terça-feira, 17 de novembro de 2009

Michael Löwy

Extraído da revista Tempo disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/entrevistas/entres2-1.PDF

Um intelectual marxista: entrevista com Michael Löwy (*)

Michael Löwy é pesquisador do Centre National des Recherches Scientifiques (CNRS) em Paris. Concedeu esta entrevista aos professores Ângela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis em 11 de setembro de 1996, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
(*) Edição de Dora Rocha


Seu nome é bastante conhecido nos meios acadêmicos do Brasil, país onde você nasceu, mas não conhecemos bem sua trajetória intelectual. Onde você se formou, onde começou a estruturar as suas concepções?

Vamos começar do começo. Nasci em São Paulo em 6 de maio de 1938, numa família de judeus emigrados para o Brasil nos anos 30. Minha família veio para cá essencialmente porque meu pai estava desempregado, em crise, e aqui havia oportunidade de trabalho. Desconfio que tenha havido também alguma relação com a quase guerra civil que houve na Áustria em 1934, com o esmagamento da socialdemocracia, mas fundamentalmente foram razões econômicas. Meu pai tinha contatos em São Paulo, sobretudo de família, e lá se instalou. Fiz o ginásio e o científico em escola pública e depois entrei para o curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, em 1956. Foram meus colegas de turma Roberto Schwarz, Francisco Weffort e vários outros.


Por que ciências sociais?

Eu já tinha uma militância socialista, e para mim ciências sociais era o que mais tinha a ver com as minhas preocupações: o movimento operário, o marxismo, as idéias socialistas. Quem ficou em primeiro lugar no vestibular foi o Weffort. Eu fiquei em segundo, junto com uma moça chamada Evelyn. Na nossa classe acho que tínhamos entre 25 e 30 alunos.


Quem eram os professores ?

Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, que na época eram muito amigos; Florestan Fernandes, que na época não aparecia como o mais avançado politicamente, era um dos mais ecléticos, digamos assim; Azis Simão, de quem eu me sentia mais próximo. Azis Simão era o único que se interessava de forma mais direta pelo movimento operário, sobretudo a sociologia do movimento operário. Eu tinha uma ligação muito forte com ele. Meus primeiros trabalhos foram mais ou menos inspirados em Azis Simão.


E quais foram esses primeiros trabalhos?

Minha primeira pesquisa foi sobre consciência de classe entre operários metalúrgicos do estado de São Paulo. Fiz essa pesquisa com a ajuda do DIEESE, onde eu trabalhava como voluntário. O DIEESE fazia uma pesquisa sobre custo devida distribuindo cadernetas de consumo para as famílias operárias, e eu colaborava com eles. Com a ajuda deles elaborei então um questionário que distribuí em um congresso do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Havia várias perguntas que tentavam aferir níveis de consciência de classe, além de perguntas sobre a origem dos sindicalistas. Havia também uma pergunta mais diretamente política, sobre quais eram os melhores líderes sindicais: os trabalhistas, os socialistas, os anarquistas ou os comunistas? As respostas eram anônimas e muitos responderam em papel timbrado do DIEESE. Cruzando os dados, iniciei o trabalho. Outra pergunta era sobre o sindicato: o sindicato serve para dar assistência dentária e hospitalar, ou é o órgão de luta dos trabalhadores em defesa dos seus interesses? Se o delegado sindical respondia que o sindicato servia para dar assistência, eu já não o qualificava. Foi uma primeira tentativa de pesquisa sociológica sobre o tema. E para minha grande satisfação e glória eterna, recebi o primeiro prêmio do Centro de Pesquisa dos Alunos de Ciências Sociais, ou alguma coisa assim. Depois fiz uma versão um pouco mais sofisticada do mesmo material, que saiu publicada na França no Cahier International de Sociologie. A versão brasileira saiu na Revista de Estudos Políticos, no começo dos anos 60.


Os resultados dessa pesquisa, além de terem agradado aos seus colegas, agradaram à sua consciência militante na época? A classe operária surgia como uma classe promissora do ponto de vista político?

Sim, dava para perceber que havia vários níveis de consciência, e que havia também uma consciência política. Consciência política, para mim, tinham todos aqueles que se identificavam ou com os comunistas ou com os socialistas ou com os anarquistas. Esses tinham consciência de classe. Quem dizia que era a favor dos trabalhistas, não. Essa era a opinião que eu tinha, inspirada um pouco em Azis Simão.


Azis Simão era bom professor?

Era muito bom professor, muito simpático, pedagógico.Os professores com quem a gente se dava melhor eram ele, Fernando Henrique, Otávio Ianni e Antonio Candido, esses quatro. Florestan também, mas já com uma distância maior. Era uma questão de geração. E curiosamente ele se revelava o menos comprometido politicamente com o marxismo. Digo curiosamente porque depois ele vai ser o contrário, mas na época era assim que a gente o via.


O clima na turma do curso de ciências sociais era muito politizado, as pessoas participavam de movimentos?

Não. Poucos eram os que participavam. E esses eram vistos como curiosidades pelos outros alunos. Havia interesse político, havia interesse pela teoria marxista, mas militância política, não, era muito limitada.


Quem eram os que participavam politicamente?

Weffort e mais um ou dois que também eram comunistas, não me lembro agora dos nomes. E acho que só. Na turma seguinte entraram os irmãos Sader, o Eder e o Emir.


Leôncio Martins Rodrigues não fazia parte da turma?

