quarta-feira, 6 de maio de 2009

Os Limites do Capítulo IV da Ontologia de Lukács - Fernando Frota Dillenburg

Texto apresentado no V Colóquio Internacional Marx e Engels organizado pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp - Campinas (SP) em Novembro de 2007. Se encontra diponivel no endereco : http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/paginas/gt1sessao6.html


O objetivo deste trabalho é problematizar a respeito da interpretação de O capital feita por Lukács no capítulo IV da Ontologia do ser social, intitulado “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx”, primeiro capítulo da Ontologia que trata sobre Marx.(1) Apesar de ser uma obra inacabada, a Ontologia recebeu uma revisão final de Lukács, o que confere a ela certo grau de precisão em relação às idéias do autor. Comecemos analisando o ponto de partida escolhido por Lukács ao discutir a obra madura de Marx.

I - O ponto de partida – a seção III de O capital

a) O valor como categoria inicial

Lukács comenta corretamente que Marx faz um caminho que vai do abstrato à totalidade concreta.(2) Esse caminho, afirma Lukács (1979: 46) “não pode partir de uma abstração qualquer”, pois um caminho que tomasse qualquer fenômeno como ponto de partida não levaria jamais à compreensão da totalidade, concluindo, por isso, que “o ponto de partida deve ser uma categoria objetivamente central no plano ontológico”. Mas que categoria seria essa? Para Lukács, (1979: 46) “a categoria inicial de O capital, como ‘elemento primário’, é o valor”.
Mas poderíamos perguntar: seria o valor a categoria inicial, o “elemento primário” de O capital? Nas primeiras linhas do Livro I, Marx (1982: 45; 1988: 49) afirma que:
a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias”, e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investigação começa (beginnt), portanto, com a análise da mercadoria (der Ware).

Fica evidente que a categoria inicial analisada por Marx em O capital não é o valor, mas a mercadoria. Para chegar ao valor, Marx faz o leitor percorrer um caminho. Ele parte das determinações mais abstratas, mais imediatas, mais sensíveis da mercadoria, aquelas ligadas ao seu corpo, que lhe conferem a qualidade de “satisfazer as necessidades humanas”, ou seja, as características que a tornam algo útil. “A utilidade de uma coisa”, afirma Marx, “faz dela um valor de uso (Gebrauchswert)”. Poderíamos dizer então que o valor de uso é a segunda categoria exposta em O capital. Marx (1982: 46; 1988: 50) desvela, em seguida, a terceira categoria: o valor-de-troca (Tauschwert), “que aparece, de início, como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma mesma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço”. O valor de troca, por sua vez, é a forma de manifestação do valor (Werte), a quarta categoria exposta em O capital.
Portanto, para chegar a desvelar a categoria valor, Marx partiu da riqueza na sua forma mais abstrata (uma imensa coleção de mercadorias), buscou a forma mais simples de manifestação da riqueza (a mercadoria individual) para depois desvendar as contradições internas a essa mercadoria (inicialmente a contradição entre valor de uso e valor de troca e depois a contradição entre valor de uso e valor). É nesse sentido que Marx afirma (1982: 62; 1988: 75) que, “quando, no início deste capítulo, para seguir a maneira ordinária de falar, havíamos dito: a mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor, falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e ‘valor’”. Assim, ele partiu da falsidade da primeira contradição para chegar à contradição essencial, somente aí chegando a desvelar o valor.
Para isso, ele teve que deixar de lado (1982: 47; 1988: 52) “o valor de uso dos corpos das mercadorias”, restando-lhes apenas “uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho”, ou seja, produtos de “uma gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano”. Desse modo ele chegou ao valor, que é a manifestação do trabalho humano abstrato, ou seja, aquilo que há de comum a todas as mercadorias.
Esse percurso feito por Marx para chegar ao valor das mercadorias demonstra o equívoco de Lukács ao considerar o valor como categoria inicial de O capital. Sigamos, então, a exposição de Lukács.

