, ainda que agora o princípio e a prática já não estejam mais em conflito, enquanto que no regime de intercâmbio de mercadorias, o intercâmbio de equivalentes não se verifica senão como termo médio, e não nos individuais.

Apesar deste progresso, este direito igual continua trazendo implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que prestou; a igualdade, consiste em que é medida pelo mesmo critério: pelo trabalho

Mas, alguns indivíduos são superiores, física e intelectualmente, a outros e, pois, no mesmo tempo, prestam trabalho, ou podem trabalhar mais tempo; e o trabalho, servir de medida, tem que ser determinado quanto à duração ou intensidade; de outro modo, deixa de ser uma medida. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, por aqui cada indivíduo não é mais do que um operário como os demais; mas reconhece, tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais aptidões dos indivíduos, por conseguinte, a desigual capacidade de rendimento, no fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e ri seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mesma medida sempre e quando sejam considerados sob um ponto de vista igual, sempre quando sejam olhados apenas sob um aspecto determinado por exemplo, no caso concreto, só como operários, e não veja neles nenhuma outra coisa, Isto é, prescinda-se de tudo o mais. Prossigamos: uns operários são casados e outros não uns têm mais filhos que outros, etc., etc. Para igual trabalho e, por conseguinte, para igual participação no fundo social de consumo, uns obtêm de fato mais do que outros, uns são mais ricos do que outros, etc. Para evitar todos estes inconvenientes, o direito não teria que ser igual, mas desigual.

Estes defeitos, porém, são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como brota da sociedade capitalista depois de um longo e doloroso parto. O direito não pode ser nunca superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural da sociedade por ela condicionado.

Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.

Alonguei-me sobre o "fruto integro do trabalho", de uma parte, e de outra, sobre "o direito igual" e "a repartição equitativa", para demonstrar em que grave falta se incorre, por um lado, quando se deseja impor ao nosso Partido, como dogmas, idéias que, se em outro tempo tiveram um sentido, hoje já. não são mais do que tópicos em desuso, e, por outro lado, quando se tergiversa a concepção realista - que tanto esforço custou para inculcar no Partido, mas que hoje já está enraizada - com patranhas ideológicas, jurídicas e de outro tipo, tão em voga entre os democratas e os socialistas franceses.

Mesmo prescindindo do que fica exposto, é equivocado, em geral, tomar como essencial a chamada distribuição e aferrar-se a ela, como se fosse o mais importante.

A distribuição dos meios de consumo é, em cada momento, um corolário da distribuição das próprias condições de produção. E esta é uma característica do modo mesmo de produção. Por exemplo, o modo capitalista de produção repousa no fato de que as condições materiais de produção são entregues aos que não trabalham sob a forma de propriedade do capital e propriedade do solo, enquanto a massa é proprietária apenas da condição pessoal de produção, a força de trabalho. Distribuídos deste modo os elementos de produção, a atual distribuição dos meios de consumo é uma conseqüência natural. Se as condições materiais de produção fosse propriedade coletiva dos próprios operários, isto determinaria, por si só, uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O socialismo vulgar (e através dele uma parte da democracia) aprendeu com os economistas burgueses a considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção, e, portanto, a expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição. Uma vez que desde há muito tempo já está elucidada a verdadeira relação das coisas, porque voltar a marchar para trás?

4. "A emancipação do trabalho tem que ser obra da classe operária, diante da qual todas as demais classes não constituem senão uma massa reacionária".

A primeira estrofe foi tomada do preâmbulo dos estatutos da Internacional, mas, "corrigida". Ali se diz: "A emancipação das classes trabalhadoras deverá ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras"; aqui, pelo contrário, "a classe operária" tem que emancipar a quem? Ao trabalho. Entenda-o quem puder!

Para indenizar-nos, se nos oferece, a título de antístrofe, uma citação lassalliana do mais puro estilo: "diante da qual (da classe operária) todas as demais classes não constituem senão uma massa reacionária". No Manifesto Comunista, afirma-se: "De todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é o seu produto maís autêntico."

Aqui, a burguesia é considerada como uma classe revolucionária - veículo da grande indústria - diante dos senhores feudais e das camadas médias, empenhados, aqueles e estas, em manter posições sociais que foram criadas por formas caducas de produção. Não constituem, portanto, juntamente com a burguesia, uma massa reacionária.

