quinta-feira, 28 de maio de 2009

Marx e o último Engels: o modo de produção asiático e a origem do etapismo na teoria da história marxista - Jair Antunes

Texto extraído do sítio: http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt1/sessao3/Jair_Antunes.pdf

Resumo: Nosso trabalho pretende discutir, de forma sintética, as possíveis origens da falsificação teórica da concepção marxista da história promovida pelo stalinismo ao longo do século XX. Nossa proposta é demonstrar que Stalin, ao formular a teoria das etapas necessárias da história – reformulando, assim, a teoria da história formulada inicialmente por Marx –, busca a justificação teórica para tal empresa não no próprio Marx, mas em Engels. Engels, ao escrever a célebre obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, teria fornecido, pois, as bases teóricas para que a interpretação stalinista do ‘socialismo por etapas’ se impusesse como a interpretação teórico-política supostamente correta do marxismo.

A teoria do modo de produção asiático como modo de produção característico das milenares formas orientais de sociedade, bem como primeira forma mais geral de sociedade pós-comunidade primitiva, sempre foi fundamental para a concepção histórica de Marx. Este modo de produção asiático, que às vezes Marx chamava simplesmente de forma asiática ou forma oriental de produção, caracterizava tanto uma evolução sócio-cultural das formas tribais sedentários e semi-sedentárias, bem como aparecia também contraposição mais evidente em relação ao contraditório desenvolvimento da história greco-romana ocidental. As sociedades orientais, segundo Marx, haviam permanecido culturalmente estagnadas durante milênios. Suas mais importantes formações econômico-sociais, como a China e a Índia, não se teriam alterado substancialmente mesmo com as grandes invasões de povos bárbaros em passado mais remoto, como os mongóis, os árabes e os hunos. Estes povos, apesar de superiores belicamente a chineses e hindus, eram culturalmente inferiores a essas grandes civilizações orientais de culturas milenares. Essa categoria de modo de produção asiático (asiatisches Produktionsweise) aparecia para Marx, portanto, como categoria definidora dos traços fundamentais tanto destas sociedades orientais antigas, como também na pré-história da própria sociedade greco-romana clássica.

No entanto, Engels, amigo e parceiro teórico e político de Marx durante mais de quatro décadas, escreveu uma obra, um ano após a morte do companheiro, intitulada A origem da família, da propriedade privada e do Estado, na qual rompe de forma muito evidente e profunda com aquela concepção histórico-dialética da história da qual havia partilhado com Marx durante tanto e que, em parte era, era mesmo co-autor. Nesta obra, Engels desconsidera a categoria de modo de produção asiático e reduz a história asiática à condição de sociedade gentílica. Ora, ao fazer isto, Engels parece cometer dois grandes erros. Primeiro, o de ter falseado e rebaixado o passado cultural asiático; e segundo, ter pressuposto que a história grega teria origem direta na comunidade primitiva (ou na constituição gentílica, como ele mesmo diz).

Esta concepção engelsiana da história, porém, parece ter muito pouco ou quase nada a ver com aquela concepção histórico-dialética que Marx havia desenvolvido e da qual o próprio Engels era, em grande parte, co-responsável. O que se percebe, lendo A origem da família, é que Engels faz um rompimento muito profundo com as teorias de Marx e, ao mesmo tempo, funda (ou pelo menos lança as bases), daquela teoria que ficou conhecida ao longo do século XX como teoria das etapas necessárias da história, ou, história etapista, da qual sua maior expressão é a teoria do socialismo em um só país desenvolvida por Stalin e posta em prática como teoria política do stalinismo durante toda segunda metade do século XX, mas que, na atualidade, está totalmente desacreditada. Façamos, portanto, uma análise mais detalhada das concepções de história de Marx (e do “primeiro” Engels) e do Engels de A origem da família, da propriedade privada e do Estado (ou seja, do Engels pós-Marx) para
mostrarmos que, em parte, o falseamento promovido por Stalin da teoria da história marxista estaria embasada em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, do “último” Engels.