b) o trabalho como categoria central

Lukács, (1979: 15) afirma que o trabalho seria a categoria central em O capital. Por isso ele (1979: 16) inicia sua exposição descrevendo o trabalho enquanto trabalho útil, formador de valores de uso, ação humana comum a todas as formações sociais, enquanto simples relação entre os homens e a natureza visando produzir um bem útil. Ou seja, Lukács inicia a exposição de O capital pelo item 1 do capítulo V, que na divisão original de Marx é o início da seção III.
Mas, seria correto afirmar que o trabalho, enquanto formador de valores de uso, é a categoria central da obra madura de Marx? Pensamos que quando Marx descreve o processo de trabalho como processo de produção de valores de uso, ou seja, como transformação da natureza em algo socialmente útil, ele não considera este um momento essencial da exposição de O capital, conforme pensa Lukács. Ao contrário, o item 1 do capítulo V representa um momento abstrato(3).
Uma indicação de que o item 1 do capítulo V consiste em mais uma abstração é feita pelo próprio Marx (1985: 154; 1988: 199), ao convidar o leitor, no final deste item, a voltar “ao nosso aspirante a capitalista. Deixamo-lo”, continua Marx, “depois de ele ter comprado no mercado todos os fatores necessários a um processo de trabalho, os fatores objetivos ou meios de produção e o fator pessoal ou a força de trabalho”. Com isso, Marx está encerrando aqui a abstração feita no item 1, e retornando ao que realmente interessa, à análise do modo de produção capitalista. Ao convidar o leitor a acompanhar o aspirante à capitalista, ele está convidando-o a voltar ao final do capítulo IV, a abandonar (Marx, 1985: 144; 1988: 189) “junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de trabalho, essa esfera ruidosa (geräuschvolle) existente na superfície e acessível a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: No admittance except on business”. Ao entrar na esfera da produção, Marx (1985: 145; 1988: 191) afirma que “(...) já se transforma em algo a fisionomia de nossa dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor da força de trabalho como seu trabalhador; um cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o – curtume”.
Portanto, a referência ao aspirante à capitalista feita no final do item 1 do capítulo V remete o leitor ao final do capítulo IV, demarcando de maneira precisa que este item não passa de um momento abstrato da exposição.
Da mesma maneira que, no início do primeiro momento dialético, no início do capítulo I, ele iniciou pelo mais simples (a mercadoria individual) para buscar o que era comum a todas as mercadorias (o valor), no início do segundo momento dialético, no início do capítulo V, ele inicia, novamente, pelo mais simples, por aquilo que é comum a todos os modos de produção (o processo de trabalho).
Isso não quer dizer que o valor seja a categoria inicial ou que o trabalho seja a categoria central em O capital, como defende Lukács. Pensar assim seria essencializar um momento abstrato da exposição,(4) seria tomar o concreto pelo abstrato, ou seja, seria inverter completamente a intenção de Marx, que parte do processo de trabalho como momento abstrato, simples e comum a todas as formações sociais, para, a partir daí, desvelar os segredos ocultos por trás do processo capitalista de valorização do valor. Não por acaso, é isso que ele faz no próximo item do capítulo V. No início do item 2, Marx (1985: 155; 1988: 201) diz, ironicamente, que embora nosso capitalista seja um decidido progressista, o que ele quer “não é produzir só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais- valia (Mehrwert)”.
Aqui fica mais uma vez evidente que o trabalho enquanto produtor de valor de uso não é a categoria central de O capital. Ele é apenas um meio de produzir mais-valia. Que conseqüência teria trazido este equívoco de Lukács para a sua Ontologia? Em primeiro lugar, como acabamos de ver, o fato de ele considerar o trabalho útil a categoria central em O capital fez com que ele iniciasse a exposição da obra de Marx justamente pelo item 1 do capítulo V.
Mas, cabe perguntar: seria correto iniciar pelo processo de trabalho, ou seja, por aquilo que Marx expõe no item 1 do capítulo V de O capital? Seria correto alterar o modo de exposição original proposto por Marx?(5) Esta alteração na forma de expor não modificaria o conteúdo da obra? Ou será que o encadeamento lógico das idéias é algo de menor importância? Afinal, será possível chegar ao mesmo resultado iniciando por pontos de partida diferentes? Para sabermos o quanto esta inversão do ponto de partida interferiu na interpretação lukaciana de O capital, acompanhemos a seqüência da exposição da Ontologia.