Por outra parte, o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque havendo surgido sobre a base da grande indústria, aspira a despojar a produção do seu caráter capitalista, que a burguesia quer perpetuar. Mas, o Manifesto acrescenta que as "camadas médias... tornam-se revolucionárias quando têm diante de si a perspectiva de sua passagem iminente ao proletariado." Portanto, sob esse ponto de vista, é também absurdo dizer que diante da classe operária "não constituem senão uma massa reacionária", juntamente com a burguesia e, ademais como se isto fosse pouco -' com os senhores feudais.

Por acaso, nas últimas eleições declarou-se aos artesãos, aos pequenos industriais, etc., e aos camponeses: diante de nós, não sois, juntamente com os burgueses e os senhores feudais, senão uma massa reacionária?

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, do mesmo modo como os seus devotos conhecem os evangelhos por ele compostos. Assim, pois, quando o falsificava tão grosseiramente, não podia fazê-lo senão para coonestar sua aliança com os adversários absolutistas e feudais contra a burguesia.

Além do mais, no parágrafo que acabamos de citar, esta sentença lassalliana é forçada e não guarda nenhuma relação com a citação mal digerida e "ajeitada" dos estatutos da Internacional. Trazê-la aqui é simplesmente uma impertinência que certamente não desagradará, longe disso, ao senhor Bismarck; uma dessas impertinências baratas em que é especialista o Marat de Berlim 2

5. "A classe operária busca, era primeiro lugar, sua emancipação dentro do marco do Estado nacional de hoje, consciente de que o resultado necessário de suas aspirações, comuns aos operários de todos os países civilizados, será a fraternização internacional dos povos."

Em oposição ao ao Manifesto Comunista e a todo o socialismo anterior, Lassalle concebia o movimento operário do ponto de vista nacional mais estreito. E depois da atividade da Internacional, ainda se seguem suas pegadas por esse caminho!

Naturalmente, a classe operária, para poder lutar, tem que organizar-se como classe em seu próprio país, já que este é o campo imediato de suas lutas. Neste sentido, sua luta de classes é nacional, não por seu conteúdo, mas, como diz o Manifesto Comunista, "por sua forma". Mas, "o marco do Estado nacional de hoje", por exemplo, do Império Alemão, acha-se por sua vez, economicamente, "dentro do marco" do mercado mundial e, politicamente, "dentro do marco" de um sistema de Estados. Qualquer comerciante sabe que o comércio alemão é, ao mesmo tempo, comércio exterior, e o senhor Bismarck deve sua grandeza precisamente a uma política internacional sui generis.

E a que reduz seu internacionalismo o Partido Operário Alemão? A consciência de que o resultado de suas aspirações será a fraternização internacional dos povos, uma frase tomada da Liga Burguesa pela Paz e a Liberdade, que se deseja fazer passar como equivalente da fraternidade internacional das classes trabalhadoras, em sua luta comum contra as classes dominantes e seus governos. Dos deveres internacionais da classe operária alemã não se diz, portanto, uma só palavra! E isto é o que a classe operária alemã deve contrapor à sua própria burguesia, que já fraterniza contra ela com os burgueses de todos os demais países, e à política internacional de conspiração do senhor Bismarck!

A profissão de fé internacionalista do programa fica, em realidade, Infinitamente por baixo da do partido livre-cambista. Também este afirma que o resultado de suas aspirações será "a fraternização internacional dos povos". Mas. além disso, faz alguma coisa para internacionalizar o comércio, e está longe de se satisfazer com a consciência de que todos os povos comerciam dentro do seu próprio país.

A ação Internacional das classes trabalhadoras não depende, de modo algum, da existência da Associação Internacional dos Trabalhadores. Esta constituiu somente uma primeira tentativa para fornecer àquela ação um órgão central; uma tentativa que, pelo impulso que deu, teve uma eficácia perdurável, mas que em sua primeira forma histórica não podia prolongar-se depois da queda da Comuna de Paris.

A "Norddeutsche" de Bismarck tinha razões de sobra quando, para satisfação do seu dono, proclamou que, em seu novo programa, o Partido Operário Alemão renegava o internaclonalismo


II

"Partindo destes princípios, o Partido Operário Alemão aspira, por todos os meios legais, a implantar o Estado livre - e - a sociedade socialista; a abolir o sistema do salário, com sua lei de bronze - e - a exploração sob todas as suas formas; a suprimir toda desigualdade social e política."