O Leôncio era alguns anos mais velho, estava algumas classes acima. Quando nós entramos ele ainda era militante trotskista. Lembro que andava distribuindo a revista da Quarta Internacional em francês.


Sua turma se encontrava fora da universidade?

Sim, mas não todos. Nós éramos três amigos: Roberto Schwarz, Gabriel Bolaffi e eu. Nos víamos freqüentemente e andávamos sempre juntos. Nos chamavam de “Os três mosqueteiros”. Alguns participavam de um curso dado por Anatol Rosenfeld, de história da filosofia, se não me engano, na casa do Roberto Schwarz. Assisti poucas vezes.


Vocês tinham alguma revista na escola?

Não. Havia uma revista, não me lembro do nome, de alunos que acho que não eram nem de ciências sociais. Era uma revista pequena, que tinha uma vocação para a política e a estética. Lembro que escrevi para lá um artigo sobre a FIARI: Federação Internacional dos Artistas Revolucionários Independentes. Os surrealistas, em 1938, quando Trotski, Diego Rivera e Breton se encontraram no México, resolveram criar uma federação de artistas revolucionários, e independentes em relação à Terceira Internacional. Trotski e Breton redigiram o texto, que foi assinado por Diego Rivera. Esse documento é interessante pois procura analisar o papel revolucionário do artista. Você nos disse que ao entrar para a faculdade já tinha uma militância socialista.


Que tipo de militância era essa?

Antes de entrar na universidade eu participei, durante um tempo curto, do Partido Socialista e depois da famosa Liga Socialista Independente. Era um grupo muito pequeno - minúsculo, microscópico -, inspirado em Rosa Luxemburgo, do qual faziam parte, no começo, Paul Singer, Rocha Barros, Sachetta, Sader. Na realidade, eu me considerava um discípulo de Paul Singer. Foi ele quem me iniciou na obra de Rosa Luxemburgo. Lembro que por volta de 1953-54 ele estava no Partido Socialista e distribuiu um panfleto protestando contra a invasão da Guatemala. Mas depois de um ano ele se decepcionou com o partido, e aí começaram as discussões para se criar um novo grupo, a Liga Socialista Independente. Tenho a impressão de que em conversas e discussões com Paul Singer aprendi tanto quanto na universidade. Do ponto de vista da formação intelectual e política marxista, ele foi uma espécie de universidade particular para mim.


De que maneira você definiria Paul Singer em termos intelectuais na época?

Alguém que ao mesmo tempo tinha uma formação econômica marxista sólida, conhecia perfeitamente Marx, Rosa Luxemburgo, e tinha um engajamento sindical, operário e político muito forte. Ele tinha a preocupação de manter um vínculo com o sindicato e os sindicalistas, com as lutas operárias e com a esquerda, buscando uma alternativa política marxista fora dos quadros do Partido Comunista e da socialdemocracia, tal como era representada exoticamente pelo Partido Socialista.


Que vínculos Paul Singer mantinha com sindicatos e sindicalistas?

Ele tinha contato sobretudo no Sindicato dos Metalúrgicos, com uma corrente de oposição à direção. Havia uma pequena corrente que se propunha reformar a estrutura sindical, desatrelar o sindicato do Estado, acabar com o imposto sindical. Já o meu relacionamento com o sindicato passou pelo movimento estudantil, através da União Estadual dos Estudantes (UEE). Integrei lá uma espécie de secretaria sindical e assistia a reuniões sindicais como representante estudantil. Lembro de ter ido a várias assembléias de operários em greve, trazer a palavra de solidariedade dos estudantes.


Foi na sua época de faculdade que se constituiu esse grupo que tem uma certa importância na trajetória intelectual de vários professores e políticos brasileiros, o chamado “grupo do Capital”?

O “grupo do Capital” apareceu nessa época. Quando estávamos terminando a faculdade, em 1959 ou 60, os responsáveis pelo grupo, Fernando Henrique, Paul Singer, nos convidaram. Éramos alunos já considerados suficientemente maduros para participar. Mas pegamos o bonde andando. Quando entramos acho que eles já estavam no fim do primeiro volume ou no começo do segundo. Eu participei das reuniões durante um ano mais ou menos. Havia professores de várias disciplinas, era um grupo interdisciplinar: filósofos, economistas, historiadores, sociólogos. Fernando Novais, Giannotti, Rui Fausto, Otávio Ianni, Fernando Henrique...


Onde vocês se reuniam?

Na casa do Giannotti, se não me engano. A cada semana se lia um capítulo do Capital. Quem sabia alemão lia em alemão, os outros liam a tradução em espanhol. Uma pessoa fazia o resumo e o comentário do capítulo, e em seguida se discutia. Comecei já no meio, como disse, e fui embora para a França antes de terminar. Mas deu para pegar um bom pedaço. Em relação às referências teóricas, você falou em Marx e Rosa Luxemburgo.


Lenin e Trotski não eram moeda corrente entre vocês?

Não. Lenin era visto como um personagem autoritário, que tinha sido criticado por Rosa Luxemburgo pelo viés autoritário que tinha dado ao movimento revolucionário, e como o responsável, até certo ponto, pelo que aconteceu depois na União Soviética. Dentro da minha formação política, que era luxemburguista estrita, o leninismo era visto como algo pelo menos ambivalente e criticável. E o Trotski era criticado por ser leninista. Embora vários dos companheiros com os quais estávamos ligados fossem de origem trotskista, como o Sachetta, havíamos chegado a um balanço crítico em relação a Trotski.