Engels e a evolução originária igual e necessária de todos os povos e sociedades

Engels, durante seu período de trabalho conjunto com Marx, sempre havia concordado com a caracterização estagnante e imutável das sociedades asiáticas feita pelo amigo, chegando inclusive a desenvolver importantes estudos sobre os povos do Oriente Próximo, como os persas. Engels, portanto, sempre havia tido clareza das diferenças de fundamento entre gregos e orientais. Porém, após a morte de Marx, Engels decide escrever uma obra, hoje célebre, intitulada A origem da família, da propriedade privada e do Estado, publicada em 1884. Nesta obra, Engels – profundamente influenciado pelas novas descobertas das nascentes Ciências Sociais sobre as primeiras formas humanas de organização social – ignora por completo a categoria histórico-dialética de modo de produção asiático que havia ajudado Marx a desenvolver para caracterizar as formações econômico-sociais asiáticas e passa a trabalhar então com categorias oriundas da Antropologia. Quer dizer, Engels rompe naquela obra com uma concepção dialética da história para se utilizar de categorias não-marxistas, ou seja, de categorias caracterizadoras das novíssimas Ciências Sociais. O resultado de tal virada metodológica de Engels é o surgimento de uma concepção engelsiano-antropológica da história, baseada nos conceitos de comunidade gentílica e de evolução necessária da história, como concepção caracterizadora e universalizadora das origens de todas as sociedades, em todas as épocas e em todos os lugares.

A enorme influência que a obra do antropólogo norte-americano Lewis H. Morgan, A sociedade primitiva, exerceu sobre Engels é algo que podemos considerar como uma mudança quase completa na forma metodológica de analisar o ser aí das coisas, quer dizer, de analisar a história propriamente dita, pois as descobertas do antropólogo sobre a constituição gentílica dos índios norte-americanos foram consideradas por Engels como uma das maiores revoluções científicas do século XIX, comparadas em nível de importância tanto à descoberta da teoria da mais-valia feita por Marx, quanto também das descobertas da Darwin sobre a evolução natural (Engels, 1995, p.17).

Porém, o que parece nocivo na teoria de Engels/Morgan não é exatamente a descoberta da origem clânica iroquesa, mas a universalização desta teoria da evolução sócionatural das tribos indígenas norte-americanas (válida, portanto, somente para compreender a origem destes povos pré-históricos), para todas as formas originárias de organizações sociais, em especial às origens das formações econômico-sociais greco-romanas. Engels diz em A origem da família, por exemplo, que a formação grega tem exatamente a mesma constituição originária dos indígenas americanos. Assim sendo, segundo Engels, para se conhecer o passado pré-histórico grego, bastaria recortar a ‘história’ iroquesa e colá-la nas origens gregas. Parece-nos, porém, que não se pode pensar em forma mais anti-dialética e arbitrária de se estudar a história originária de qualquer povo, e dos gregos em especial, do que esta posta em prática por Morgan em A sociedade primitiva e seguida à risca por Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

A conclusão ‘lógica’ e mais importante, portanto, que Engels tirará destas análises antropológicas sobre a origem gentílica universal de todos os povos é que o Estado surge de forma arbitrária, é conscientemente forjado pelos grupos do interior da comunidade que já teriam se apropriado das riquezas comunais como propriedade privada e necessitavam, portanto, criar uma instituição que garantisse (e ao mesmo tempo perpetuasse) esta usurpação da riqueza social. Tanto a usurpação da riqueza da gens originária, quanto a criação da instituição garantidora desta nova forma de relação com a riqueza, ou seja, da relação entre proprietários e não-proprietários, segundo Engels, é, porém, construída naturalmente dentro da própria constituição gentílica da tribo, ou seja, o surgimento da propriedade privada, das classes sociais em luta e do Estado intermediador seriam nada mais do que o resultado de contradições existentes em germe desde sempre no seio da comunidade. Contradições estas, segundo Engels, que em determinado m ento da evolução natural da tribo, necessariamente aflorariam e dariam origem a tais contradições latentes em seu seio. Estas contradições “naturais” originariam também, consequentemente, segundo Engels, a luta entre proprietários e expropriados e a instituição que chancelaria e perpetuaria o direito da classe possuidora explorar a classe não-possuidora dos bens materiais.