Voltarei mais adiante a essa coisa de Estado "livre". Assim, pois, doravante, o Partido Operário Alemão terá que comungar com a "lei de bronze do salário" lassalliana! E para que não se perca esta "lei", chega-se ao absurdo de falar em "abolir o sistema do salário" (o correto teria sido dizer o sistema de trabalho assalariado), "com sua lei de bronze". Se suprimo o trabalho assalariado, suprimo também, evidentemente, suas leis, sejam de "bronze" ou de cortiça. O que se dá é que a luta de Lassalle contra o trabalho assalariado gira quase toda em torno dessa chamada lei. Portanto, para demonstrar que a seita de Lassalle triunfou, deve-se abolir "o sistema do salário, com sua lei de bronze" e não sem ela.

Da "lei de bronze do salário" a Lassalle não pertence, como é sabido, senão a expressão "de bronze", copiada das "ewigen, ehernen grossen Gesetzen" ("as leis eternas, as grandes leis de bronze"), de Goethe. A expressão "de bronze" é a contra-senha pela qual os crentes ortodoxos se reconhecem. E se admitimos a lei com o cunho de Lassalle, e portanto no sentido lassalliano, temos que admiti-la também com sua fundamentação. E qual é esta? É, como já assinalou Lange, pouco depois da morte de Lassalle, a teoria da população de Malthus (predicada pelo próprio Lange). Mas, se esta teoria for exata, a mencionada lei não poderá ser abolida, por muito que se suprima o trabalho assalariado, porque esta lei não regerá apenas no sistema do trabalho assalariado, mas em qualquer sistema social. Apoiando-se precisamente nisto, os economistas vêm demonstrando, há cinqüenta anos e até mais, que o socialismo não pode acabar com a miséria, determinada pela própria natureza, mas tão somente generalizá-la, reparti-la por igual sobre toda a superfície da sociedade!

Mas, nada disto é o fundamental, Mesmo prescindindo inteiramente da falsa concepção lassalliana desta lei, o retrocesso que causa real indignação consiste no seguinte:

Depois da morte de Lassalle, havia progredido em nosso Partido a concepção científica de que o salário não é o que parece ser, isto é, o valor - ou o preço do trabalho, mas só uma forma disfarçada do valor - ou do preço - da força de trabalho. Com isto, havia sido lançada ao mar, de uma vez para sempre, tanto a velha concepção burguesa do salário, como toda crítica até hoje dirigida contra esta concepção, e se havia tomado claro que o operário assalariado só está autorizado a trabalhar para manter sua própria vida, isto é, a viver, uma vez que trabalha grátis durante certo tempo para o capitalista (e, portanto, também para os que, com ele, embolsam a mais-valia); que todo o sistema de produção capitalista gira em torno do prolongamento deste trabalho gratuito, alongando a jornada de trabalho ou desenvolvendo a produtividade, ou seja, acentuando a tensão da força de trabalho, etc.; que, portanto, o sistema do trabalho assalariado é um sistema de escravidão, uma escravidão que se torna mais dura à medida que se desenvolvem as forças sociais produtivas do trabalho, ainda que o operário esteja melhor ou pior remunerado. E quando esta concepção cada vez mais ia ganhando terreno no seio do nosso Partido, retrocede-se aos dogmas de Lassalle, apesar de que hoje já ninguém pode ignorar que Lassalle não sabia o que era salário, mas que, indo na esteira dos economistas burgueses, tomava a aparência pela essência da coisa!

É como se, entre escravos que finalmente tivessem descoberto o segredo da escravidão e se rebelassem contra ela, viesse um escravo fanático das idéias antiquadas e escrevesse no programa da rebelião: a escravidão deve ser abolida porque a manutenção dos escravos, dentro do sistema da escravidão, não pode passar de um certo limite, extremamente baixo!

O simples fato de que os representantes do nosso Partido tenham sido capazes de cometer um atentado tão monstruoso contra uma concepção tão difundida entre a massa do Partido, prova por si só a leviandade criminosa, a falta de escrúpulos com que foi empreendida a redação deste programa de transição.

Em vez da vaga frase final do parágrafo: "suprimir toda desigualdade social e política", o que se deveria ter dito é que, com a abolição das diferenças de classe, desaparecem por si mesmas as desigualdades sociais e políticas que delas emanam.


III

"A fim de preparar o caminho para a solução do problema social, o Partido Operário Alemão exige que sejam criadas cooperativas de produção, com a ajuda do Estado e sob o controle democrático do povo trabalhador. Na indústria e na agricultura, as cooperativas de produção deverão ser criadas em proporções tais, que delas surja a organização socialista de todo o trabalho."