II – O retorno à seção I – a contradição entre valor-de-uso e valor-de-troca

A seguir, Lukács retorna à seção I para demonstrar que, com o desenvolvimento da produção, surgem as trocas mercantis e, com elas, o valor-de-troca. Nesse sentido, afirma Lukács (1979: 19) “com o pôr socialmente objetivo do valor-de-uso, surge no curso do desenvolvimento social o valor-de-troca, no qual, se considerado isoladamente, desaparece toda objetividade natural”.
Percebe-se, então, que a seqüência da exposição de Lukács leva o leitor a concluir que os homens se diferenciaram dos outros animais por meio do trabalho; que através do desenvolvimento da produção social, os homens passaram a produzir um excedente; que este excedente conduziu à realização das trocas de mercadorias; e, assim, finalmente, surgiu o valor de troca. Ora, esse modo de expor reduz a teoria de Marx à antropologia, à mera descrição do desenvolvimento humano, sem descontinuidade, sem a demarcação de fronteiras ou de momentos de ruptura.6
Após todo esse qüiproquó, qual seria o próximo passo da exposição de Lukács? Ele dá, a seguir, um salto da seção I diretamente à seção III de O capital, desprezando a seção II. Mas seria correto desprezar a seção II?

III - O esquecimento do primeiro momento transitório – a seção II

No modo de exposição original de O capital, a seção II é o momento no qual Marx leva o leitor a superar suas próprias ilusões, baseadas nas noções de igualdade e liberdade próprias da economia política burguesa. Marx convida o leitor a abandonar a esfera da circulação e entrar para a esfera da produção. Marx (1985: 144-145; 1988: 189) observa que, “aqui, há de se mostrar não só como o capital produz, mas também como ele mesmo é produzido, o capital. O segredo da fabricação de mais-valia há de se finalmente desvendar”.
Este momento de transição entre as duas esferas é fundamental,(7) porque representa uma região que contém uma profunda negatividade contraditória, expressa na afirmação de Marx de que “o capital não pode originar-se da circulação e, tampouco, pode não originar-se da circulação. Deve, ao mesmo tempo, originar-se e não se originar dela”. Isso é chave do ponto de vista político-programático.(8) É como se Marx estivesse indicando aos dirigentes revolucionários que a contradição central entre as classes, gerada de maneira imanente, brotada da própria estrutura do capitalismo, está ligada ao momento da compra e venda da força de trabalho, pois é neste momento que se determina a parcela do valor produzido que ficará para cada uma das classes envolvidas no contrato de trabalho.(9)
Nesse sentido, esta seção consiste num momento fundamental, o momento da compra e venda da força de trabalho, exposto por Marx no item 3 do capítulo IV. Aqui aparece o primeiro esquecimento de Lukács. Veremos mais adiante as conseqüências disso. Por enquanto, continuemos seguindo o percurso feito por ele na sua Ontologia.
Na seção III, Marx desvela o segredo da produção da mais-valia. Sobre isso, Lukács (1979: 44) comenta corretamente que Marx percebe que “a força de trabalho é uma mercadoria sui generis, cujo valor de uso possui a qualidade peculiar de conduzir, durante a sua utilização real, a uma criação de valor”, ou seja, é a única mercadoria que produz mais-valia. Lukács (1979: 44-45) aborda o problema da luta em torno da jornada de trabalho, citando uma longa passagem do capítulo VIII, seção III, no qual Marx (1985: 190; 1988: 249) comenta que no momento da compra e venda da força de trabalho, o capitalista tem o direito de tentar prolongar o mais possível a jornada de trabalho e o trabalhador, por sua vez, tem o direito de tentar limitar a jornada de trabalho a uma determinada magnitude normal, isto é, aqui residem direitos iguais e opostos, e nestas situações, o que decide é a força. Marx expressa assim, de maneira aberta, a luta de classes pelo estabelecimento da jornada de trabalho. Em relação a isso, Lukács (1979: 45) afirma que “esses momentos extra-econômicos, por uma necessidade ditada pela própria lei do valor, surgem continuamente, na cotidianidade (por assim dizer) do movimento capitalista das mercadorias, no processo normal de realização da lei do valor”.
Embora Lukács tenha exposto corretamente a luta em torno da jornada de trabalho como um momento de manifestação da violência extra-econômica, isto é, como uma expressão da luta de classes, seu equívoco consiste em abstrair o momento seguinte, que é indissociável deste, exposto por Marx na seção VI: a luta em torno da manutenção do salário. Marx demonstra aqui como as diversas formas de salário (por peça, por tempo, etc.) servem para ocultar a exploração da força de trabalho, o que faz da produção capitalista de mercadorias a forma mais sofisticada de exploração do trabalho alheio. Com isso, Marx quer demonstrar que a exploração da força de trabalho está relacionada com a combinação do aumento da extensão da jornada e da redução do salário. Nada disso é exposto por Lukács.
A seguir, Lukács esquece mais um momento fundamental, o segundo momento transitório, o momento do retorno da instância da produção para a instância da circulação, ou seja, o momento da realização da mais-valia, ou conforme diz o próprio título do capítulo XXII, o momento da “transformação da mais-valia em capital”.