Ora, ao contrário do que afirmam Engels e Morgan, o que o desenvolvimento da Arqueologia e da História (Vernant, 1981; Finley, 1990) mostraram, ao longo do século XX, através de escavações e decifrações da escrita pré-helênica na Grécia, é que a teoria ‘gentílica’ de ambos não tem qualquer fundamento no que toca às origens da sociedade grega clássica. Entre a fase “gentílica” e a fase “clássica”, haveria, segundo estes estudiosos, uma fase “asiática” na história grega (civilização creto-micênica).


Marx e o conceito de modo de produção asiático

Para Marx, a categoria de modo de produção asiático aparece como uma categoria de caráter fundamental para que ele possa compreender o processo geral da história humana e, em especial, da formação do modo de produção capitalista no Ocidente europeu. Ela aparece como uma categoria historicamente dada e que expressaria em maior medida a forma mais geral de evolução econômico-social pós-comunidade primitiva. Ela expressaria conceitualmente, do ponto de vista de Marx, os fundamentos daquelas sociedades que teriam evoluí a partir de uma forma tribal, semi-nômade, para formas de organizações sociais estabelecidas e comandadas a partir de uma entidade comunal abstrata centralizadora do nexo social e que estaria acima das comunidades locais efetivas. Esta unidade superior surgiria, pois, naturalmente, segundo Marx, a partir da necessidade de formação de grandes frentes de trabalhos públicos relativos especialmente à formação de processos produtivos comuns, beneficiadores tanto desta comunidade superior abstrata como também das comunidades locais efetivas.

Originalmente, na forma oriental de propriedade, segundo Marx, a comunidade superior teria sua razão de existência somente no fato de que potencializa – na forma de uma grande máquina produtiva, resultada da reunião de centenas de peças fisicamente não-unidas – as energias dispersas em cada uma das comunidades locais e que, sem esta unidade superior agregadora, necessariamente permaneceriam dispersas e isoladas umas das outras, não sendo possível portanto nem suprir as necessidades de produção e reprodução da vida material da comunidade nem também de aparecer frente ao exterior como unidade local protegida por uma comunidade superior.

O fato de Marx nomear esta categoria formadora das primeiras formas efetivas de Estado (a forma estatal centralizada e despótica) de modo de produção asiático não está relacionado exclusivamente (como pensaram muitos intelectuais marxistas) às formações econômico-sociais do Oriente. Marx a denomina assim, apesar de ser uma forma bastante geral de formação sócio-cultural pós-comunidade primitiva, por um lado, porque, com as conquistas imperialistas no Oriente, promovidas pela burguesia ocidental no século XIX, em especial na Índia e na China, afloravam, via relatórios oficiais e não-oficiais, as estruturas sócio-culturais daquelas grandes civilizações. O que estes relatórios mostravam era que aquelas estruturas haviam se assentado ali há milênios, ou seja, mostravam o caráter imutável daquelas formações econômico-sociais. Aquelas sociedades haviam desenvolvido, segundo Marx, formas político-econômicas que se teriam enrijecido em determinado momento de sua evolução histórica. Desde então, a vivência material e cultural destas sociedades representava a mera reprodução destas formas sociais imutáveis. Era esta imutabilidade sócio-cultural que caracterizava, conceitualmente, segundo Marx, a categoria de modo de produção asiático. O mecanismo produtivo comunal do sistema de castas artesanal apresentava, entre os orientais, uma divisão planejada e individual do trabalho. Segundo Marx, o próprio aumento populacional não aparecia como elemento importante na dissolução das condições econômico-sociais das comunidades locais, como acontecia, por exemplo, na formação grecoromana. O princípio básico da imutabilidade oriental milenar estaria fundado na nãoexistência privada da propriedade fundiária, como comenta Marx em carta com o próprio Engels em 1853: “Bernier considera com razão que a forma básica de todos os fenômenos orientais – refere-se à Turquia, Pérsia e Indostão – encontra-se no fato de que não existia propriedade privada da terra. Esta é a verdadeira chave, inclusive do céu oriental” (Marx. Apud Godelier, 1969: 74).