Depois da "lei de bronze" de Lassalle, vem a panacéia do profeta. E se lhe "prepara o caminho" de um modo digno. A luta de classes existente é substituída por uma frase de jornalista: "o problema social", para cuja "solução" "prepara-se o caminho". A "organização socialista de todo o trabalho" não é o resultado do processo revolucionário de transformação da sociedade, mas "surge" da "ajuda do Estado", ajuda que o Estado presta às cooperativas de produção "criadas" por ele e não pelos operários. Esta fantasia de que com empréstimos do Estado pode-se construir uma nova sociedade como se constrói uma nova ferrovia é digna de Lassalle

Por um resto de pudor, coloca-se "a ajuda do Estado" sob o controle democrático do "povo trabalhador".

Mas, em primeiro lugar, o "povo trabalhador", na Alemanha, é constituído, em sua maioria, por camponeses, e não por proletários.

Em segundo lugar, "democrático" quer dizer em alemão "governado pelo povo" ("volksherrschaftlich"). E que significa isso de "controle governado pelo povo do povo trabalhador"? E, além disso, tratando-se de um povo trabalhador que, pelo simples fato de colocar estas reivindicações perante o Estado, exterioriza sua plena consciência de que nem está no Poder, nem se acha maduro para governar!

Desnecessário entrar aqui na critica da receita prescrita por Buchez, sob o reinado de Luís Felipe, por oposição aos socialistas franceses, e aceita pelos trabalhadores reacionários do Atelier 1• O verdadeiramente escandaloso não é tampouco o fato de que se tenha levado para o programa esta cura milagrosa especifica, mas o fato de que se abandone o ponto de vista do movimento de classes, para retroceder ao movimento de seitas.

O fato de que os operários desejem estabelecer as condições de produção coletiva em toda a sociedade e antes de tudo em sua própria casa, numa escala nacional, só quer dizer que obram por subverter as atuais condições de produção, e isso nada tem a ver com a fundação de sociedades cooperativas com a ajuda do Estado. E, no que se refere às sociedades cooperativas atuais, estas só têm valor na medida em que são criações independentes dos próprios operários, não protegidas nem pelos governos nem pelos burgueses.


IV

E agora vou referir-me à parte democrática.

A. "Base livre do Estado"

Antes de tudo, de acordo com o capítulo II, o Partido Operário Alemão aspira ao "Estado livre".

Que é o Estado livre?

A missão do operário que se libertou da estreita mentalidade do humilde súdito, não é, de modo algum, tornar livre o Estado. No Império Alemão, o "Estado" é quase tão "livre" como na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado de órgão que está por cima da sociedade num órgão completamente subordinado a ela, e as formas de Estado continuam sendo hoje mais ou menos livres na medida em que limitam a "liberdade do Estado".

O Partido Operário Alemão - pelo menos se fizer seu este programa - demonstra como as idéias do socialismo não lhe deixaram sequer marcas superficiais; pois que, em vez de tomar a sociedade existente (e o mesmo podemos dizer de qualquer sociedade no futuro) como base do Estado existente (ou do futuro, para uma sociedade futura), considera mais o Estado como um ser independente, com seus - próprios fundamentos espirituais, morais e liberais. -

Além disso, que dizer do abuso com que o programa faz uso das palavras "Estado atual", "sociedade atual" e da incompreensão ainda mais estúpida manifestada relativamente ao Estado, ao qual dirige suas reivindicações!

A "sociedade atual" é a sociedade capitalista, que existe em todos os pulses civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais, mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida. Pelo contrário, o "Estado atual" se modifica com as fronteiras de cada país. No império prussiano é diverso do que existe na Suíça, na Inglaterra é diferente do dos Estados Unidos, "O Estado atual" é, portanto, uma ficção.

Entretanto, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, em que pese à confusa diversidade de suas formas têm de comum o fato de que todos eles repousam sobre as bases da moderna sociedade burguesa, ainda que em alguns lugares esta se ache mais desenvolvida do que em outros, no sentido capitalista. Têm também, portanto, certos caracteres essenciais comuns. Neste sentido, pode-se falar no "Estado atual", em oposição ao futuro, no qual sua atual raiz, a sociedade burguesa, ter-se-á extinguido.