Fora do campo marxista, havia alguma outra referência teórica para o “grupo do Capital”?

Havia. Para a maior parte dos meus colegas havia uma abertura muito grande para a sociologia e para todas as formas de pensamento. O mais dogmático mesmo era eu. A idéia de que um pensador nãomarxista pudesse trazer alguma coisa de interessante, para mim, era difícil de aceitar. Lembro de discussões violentíssimas com Roberto Shwartz porque ele dizia que Huizinga tinha razão ao afirmar que, no fundo, o que determinava o ser humano era mais o jogo do que a infraestrutura econômica. Isso para mim era totalmente absurdo. Eu também me lembro de outro episódio com uma professora nossa de ciência política, chamada Paula Beiguelman. Ela nos deu para ler um texto de Mannheim sobre o pensamento conservador, que ela mesma traduziu, mimeografou e distribuiu. No começo eu resistia, mas ela me disse: “Você não precisa deixar de ser marxista. Você lê Mannheim e depois volta a ler Marx. Não tem problema. Mas veja se há também outras coisas fora do marxismo.” Eu estava muito cético, mas acabei lendo Mannheim e até achei interessante. Meu estado de espírito era um pouco esse: ainda tem tanta coisa para ler em Marx, Engels e outros marxistas, para que perder tempo lendo Durkheim, Mannheim... Eu achava uma perda de tempo. Lia porque era obrigado, mas com a intenção polêmica de desconstruir esses autores, provar que estavam todos errados do ponto de vista marxista.


Essas outras referências apaixonavam seus colegas que não eram marxistas?

Eles se interessavam. Eram mais abertos, mais ecléticos. Não tinham essa preocupação, essa animosidade contra o pensamento burguês. A atitude deles era diferente. Isso gerava uma certa tensão entre mim e mesmo os meus amigos mais próximos.


Ainda sobre o “grupo do Capital”: o objetivo era estudar Marx apenas para o aprimoramento acadêmico, ou havia a intenção de formar um grupo intelectual de assessoria ou de participação em algum projeto político?

Não era um cenáculo acadêmico, ninguém estava ali em função de sua tese ou de sua carreira acadêmica, mas tampouco era algo com um objetivo político comum, de assessoria ou o que fosse. Não era uma coisa nem outra. Havia um desejo de autoilustração de cada um em função de seus objetivos próprios. Uns mais universitários, outros mais teóricos no sentido amplo, e outros com objetivos propriamente políticos. Havia uma diversidade muito grande, mas todos ali estavam de acordo que era importante voltar à fonte e ler O Capital.


A amizade entre os participantes permaneceu para além do “grupo do Capital”?

Acho que sim. Já havia laços de amizade antes entre nós, Fernando Henrique, Otávio Ianni, Paul Singer, Giannotti. Quem era convidado já possuía laços de amizade que naturalmente se reforçaram depois no grupo. E permaneceram. Para mim talvez menos, porque me afastei, fui embora, mas para quem ficou acho que sim. Embora naturalmente houvesse rupturas, como a de
Fernando Henrique com Otávio. Mesmo assim, de alguma maneira se criou uma espécie de comunidade intelectual.


Você se formou em 1959 e depois foi para a França. Antes disso você chegou a ter alguma experiência profissional no Brasil?

Sim. Quando ainda estava terminando a universidade, no último ano, fui convidado por Wilson Cantoni, professor de sociologia, que conheci através da Liga Socialista, para ser seu assistente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto. Foi uma experiência muito interessante. Conheci uma turma muito simpática e, entre outros, encontrei meu ex-professor de filosofia, não me lembro do nome dele agora, que tinha sido trotskista e estava dando aula lá. Mas o que mais me marcou na época foi a relação com o movimento camponês. Estava sendo organizada uma Liga Camponesa na região de Santa Fé do Sul, cujo dirigente chamava-se Jofre Correia Neto. Esse cara vivia o tempo todo perseguido, entrando e saindo da prisão. Eu, Wilson Cantoni e outros colegas nos interessamos muito por esse movimento. Fomos até Santa Fé do Sul dar apoio a ele e trouxemos uma delegação de várias centenas de camponeses até São José do Rio Preto para participar de um ato em defesa da escola pública. Havia uma relação muito forte entre nós e esse movimento de Santa Fé do Sul.


Por que você foi para a França?

Minha idéia de ir para a França veio primeiro de uma fascinação pela cultura francesa desde a minha adolescência. O surrealismo sempre foi uma influência forte para mim. Eu tinha também uma certa imagem mítica de Paris por ser a cidade das revoluções. Mas, mais concretamente, para mim foi uma descoberta capital ler a obra de Lucien Goldmann, coisa que devo ao Gabriel Bolaffi. Aliás, nunca vou esquecer desta cena: um dia, acho que estávamos no segundo ou terceiro ano da faculdade, o Gabriel Bolaffi me disse assim: “Estou lendo um livro interessante e não vou lhe dizer qual, porque você já é chato, mas se ler esse livro vai ficar um chato inteligente, vai ser insuportável.” Eu e Bolaffi vivíamos discutindo, porque eu era um marxista chato e ele era bem mais eclético, mais aberto, descomprometido. Ele acabou confessando que o livro era La ciência humana y la filosofia, de Lucien Goldmann. Eu naturalmente me precipitei sobre o livro para ver se ficava um chato inteligente, e fiquei deslumbrado. Fiquei deslumbrado porque era marxismo num estilo bastante diferente do que eu tinha visto até então. Havia uma crítica forte à sociologia burguesa, mas ao mesmo tempo um marxismo bem desdogmatizado, aberto. Para mim foi uma iluminação. A partir daí comecei a ler outras coisas de Lucien Goldmann e resolvi: vou para a França fazer minha tese de doutorado com Lucien Goldmann. Pedi uma bolsa francesa e quando já estava trabalhando em São José do Rio Preto veio a resposta positiva. Então fui para Paris. Fui em 1961, pouco depois de o Jango assumir.