IV - O esquecimento do segundo momento transitório – a seção VII

a) O capítulo XXII:

No capítulo XXII, Marx demonstra que o capitalista não paga equivalente algum em troca da força de trabalho, pois é o próprio trabalhador que produz este equivalente através de seu trabalho, cabendo ao capitalista apenas lhe devolver, por meio do salário, o que ele próprio produziu. Marx afirma (1985: 166; 1988: 609):
o intercâmbio de equivalentes, que apareceu (erschien) como operação original [no capítulo V, FD], se torceu de tal modo que se troca apenas na aparência, pois, primeiro, a parte do capital que se troca por força de trabalho nada mais é que uma parte do produto de trabalho alheio, apropriado sem equivalente (ohne Äquivalent), e segundo, ela não somente é reposta por seu produtor, o trabalhador, como este tem de repô-la com novo excedente.
E conclui Marx: “a relação de intercâmbio entre capitalista e trabalhadores torna-se, portanto, mera aparência (Schein) pertencente ao processo de circulação, mera forma (blosse Form), que é alheia ao próprio conteúdo e apenas o mistifica”. Neste momento sintético, nesta segunda transição dialética, depois de ter percorrido todo o processo, iniciando pela esfera da circulação (Dinheiro --- Mercadoria = compra), passado pela esfera da produção (P), e voltado para a esfera da circulação (Mercadoria que contém mais-valia --- Dinheiro valorizado = venda), ele mostra que na esfera da circulação exposta inicialmente se manifestam apenas as formas mais aparentes dos fenômenos. Portanto, a seção I não é, como pensa Lukács, uma descrição antropológica do desenvolvimento da relação dos homens com a natureza que teria conduzido à produção e à troca de mercadorias. O que Marx expõe na seção I são as ilusões próprias da economia política, segundo a qual todos os homens seriam iguais produtores de mercadorias, que procuram o mercado para atender suas necessidades comuns. No capítulo XXII, estas ilusões de igualdade e liberdade entre os homens no capitalismo são negadas de maneira determinada por Marx.(10)
Por não falar uma única palavra sobre isso, Lukács leva o leitor a pensar que, para Marx, haveria equivalência na troca entre o capitalista e o trabalhador – exposta na seção III, capítulo V11 - e que os direitos entre os dois seriam iguais (como foi exposto na seção III, capítulo VIII). Lukács parece não perceber que Marx nega isso no capítulo XXII. Na realidade, no capitalismo o trabalhador não tem direito sequer à troca de equivalentes, pois a troca de equivalentes entre o capitalista e o trabalhador ocorre apenas na aparência. No capitalismo, o trabalhador não tem direito algum. É o que Marx afirma no capítulo XXIV.

b) O capítulo XXIV

De acordo com uma célebre passagem do capítulo XXIV (Marx, 1985: 293-294; 1988: 790), a tendência histórica da acumulação capitalista representa, para os trabalhadores, o aumento da “(...) extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração (...)”. Portanto, no capitalismo, só o que resta aos trabalhadores é o aumento da sua degeneração enquanto classe. Baseado nisso, Marx propõe a auto-organização como única saída para os trabalhadores. Ele diz: “(...) mas [aumenta] também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada (organisierten) pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista”. Mas, afinal, com que finalidade os trabalhadores se auto-organizariam? Com o fim de expropriar os capitalistas. Marx (1985: 294; 1988: 791) conclui dizendo: “soa a hora final da propriedade capitalista. Os expropriadores são expropriados (Die Expropriateurs werden expropriiert)”.
A respeito disso, Lukács não fala uma única palavra. Do capítulo XXIV, Lukács (1979: 45) comenta o seguinte:
Marx expõe, num capítulo particular, a gênese histórica do capitalismo, a chamada acumulação primitiva, uma cadeia secular de atos de violência extra-econômica, somente mediante os quais foi possível a criação das condições históricas que fizeram da força de trabalho aquela mercadoria específica que constitui a base das leis teóricas da economia do capitalismo.
Lukács observa corretamente que, para Marx (1985: 292; 1988: 787-788) a acumulação primitiva consiste no processo de separação entre os trabalhadores e as condições de trabalho. No entanto, de acordo com a citação acima, Lukács considera que esse processo já teria se encerrado, teria ficado para trás ou, para usar as suas próprias palavras, teria sido responsável apenas pela “criação das condições históricas” do surgimento da força de trabalho como mercadoria. Porém, uma passagem do capítulo XXIV deixa claro que essa não é a opinião de Marx (1985: 262; 1988: 742), pois ele observa que “tão logo a produção capitalista se apóie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente (stets wachsender Stufenleiter)”. A incompreensão de Lukács sobre este ponto fica ainda mais evidente no seguinte trecho deste mesmo capítulo, onde ele diz (Lukács, 1979: 73): “quando analisamos mais atrás a chamada acumulação primitiva, observamos que tão-somente quando essa se concluiu é que puderam entrar em ação as leis do capitalismo propriamente ditas, as leis puramente econômicas”.(12) (grifo nosso) Para ele, a acumulação primitiva teria dado lugar a uma nova forma de acumulação, a acumulação propriamente capitalista.
Como se não bastasse, Lukács comete mais um grave equívoco, quando se refere à acumulação originária, ao afirmar que “(...) o novo sistema econômico do capitalismo teria sido impossível sem essa anterior subversão extra-econômica das relações de distribuição” (grifo nosso). Ora, a acumulação originária não se refere exclusivamente às relações de distribuição, ou seja, às relações da esfera ilusória da circulação, mas principalmente às relações de propriedade, isto é, a acumulação originária é o processo de separação dos trabalhadores da propriedade dos meios de produção, processo esse que, segundo Marx, se aprofunda a cada dia.(13)