Cabe, então, a pergunta: que transformação sofrerá o Estado na sociedade comunista? Ou, em outros termos: que funções sociais, análogas às atuais funções do Estado, subsistirão então? Esta pergunta só pode ser respondida cientificamente, e por mais que combinemos de mil maneiras a palavra povo e a palavra Estado, não nos aproximaremos um milímetro da solução do problema.

Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.

O programa, porém, não se ocupa desta última, nem do Estado futuro da sociedade comunista.

Suas reivindicações políticas não vão além da velha e surrada ladainha democrática: sufrágio universal, legislação direta, direito popular, milícia do povo, etc. São um simples eco do Partido Popular burguês , da Liga pela Paz e a Liberdade, São, todas elas, reivindicações que, quando não são exageradas a ponto de ver-se convertidas em idéias fantásticas, já estão realizadas. Apenas o Estado que as pós em prática não está dentro das fronteiras do Império Alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos, etc. Esta espécie de "Estado do futuro" já é o Estado atual, se bem que situado fora "do marco" do Império Alemão.

Uma coisa, porém, foi esquecida. Já que o Partido Operário Alemão declara expressamente que atua dentro do "atual Estado nacional", isto é, dentro do seu próprio Estado, do Império Prussiano-Alemão - de outro modo, suas reivindicações seriam, em sua maior parte, absurdas, pois só se exige o que não se tem -, não devia ter esquecido o principal, a saber: que todas estas lindas minudências têm por base o reconhecimento da chamada soberania do povo, e que, portanto, só têm cabimento numa República democrática.

E já que não se tinha o desassombro - o que é muito cordato, pois a situação exige prudência - de exigir a república democrática, como o faziam os programas operários franceses sob Luís Felipe e sob Luís Napoleão, não se devia ter recorrido ao ardil, que nem é "honrado" nem é digno, de exigir coisas que só têm sentido numa República democrática a um Estado que não passa de um despotismo militar de arcabouço burocrático e blindagem policial, guarnecido por formas parlamentares, de mistura com ingredientes feudais e já influenciado pela burguesia; e, ainda por cima, assegurar a este Estado que alguém imagina conseguir isso dele "por meios legais"!

Mesmo a democracia vulgar, que vê na República democrática o reino milenar e não tem a menor idéia de que é precisamente nesta última forma de Estado da sociedade burguesa onde se irá travar a batalha definitiva da luta de classes; até ela mesma está mil vezes acima desta espécie de democratismo que remove dentro dos limites do autorizado pela polícia e vedado pela lógica.

Que por "Estado" entende-se, de fato, a máquina de governo, ou que o Estado, em razão da divisão do trabalho, constitui um organismo próprio, separado da sociedade, indicam-no estas palavras: "o Partido Operário Alemão exige como base econômica do Estado: um imposto único e progressivo sobre a renda", etc. Os impostos são a base econômica da máquina de governo, e nada mais. No Estado do futuro, já existente na Suíça, esta reivindicação está quase realizada. O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de receita das diferentes classes sociais, isto é, a sociedade capitalista. Nada há, pois, de estranho, que os Financial-Reformers de Liverpool - que são burgueses, com o irmão de Gladstone à frente - coloquem a mesma reivindicação que - o programa.


B. "O Partido Operário Alemão exige, como base espiritual e moral do Estado:

1. Educação popular geral e igual a cargo do Estado. Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita".

Educação popular igual? Que se entende por isto? Acredita-se que na sociedade atual (que é a de que se trata), a educação pode ser igual para todas as classes? O que se exige é que também as classes altas sejam obrigadas pela força a conformar-se com a modesta educação dada pela escola pública, a única compatível com a situação econômica, não só do operário assalariado, mas também do camponês?

"Assistência escolar obrigatória para todos. Instrução gratuita". A primeira já existe, inclusive na Alemanha; a segunda na Suiça e nos Estados Unidos, no que se refere às escolas públicas, o fato de que em alguns Estados deste último país sejam "gratuitos" também os centros de ensino superior, significa tão somente, na realidade, que ali as classes altas pagam suas despesas de educação às custas do fundo dos impostos gerais. E - diga-se de passagem - Isto também pode ser aplicado à "administração da justiça com caráter gratuito", de que se fala no ponto A,5 do programa. A justiça criminal é gratuita em toda parte; a justiça civil gira quase inteiramente em torno dos pleitos sobre a propriedade e afeta, portanto, quase exclusivamente às classes possuidoras. Pretende-se que estas decidam suas questões às custas do tesouro público?

O parágrafo sobre as escolas deveria exigir, pelo menos, escolas técnicas (teóricas e práticas), combinadas com as escolas públicas.