Como foi para você, militante político, esse momento da renúncia de Jânio e da posse de João Goulart?

Lembro que a gente simpatizou muito com o Brizola. Saíamos na rua gritando: “Brizola, entra de sola!” Nessa época eu já estava em outra organização política, porque em 1960 uma parte do pessoal que estava na Liga Socialista Independente se juntou com outros grupinhos e criou uma organização chamada Política Operária, Polop - esta já é mais conhecida. Acho que a Liga Socialista Independente, só os nossos amigos é que conheciam... Participei da fundação daPolop junto com Paul Singer, os irmãos Sader, Juarez Brito, Teotônio dos Santos e Rui Mauro Marini.


A ida para a França era uma aspiração que você compartilhava com outras pessoas ou era algo pouco usual no seu grupo?

Acho que havia interesse pela França em muitos do grupo. Alguns inclusive já tinham estudado lá. O interesse era maior da parte dos estudantes de filosofia do que dos sociólogos. Quem estudava filosofia automaticamente iria continuar na França, a relação era muito forte. Em sociologia não era tanto assim. Decididos mesmo a fazer a tese lá acho que estávamos só eu e o Rui Fausto.


Ao partir para a França com o intuito de fazer sua tese de doutorado com Lucien Goldmann, você também tinha a idéia de cumprir uma missão política? Como é que isso estava definido na sua cabeça?

Estava definida na minha cabeça a idéia de fazer uma tese sobre Marx e voltar para o Brasil. Eu já tinha começado a trabalhar sobre Marx no Brasil. Até escrevi três artigos para a Revista Brasiliense, um sobre a questão agrária, “Notas sobre a questão agrária no Brasil” - o que não me faltava era pretensão -, outro sobre o jovem Marx e outro sobre a teoria do partido no pensamento marxista. Aquela discussão clássica entre Rosa Luxemburgo e Lenin. Ir para Paris fazer o doutorado sobre Marx era uma tarefa ao mesmo tempo política e intelectual.


Como foi sua trajetória intelectual na França?

Fiz minha tese com Goldmann. Na época me lembro que estava começando a aparecer o Althusser, e os alunos se dividiram. Rui Fausto, por exemplo, estava mais atraído pelo Althusser; eu, por Goldmann. No seminário do Goldmann apareciam figuras como Herbert Marcuse. Ele passou um ano a convite do Goldmann dando seminários na Escola de Altos Estudos. Outras vezes Goldmann convidava Henri Lefebvre para dar umas conferências. Enfim, era um lugar onde aconteciam coisas interessantes. Fora os seminários do Goldmann, eu assistia a outros cursos, como o do Touraine. Assistia tanto a cursos de filosofia como de sociologia. Fui aos cursos, por exemplo, do Hippolyte sobre Hegel e do Raymond Aron e do Gurvitch, que ensinavam sociologia na Sorbonne. Segui o curso deles com bastante reserva. Eram dois professores insuficientemente marxistas para o meu gosto, mas enfim, aprendi coisas, sobretudo com Aron, que era um cara muito inteligente, ensinava Marx muito bem. Havia outro seminário também interessante, o de Georges Haupt, historiador, sobre o socialismo internacional.


Enquanto estava lá, você acompanhava os acontecimentos no Brasil?

Sim, acompanhava bastante de perto e tinha uma correspondência com meus amigos do Brasil, Paul Singer e os irmãos Sader. Acompanhava as discussões internas da Polop. Considerava-me um militante da Polop em Paris e participava das atividades da esquerda francesa, particularmente doPartido Socialista Unificado, na célula da Sorbonne.


Houve a idéia de estabelecer uma ligação entre o PSU e a Polop? Havia uma analogia entre eles, do ponto de vista do questionamento das ortodoxias partidárias, não é?

Se houve alguma idéia, nunca se concretizou nada. Enfim, li o resto da obra do Goldmann que eu não conhecia ainda e desenvolvi minha tese sobre a teoria da revolução na obra de Marx, metodologicamente inspirada em Goldmann. Mas o Goldmann não concordava. Resumindo a tese: eu relacionava a obra de Marx com o movimento operário na época, tentando mostrar que a teoria da revolução no jovem Marx era uma formulação a partir das experiências concretas do movimento operário, do qual Marx se considerava um pouco o porta-voz. No meu entender, havia uma relação entre a classe e o seu intelectual, enquanto que o Goldmann era muito cético em relação a isso. Para ele, não existe classe operária no século XIX, existem artesãos, e Marx representava mesmo a ala esquerda da burguesia. Então, eu dizia de brincadeira que me considerava um neo-goldmanniano de esquerda. No dia da minha defesa de tese Goldmann me criticou bastante. Em um de seus artigos escreveu que um aluno tentou demonstrar que Marx era a expressão do ponto de vista de classe do proletariado, e que ele não ficara muito convencido. Mas enfim, metodologicamente minha tese era estritamente goldmanniana, no sentido de procurar articular classes sociais, ideologia e cultura: era uma espécie de sociologia da cultura.


Quando você defendeu sua tese?