V – O passo final: um salto indeterminado ao socialismo

No final do capítulo IV da Ontologia, sem ter defendido claramente a necessidade de uma ruptura revolucionária, Lukács passa a descrever a transição do socialismo ao comunismo. Citando uma passagem de Lênin em O Estado e a revolução, Lukács (1979: 162) descreve como se daria a extinção do Estado na sociedade socialista. Assim, ao dar um salto direto ao socialismo, abstraindo todas as dificuldades da construção das condições subjetivas da revolução, Lukács transforma o socialismo numa utopia, numa imaginária sociedade do futuro, numa abstração idealista.(14) Lukács esquece que a teoria de Marx, que foi aplicada de maneira rigorosa por Lênin, é acima de tudo, uma teoria da negação do presente, da negação determinada do modo de produção capitalista, ou, como diz Marx no final do capítulo XXIV (1985: 294; 1988: 791), uma teoria cujo pressuposto é a negação da negação (Es ist Negation der Negation).
Assim, por todos os seus esquecimentos e equívocos, Lukács mostra-se incapaz de perceber que a categoria central de O capital não é o trabalho, mas a luta de classes, que já está, aliás, pressuposta em todo o Livro I,(15) pois, afinal, para que os homens se transformem em produtores de mercadorias é necessário destruir as comunidades primitivas, ou seja, é necessário iniciar o processo de expropriação da massa do povo. (Marx, 1985: 81; 1988: 102)
Por meio desses recortes arbitrários, Lukács retira, assim, todo o conteúdo dialético e revolucionário da obra madura de Marx. Apesar de expor a violência extra-econômica como a violência da luta de classes, Lukács não a coloca como algo pressuposto, como uma necessidade objetiva posta pela própria estrutura da sociedade capitalista. Ele esquece que a luta de classes é o fundamento de todo Livro I e que essa violência extra-econômica originária deve ser reposta pelos trabalhadores ou, em outras palavras, que a única alternativa para os trabalhadores é a sua auto-organização com o objetivo de expropriar os expropriadores.