Isso de "educação popular a cargo do Estado" é completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente, as matérias de ensino, etc., e velar pelo cumprimento destas prescrições legais mediante inspetores do Estado, como se faz nos Estados Unidos, e outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto, o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influência por parte do governo e da igreja. Sobretudo no Império Prussiano-Alemão (e não vale fugir com o baixo subterfúgio de que se fala de um "Estado futuro"; já vimos o que é este), onde, pelo contrário, é o Estado quem necessita de receber do povo uma educação muito severa.

Em que pese a toda sua fanfarronice democrática, o programa está todo ele infestado até a medula da fé servil da seita lassalliana no Estado; ou - o que não é muito melhor - da superstição democrática; ou é, mais propriamente, um compromisso entre estas duas superstições, nenhuma das quais nada tem a ver com o socialismo.

"Liberdade da ciência"; já é estatuída por um parágrafo da Constituição prussiana. Para que, pois, trazer isto aqui?

"Liberdade de consciência!" Se, nestes tempos do Kulturkampf 1, desejava-se lembrar ao liberalismo seus velhos lemas, só se poderia fazer, naturalmente, deste modo: todo mundo tem o direito de satisfazer suas necessidades religiosas, do mesmo modo que suas necessidades físicas, sem que a policia tenha que meter o nariz no assunto. Mas, o Partido Operário, aproveitando a ocasião, tinha que haver expressado aqui sua convicção de que a "liberdade de consciência" burguesa limita-se a tolerar qualquer tipo de liberdade de consciência religiosa, ao passo que ele aspira, pelo contrário, a libertar a consciência de todas as fantasmagorias religiosas. Preferiu-se, porém, não sair dos limites "burgueses".

E com isto, chego ao fim, pois o apêndice que vem depois do programa não constitui urna parte característica deste. Portanto, procurarei ser multo breve.


2. "Jornada normal de trabalho".

Em nenhum outro país limita-se o partido operário a formular uma reivindicação tão vaga, mas sempre fixa a duração da jornada de trabalho que, sob condições concretas, é considerada normal.


3. "Restrição do trabalho da mulher e proibição do trabalho Infantil".

A regulamentação da jornada de trabalho já deve incluir a restrição do trabalho da mulher, no que se refere à duração, repouso, etc., da jornada; a não ser assim, só pode eqüivaler à proibição do trabalho da mulher nos ramos da produção que sejam especialmente nocivos ao organismo feminino, ou inconvenientes, do ponto de vista moral, a este sexo. Se foi isto o que se quis dizer, deveria ter sido dito.

"Proibição do trabalho infantil". Aqui era absolutamente necessário fixar o limite de idade.

A proibição geral do trabalho infantil é incompatível com a existência da grande indústrla e, portanto, um piedoso desejo, porém nada mais. Pôr em prática esta proibição - supondo-a factível - seria reacionário, uma vez que, regulamentada severamente a jornada de trabalho segundo as diferentes idades e aplicando as demais medidas preventivas para a proteção das crianças, a combinação do trabalho produtivo com o ensino, desde uma tenra idade, é um dos mais poderosos meios de transformação da sociedade atual.


4. "Inspeção pelo Estado da indústria nas fábricas, nas oficinas e a domicilio".

Tratando-se do Estado prussiano-alemão, deveria exigir-se, taxativamente, que os inspetores só poderiam ser substituídos mediante sentença judicial; que todo operário pudesse denunciá-los aos tribunais por transgressões no cumprimento do seu dever; e que fossem médicos.


5. "Regulamentação do trabalho nas prisões".

Reivindicação mesquinha, num programa geral operário, em todo caso, deveria proclamar-se claramente que não se desejava, por temor à concorrência, ver delinqüentes comuns tratados como bestas, e, sobretudo, que não se queria privá-los de seu único meio de corrigir-se: o trabalho produtivo. Era o menos que se poderia esperar de socialistas.


6. "Uma lei eficaz de responsabilidade civil".

Devia dizer-se o que se entende por lei "eficaz" de responsabilidade civil.

Diremos de passagem que, ao falar da jornada normal de trabalho, não se teve em conta a parte da legislação fabril que se refere às medidas sanitárias e meios de proteção contra os acidentes, etc. A lei de responsabilidade civil só entra em ação depois de infringidas estas prescrições.

Numa palavra, também o apêndice caracteriza-se por sua redação descuidada.

Dixi et salvavi animan meam