Em março de 1964. Termino a tese e neste momento se abre um parêntese meio estranho no meu itinerário: vou parar em Israel por razões que não têm nada de políticas nem de intelectuais, são estritamente familiares. Meu pai tinha falecido, meu irmão já vivia em Israel e minha mãe se mudou para lá. Resolvi então tentar o futuro em Israel. Terminado o doutorado, passei um ano estudando hebraico num kibutz e trabalhando metade do dia. Depois de um ano de estudo, fui convidado a dar aula de história das idéias políticas, primeiro na Universidade de Jerusalém, depois na Universidade de Tel-Aviv. Passei quatro anos em Israel, um ano como aluno e três como professor. Mantive ainda algum contato com o Brasil, sobretudo me correspondendo com os irmãos Sader. Aí veio maio de 68 e me deu muita vontade de voltar para a Europa. Nessa época também entro em conflito político com o diretor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Tel-Aviv, onde eu trabalhava. Arma-se um pequeno escândalo na universidade, com muitos protestos. Inclusive os jornais discutem se a demissão do professor era por motivos políticos ou não. Aí um amigo meu que tinha vivido em Israel, mas que estava na Inglaterra, o historiador Theodor Chamu, escreve um artigo no New Statement, denunciando o que ele chama de “macartismo na Universidade de Tel-Aviv”. Um amigo de Chamu, o professor em Manchester Peter Worsley, alguns dias depois telefonou para ele dizendo: “Lemos o seu artigo e resolvemos, em solidariedade ao seu amigo vítima da discriminação, convidá-lo a dar aula aqui em Manchester.” Para mim foi a oportunidade de sair, pois eu já estava me sentindo sufocado em Tel-Aviv.


Nesses quatro anos que você passou em Israel, houve algum acréscimo do ponto de vista intelectual ou vivencial?

O acréscimo importante foi que, para poder dar o curso que dei, aprendi bem história das idéias políticas: Maquiavel, Hobbes, Locke, Tocqueville, Hegel. Foi um bom aprendizado.


Confirmando aquele adágio que diz que o professor é o que mais aprende...

Não é o que mais aprende, é o único que aprende.


Como foi seu contato com a cultura judaica?

Curiosamente, em toda a minha estada em Israel nunca me interessei por nenhum aspecto da cultura judaica. Nunca estudei, nunca escrevi nada! Indiferença total. Só comecei a me interessar pelo judaísmo e a cultura judaica dez anos depois de ter saído de Israel.


Na sua família tinha havido algum investimento em termos de valorização da cultura judaica?

Minha família era entusiasticamente sionista. Tanto que meu irmão e minha mãe foram para Israel. Minha educação teve muito de sionismo e de socialismo, mas a minha decisão de ir para Israel não foi por causa do sionismo, foi, como disse, por razões familiares. Durante esse período em que você esteve em Israel, o Brasil estava se fechando cada vez mais.


Você alimentava a vontade de em algum momento retornar ao Brasil?

Sim, nos quatro anos que vivi em Israel eu tinha a convicção forte de que iria voltar. Lembro que em 1968 escrevi ao Azis Simão dizendo que estava pensando em voltar e perguntando se havia alguma chance de trabalhar em alguma universidade. O Azis escreveu dizendo: “Não volte, não meta os pés aqui. Você chegando aqui vai entrar em cana logo de cara. Seu nome é conhecido, vários de seus amigos já foram presos. Não volte! Por favor, fique aí na Europa!” Fiquei frustrado, mas achei que ele tinha razão. Anos depois, quando voltei ao Brasil pela primeira vez, Azis Simão estava com a impressão de que eu tinha rompido com ele por causa da sua negativa. Ele tentou se desculpar, mas eu disse: “Você tinha razão!”


Nunca lhe passou pela cabeça a idéia de voltar ao Brasil para militar na Polop como dirigente político clandestino? Era o que o Sader estava fazendo, não?

Sim, mas a idéia de voltar clandestinamente era complicada. Não havia muita estrutura. Inclusive houve uma cisão da Polop. O pessoal a quem eu estava mais ligado havia criado uma nova organização chamada POC (Partido Operário Comunista) e estava se aproximando da Quarta Internacional. Nesse momento o Emir Sader veio à Europa. Nós dois discutimos e chegamos à conclusão de que a Quarta Internacional era interessante. Mas não se colocou aí, que eu me lembre, a idéia de voltar ao Brasil.


Além da atividade docente você desenvolveu alguma pesquisa depois que saiu da França?

Concluí minha tese sobre a teoria da revolução no jovem Marx em 1964, mas infelizmente não consegui publicá-la porque fui para Israel. Isso foi uma grande frustração. Seis anos depois, quando retornei à França, procurei um editor, o François Maspero, conversei com ele e com o Georges Haupt, e minha tese foi publicada. Pesquisa, em Israel, fiz muito pouca. Não havia um clima muito favorável à pesquisa. Meu esforço maior foi na docência, na preparação das aulas sobre a história das idéias políticas. Cheguei a escrever alguns artigos em Israel, mas o único trabalho de pesquisa mais interessante foi um sobre Kafka e o anarquismo. É uma pesquisa na qual continuo trabalhando há anos e nunca termino. Em Manchester trabalhei num curso de sociologia política com Peter Worsley e comecei a estudar Max Weber. Quem dá curso sobre Max Weber tem que estudar Max Weber. Comecei a pesquisar sobre ele e até escrevi um artigo que era uma crítica marxista a Max Weber. Mas minha principal pesquisa nessa época, 1968-69, foi mesmo um trabalho mais político do que acadêmico: um livro sobre o pensamento de Che Guevara. Na verdade, comecei esse trabalho escrevendo artigos sobre Guevara em Israel. Continuei as pesquisas em Manchester, e o livro foi publicado em 1970. Antes de ir para a Inglaterra, ainda em Israel, eu já tinha pedido uma bolsa de estudos na França. Um ano depois meu pedido foi aceito. Saio de Manchester em 1969, desembarco em Paris e aí encontro o meu velho amigo Emir Sader, que trabalhava como assistente em Paris-VII com o professor Nicos Poulantzas. Ele me apresenta ao Poulantzas e diz que está indo embora para o Chile. Poulantzas então me fez contratar como assistente. A partir daí comecei a trabalhar como encarregado de curso, chargé de cours, uma pessoa que não tinha contrato, que ganhava por hora. Estatuto meio precário, mas dava para eu me manter.