(1) O primeiro capítulo da Ontologia trata do neopositivismo e do existencialismo; o segundo analisa o pensamento de Nikolai Hartmann; e o terceiro é um estudo sobre o pensamento de Hegel.
(2) A esse respeito, Marx (1989: 21) observa que “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pelo caminho do pensamento”. Este é, conclui ele, “decisivamente, o método científico correto”.
(3) Cfe. Benoit (1996: 27). Marx trabalha permanentemente com abstrações, o que, aliás, faz parte do método dialético utilizado por ele para expor o movimento do real, para expor “a vida da matéria”, ou seja, para expor o modo como o capital produz e como ele mesmo é produzido.
(4) Essa noção foi exposta numa das seções do grupo de estudos dos três livros de O capital, realizado na Unicamp e organizado pelo prof. Dr. Hector Benoit, com o apoio do Cemarx.
(5) Cfe. Benoit (1999).
(6) Lessa (2002: 115) já havia observado este problema na Ontologia de Lukács. Embora estivesse analisando o problema da política ao invés do trabalho, Lessa afirmou que Lukács “exagera os laços de continuidade entre a forma e o conteúdo das disputas sociais antes e após o surgimento das sociedades de classe, levando-o à afirmação da ‘universalidade’ da política”. No caso analisado por nós, poderíamos dizer, seguindo Lessa, que o exagero dos laços de continuidade teria levado Lukács à afirmação da “universalidade” do trabalho.
(7) Cfe. Benoit (1999: 85).
(8) Cfe. Benoit (1997). Vale lembrar que, ao escrever O capital, Marx era um militante revolucionário, pois, enquanto a redigia, ele contribuiu decisivamente para a fundação, em 1864, da Associação Internacional dos Trabalhadores, que posteriormente ficou conhecida como a I Internacional. Por isso, não há como desprezar o caráter político-programático contido em O capital. Era de se esperar que Lukács também tivesse as preocupações relacionadas ao programa partidário, pois ele foi, diferentemente de outros marxistas ocidentais, um militante de um partido comunista.
(9) Nesse sentido, Benoit (1999: 85) chama a atenção para o fato da seção II ser a única seção dos três livros composta por um único capítulo. Segundo ele, Marx busca esta forma justamente para ressaltar a importância desta seção, que consiste num dos momentos dialéticos fundamentais da exposição de O capital, o momento da transição da esfera da circulação para a esfera da produção.
(10) Cfe. Benoit (1996: 39).
(11) No final do capítulo V, Marx (1985: 160; 1988: 209) afirma, referindo-se à compra da força de trabalho pelo capitalista: “trocou-se equivalente por equivalente. O capitalista pagou, como comprador, toda mercadoria por seu valor, algodão, massa de fusos, força de trabalho (Arbeitskraft)”.
(12) No grupo de estudos mencionado na nota 4, levantou-se a questão de que, a rigor, a tradução mais precisa do termo utilizado por Marx em alemão (Die ursprüngliche Akkumulation) seria “a acumulação originária” ao invés de “acumulação primitiva”, que expressa justamente a noção de algo que ocorreu e continua ocorrendo.
(13) Para confirmar que essa separação se aprofunda a cada dia, basta observar como é cada vez mais remota a possibilidade de um trabalhador comprar os meios de produção necessários para organizar, ele próprio, um processo de produção, pois terá que enfrentar a concorrência dos grandes conglomerados monopolistas internacionais.
(14) Vale lembrar que Lênin escreveu O Estado e a revolução entre agosto e setembro de 1917, ou seja, dias antes da conquista do poder pelo proletariado russo. Portanto, para Lênin, a discussão a respeito do Estado socialista tinha uma aplicação prática imediata, ao contrário da abstrata discussão sobre um futuro indeterminado feita por Lukács na sua Ontologia.
(15) Cfe. Benoit (1996: 39)




Referências bibliográficas:
BENOIT, Hector. “Pensando com (ou contra) Marx? Sobre o método dialético de O
capital”. In: Crítica Marxista. São Paulo: Xamã, nº 8, 1999.
____ “Sobre a crítica (dialética) de O capital”. In: Crítica Marxista,
São Paulo: Brasiliense, nº 3, 1996.
____ “Sobre o desenvolvimento (dialético) do programa”. In: Crítica Marxista. São
Paulo: Xamã, n. 4, 1997.
LESSA, Sérgio. “Lukács: direito e política”. In: LESSA, Sérgio & PINASSI, Maria
Orlanda (orgs.). Lukacs e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.
LUKÁCS, Georg. Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamentais de
Marx. São Paulo: Lech, 1979.
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política
(Grundrisse) 1857-1858. México: Siglo XXI, 16ª ed., vol. I, 1989.
____ O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, vols. I e II,
1985.
____ Das Kapital:Kritik der polititischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verl., Bd. 1, 1988.
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2 comentários:

Ísis Liberato disse...

seu site foi muito útil, tem muitos textos bons, de onde vc os conhece?

anjonocoliseu disse...

Olá Ísis,

Estes textos do meu blog não possuem uma única fonte, faz parte de um longo tempo em contato com os livros clássicos da tradição que se originou em Marx, assim como, de artigos publicados em periódicos brasileiros. Os links indicados pelo blog são as principais referencias de tais artigos. Apesar das diversas fontes procuro selecionar os textos com algum critério e dentro da mesma perspectiva.