O que você achou do Poulantzas?

Um cara simpaticíssimo. Nos demos muito bem, mas não concordávamos em nada. Nem politicamente nem teoricamente. Ele era maoísta, eu era trotskista; ele era althusseriano, eu era kantiano. Total divergência e perfeita amizade. No primeiro ou no segundo ano ele propôs que fizéssemos um curso juntos. Era engraçado, porque a cada semana era um que falava e o outro criticava. Os alunos adoravam ver a gente discordando, embora muito amigavelmente. Cada aula era um desacordo total.


Os alunos devem ter aprendido bastante.

Pode ser. Acho que o primeiro curso que fizemos juntos foi sobre o marxismo e a questão nacional. Lembro que a partir desse curso tive a idéia de preparar uma antologia sobre o marxismo e a questão nacional. Fui falar sobre isso com Georges Haupt, que tinha publicado meu livro sobre Marx, ele disse que tinha a mesma idéia e sugeriu que fizéssemos o trabalho juntos. Essa antologia foi publicada em 1974. Enquanto isso, o Goldmann morreu, infelizmente, me deixou órfão. Quando eu estava em Israel tinha pouco contato com ele, mas quando voltei para Paris retomei o contato, voltei a assistir aos seus seminários. Através do Goldmannn conheci Lukács, resolvi fazer meu segundo doutorado, a tese de estado, sobre Lukács, e iria fazê-la com o Goldmannn, mas ele faleceu. Nesses anos 70, trabalhei então na minha tese sobre Lukács e escrevi alguns artigos: um era uma polêmica contra Althusser, chamado “O humanismo historicista de Marx ou Para ler O capital”. Comprei a briga dos lukacsianos contra Althusser. Outro artigo que escrevi foi “Objetividade e ponto de vista de classe nas ciências sociais”. Foi o embrião de um trabalho sobre a sociologia do conhecimento. Esses artigos e vários outros saíram publicados primeiro no Brasil através de um amigo meu, Reginaldo de Piero, com o título Método dialético e teoria política, pela Paz e Terra. Afinal fiz essa tese sobre Lukács, viajei à Hungria várias vezes, trabalhei no arquivo de Budapeste, conheci os discípulos de Lukács. A tese foi publicada na França com um título meio estranho: Por uma sociologia dos intelectuais revolucionários. Aqui no Brasil saiu também com esse título.


Nesse momento em que você volta à França chega também muita gente que está saindo do Brasil.

Exatamente. E eu me integro de maneira direta à colônia dos exilados brasileiros. Embora não fosse um exilado, me identifico com eles e tento na medida do possível dar minha pequena contribuição para a difamação do Brasil no exterior. Lembro que em 1970 eu e uma amiga brasileira fomos visitar o Sartre e pedir a ele para lançar um protesto dos intelectuais franceses contra a tortura no Brasil. Como ainda éramos muito ingênuos, em vez de levar um texto já pronto, levamos só a idéia. Ele é que teve que sentar e escrever o texto. Depois telefonou para os outros intelectuais assinarem, e saiu o protesto. Eu estava em todas as reuniões com a Violeta Arraes, que era a principal organizadora.


Você nos revelou que desde a universidade possuía um pensamento bastante ortodoxo. Anos depois, estudando em Paris, tendo contato com esse conjunto bastante heterogêneo de exilados brasileiros, como você avaliaria suas posições intelectuais? Houve alguma mudança?

A grande mudança que houve para mim foi a descoberta de Goldmann e Lukács. Passei de um marxismo ortodoxo para um marxismo mais aberto. Quanto aos exilados, havia uma espécie de unidade contra a ditadura, uma simpatia geral pela luta armada. Minha referência política era o POC, que não existia mais no Brasil - era portanto uma referência mais imaginária do que real. A última tentativa de reorganizar o POC fracassou em 1971, quando um amigo nosso voltou de Paris para o Brasil e foi morto pela ditadura.


Você ainda achava, nesse período, que iria voltar para o Brasil?

Francamente, cada vez menos. Entre outras razões, havia uma pessoal: eu havia me casado. Quer dizer, eu não descartava completamente a idéia, mas ficava ainda mais complicado. Depois nasceram dois filhos na França e o meu regresso foi ficando cada vez mais improvável.


Seu comprometimento profissional com a França também devia contar.

Sim, mas isso não era o maior obstáculo. Eventualmente, mudando o regime no Brasil, eu conseguiria trabalho na universidade brasileira. Era mais esse problema pessoal. E nessa época também me confiscaram o passaporte brasileiro. Fui renovar o meu passaporte na embaixada e me explicam que eu era persona non grata. Eu já não tinha nem legalmente como voltar ao Brasil.


Depois que confiscam o seu passaporte, como é que você fica na França?

Em maus lençóis. Na mesma época eu tinha pedido a naturalização francesa, que foi recusada. Em 1975 me encontro sem passaporte brasileiro e sem naturalização francesa. Aí me lembro dos meus ancestrais austríacos. Vou à embaixada da Áustria com o certificado de nascimento do meu pai e consigo o passaporte austríaco. Durante vários anos fui austríaco. Só muitos anos depois consegui a naturalização francesa. Fui ver um advogado e ele me disse: “Desista, se mudar a presidência e ganhar a esquerda, voltamos a falar no assunto.” Depois da eleição do Mitterand, em 1981, fui ver o advogado outra vez e ele enfim conseguiu, mas não foi fácil. Foi preciso quebrar muitos galhos.


Na década de 70 houve uma retomada da produção intelectual no Brasil com a implantação dos cursos de pósgraduação. Você acompanhou esse processo?

Não. Meu acompanhamento da atividade acadêmica no Brasil é zero! A última coisa que acompanhei foi no final dos anos 60 na USP, quando o pessoal de esquerda publicou aquela revista Teoria e Prática. Mandei para eles um capítulo da minha tese sobre Marx e eles traduziram e publicaram. Eram meus amigos Rui Fausto, Sader, Schwarz. Depois, boa parte deles foi para o exílio. Roberto Schwarz estava em Paris; Emir estava no Chile e depois foi para Cuba; Rui Fausto foi para o Chile e depois veio para Paris, onde arranjei trabalho para ele. Boa parte dos meus amigos estava em Paris, não estava mais na USP. Então, eu não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.


Você teve algum contato com o experimento do CEBRAP?

O CEBRAP é de 1969, estava lá o Fernando Henrique Cardoso.
É claro que ouvi falar do CEBRAP, mas não tinha uma ligação direta. Eu conhecia melhor as últimas cisões da VARPalmares...


A partir de quando você retomou o contato com o Brasil?

Em 1980 apareceu uma chance de visitar o Brasil. Não sei como, alguém aqui do Brasil armou um negócio para eu ir em missão da UNESCO ajudar a formar uma pósgraduação na cidade de Belo Horizonte. Minha retomada de contato com o Brasil foi portanto em 1980, depois de 19 anos de ausência. Foi um choque cultural. O sentimento foi de que no Brasil tudo tinha mudado e tudo continuava na mesma. Tudo mudou porque tudo ficou mais enorme, tudo se expandiu. Coisas que eram referências para mim já não existiam mais. A minha casa tinha sido demolida, meu ginásio tinha sido demolido, a Maria Antônia não era mais Maria Antônia. Desse ponto de vista eu estava realmente me sentindo meio perdido. Mas as pessoas e o estilo de vida brasileiro eram os mesmos, era o velho Brasil de sempre.


E você gostou?

Gostei e fiquei com vontade de voltar. Não voltei logo porque não apareceu ocasião, mas a partir de 1984 comecei a voltar regularmente a cada dois anos e retomei os contatos universitários, pessoais, familiares.


De que maneira o Brasil ocupa hoje um lugar dentro de você?

Ser brasileiro sempre foi parte fundamental da minha identidade. Se a minha identidade é uma espécie de construção de tijolinhos, o fundamento é brasileiro. Mas nessa construção também entra a França. Depois de tantos anos na Europa a gente acaba se europeizando. Mas agora, pela primeira vez, estou trabalhando com temas brasileiros: a questão da religião e política no Brasil e na América Latina, em torno da Teologia da Libertação.


Antes de entrar nesse ponto, retomemos sua trajetória: Marx, Goldmann, Lukács... A partir de quando há uma ampliação de horizontes?

Há um momento que acho importante marcar, que é o do meu trabalho sobre a sociologia do conhecimento. Aí eu finalmente voltei a ler Mannheim - minha querida amiga Paula Beiguelman tinha razão, precisamos ler Mannheim - e fiz um projeto de concurso para entrar no CNRS - Centre National des Recherches Scientifiques. Por milagre, fui aceito. Digo milagre porque os projetos para se conseguir entrar no CNRS são de pesquisa empírica, o fenômeno social é estudado empiricamente. E eu fui o único que apresentou um projeto de teoria sociológica. Pelo jeito eles gostaram. Entrei para o CNRS com esse projeto e fiz um trabalho sobre a sociologia do conhecimento que foi publicado na França e traduzido no Brasil com o pomposo título, meio irônico, de As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. É o único livro meu que teve um certo sucesso no Brasil. Também foi publicado na França, mas teve muito menos impacto. Nesse período dei um passo além do marxismo goldmannianolukacsiano. Esse passo foi dado com a descoberta do Walter Benjamin em 1979-80. Ele me dá uma iluminação tremenda, e se abre um horizonte novo para mim: a Escola de Frankfurt e a temática do romantismo, que eu já vinha trabalhando a partir de Lukács, mas que começa a me interessar mais. Isso me obriga a rever uma série de coisas do marxismo e a ter uma visão bastante mais heterodoxa. Começa também o interesse pela relação entre religião-cristianismo-revolução, daí aquele livro meu Redenção e utopia.


Você estabelece alguma relação entre a sua inclinação pelo Walter Benjamin e o reconhecimento do fracasso, pelo menos a curto prazo, do projeto revolucionário no Brasil?

Não. Só se for de uma maneira muito indireta, no sentido de que o Walter Benjamin é alguém que se preocupa muito com a história dos vencidos e tem uma sensibilidade muito forte em relação a isso. Subjetivamente isso pode corresponder ao sentimento de simpatia pelas vítimas do processo de repressão, e pelo próprio Brasil. Só se for muito indiretamente.


Há uma correlação evidente entre a descoberta de Gramsci e a redescoberta da temática da democracia por parte da esquerda brasileira a partir de 1974. Já partir dos anos 80 há uma inclinação geral pelo Walter Benjamin. Ou seja, no momento em que se considera que o projeto revolucionário está encerrado, as obras de Benjamin são traduzidas no Brasil e todo mundo lê Benjamin.

Pode ser que a opção pelo Benjamin no Brasil tenha se dado nesse contexto, mas a minha pessoal não foi assim. Ao contrário, peguei Benjamin pelo lado messiânico e revolucionário. Já na questão da democracia, para mim, a referência ainda era Rosa Luxemburgo. Não necessitei dessa passagem pelo Gramsci.


Walter Benjamin também o ajuda a chegar ao universo de referências da cultura judaica?

Sim, claro. É a partir de Benjamin que descubro o judaísmo e a religião. Tanto o messianismo judeu como a religião em geral, religião como cultura revolucionária. Minha filiação atual com o CNRS passa por um centro de estudo de sociologia da religião. Obviamente, do ponto de vista de alguém que não é religioso, mas observa com muito interesse o fenômeno.


Como você se posiciona em relação à crítica que vê o marxismo como uma religião laica?

Colocada nesses termos, de crítica, acho que é uma tese furada, superficial. Não dá conta do que é o marxismo como teoria materialista. Mas, em outro nível mais profundo, já não como crítica, mas como reivindicação positiva, acho a tese legítima. Eu me refiro ao nível que é estudado pelo Lucien Goldmann naquele livro dele sobre o Deus oculto, quando ele compara a aposta de Pascal com a aposta de Marx. Ele diz que tanto no caso da religião em Pascal como no caso do socialismo em Marx há um elemento de fé, isto é, um elemento que não pode ser demonstrado empiricamente. Ambos se apoiam numa aposta. Pascal aposta na existência de Deus; Marx aposta na possibilidade da realização do comunismo. E essa aposta implica necessariamente o risco de não dar certo. Mas o indivíduo tem que apostar, ele já está embarcado, não dá para escapar. Como diz Pascal, “já estamos embarcados”, não dá para ficar olhando de fora.. Você é obrigado a apostar em uma coisa ou outra. Quem não aposta na existência de Deus orienta a sua vida em função dessa hipótese. Já o cristão orienta a vida dele pela outra aposta. O mesmo vale para o socialismo, todos temos que apostar. Então, nesse sentido há uma afinidade, ou uma homologia estrutural, entre a religião, pelo menos um certo tipo de religião, que é a do Pascal, e o socialismo de Marx. Há um elemento de fé, um princípio último não demonstrável cientificamente e fundado numa aposta. Nesse sentido acho legítima a comparação entre religião e marxismo, mas não no sentido superficial, jornalístico.


Para encerrar, pediria que você fizesse um balanço da atualidade do pensamento de Marx. Você, que sempre teve a referência do marxismo, como enfrenta esse movimento atual que afirma que Marx foi um grande autor, mas do século XIX, e que é um anacronismo mantê-lo como referência?

Começaria lembrando uma velha citação: “Marx morreu para a humanidade”. Benedetto Croce, 1960. Essa tese de que Marx acabou não é muito nova. Na verdade, o que se está assistindo hoje em dia na França e em outros lugares é um fenômeno que a própria imprensa chama de “a volta de Marx”. E eu acho que é bastante previsível, porque para tentar entender o capitalismo e, ainda mais, para tentar transformar esse mundo, é necessário Marx. Inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, ele voltará à ordem do dia, até o momento em que já não for mais necessário, quando o capitalismo não existir mais. Como já diziam Rosa Luxemburgo e Gramsci, numa sociedade pós-capitalista, socialista, sem classes, as categorias do marxismo estarão superadas. Dito isto, acho que cabe uma crítica a Marx, obviamente. As duas vertentes de crítica que me parecem mais ricas a explorar são a vertente libertária e a vertente ecológica. Toda a crítica libertária à concepção de Estado de Marx e às ilusões de Marx sobre o Estado merece ser explorada, é uma problemática fértil. E a outra crítica que me parece interessante é a ecológica. Ela põe em questão toda a doutrina de progresso, toda a concepção da história a partir do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, elementos centrais em termos de marxismo, sobretudo de um certo marxismo que, para resumir numa frase, eu chamaria de “marxismo do Prefácio de 1857”. Aí está um elemento que precisa ser recolocado, e não é um mero detalhe, é um elemento bastante central da teoria de Marx. Acho que passa por aí uma revisão crítica do marxismo, mas no sentido de aprofundar a radicalidade e a negatividade da teoria em relação à modernidade capitalista. A maior parte das críticas ou das proposições de revisão que hoje se fazem a Marx vão na direção contrária, tentam diluir a radicalidade e reconciliar Marx com a modernidade capitalista. Na minha opinião, o interessante é exatamente aprofundar a dimensão crítica, colocando em questão aqueles elementos da obra de Marx que são insuficientemente críticos em relação ao modelo de civilização ocidental, industrial e patriarcal.