Assim, pois, se do ponto de vista de Marx a chave para se compreender as formações econômico-sociais do Oriente antigo estava na ausência total da propriedade privada da terra, na Grécia clássica, ao contrário, era exatamente a apropriação privada das riquezas sociais que caracterizava o princípio de sua sociedade. Na Ásia, a propriedade da terra era monopólio do Estado, restando às comunidades locais apenas a posse privada da terra e dos frutos por ela produzidos. Aqui, a propriedade era estatal e somente a posse era privada, mas mesmo assim era uma posse a nível de aldeia comunal, e não propriamente individual. E aqui aparece o segundo grande motivo dos interesses de Marx em exemplificar a validade da categoria de modo de produção asiático nas sociedades orientais. A oposição entre gregos e asiáticos aparecia Marx como uma questão mais de fundo, de fundamento. Marx queria compreender quais as condições que possibilitaram os gregos se desprender de sua origem “asiática” e desenvolver uma forma social diametralmente oposta àquela praticada no Oriente, pois Marx tinha clareza de que os gregos, como um povo mediterrânico, provinham de um passado cujas formas essenciais de organização social eram semelhantes àquelas praticadas nos grandes impérios do Mediterrâneo oriental antigo. Os helenos, em determinado momento da história mediterrânica, segundo Marx, teriam distanciado social e culturalmente dos demais povos mediterrânicos ali estabelecidos.

Entre os orientais, diferentemente dos gregos clássicos, as relações de produção e apropriação da natureza e das riquezas sociais estavam fundadas em formas comunalistas de apropriação. Na Ásia, quem se apropriava do excedente da produção não eram indivíduos privados e nem mesmo os agrupamentos locais comunais, mas sim o Estado, a unidade superior agregadora e ratificadora do nexo social entre as várias comunidades aldeãs espalhadas pela quase infinita vastidão do território (Marx. Apud Godelier, 1969: 54). Mas isto não significa, porém, do ponto de vista de Marx, como dá a entender em A origem da família de Engels, que no Oriente as sociedades não possuíssem estruturas político-sociais complexas. Ao contrário, Marx reconhece o grande desenvolvimento estatal na Ásia. Os Estados asiáticos, para Marx, assim como também para Hegel, haviam chegado a níveis de desenvolvimento sócio-culturais altíssimos muito antes mesmo de que tal fenômeno se desse na própria Grécia.

Para Marx, o surgimento de formas estatais não está ligado à necessidade de perpetuar a luta de classes, como queria Engels. Para Marx, como dissemos, o Estado é uma forma de instituição que nasce naturalmente das necessidades das comunidades semi-gregárias, ou recém assentadas, de organizar as obras de produção e reprodução da vida material imediata. Do ponto de vista de Marx, o Estado deixou de ser esta entidade comunal originária (Gemeinwesen), organizadora das obras de necessidades mais imediatas para tornar-se uma entidade privada – ou seja, uma “entidade comunal” resguardadora dos interesses comuns de apenas uma parte da sociedade, contra os interesses de outra parte desta mesma sociedade –, como pensava Engels, somente a partir do momento em que as riquezas da sociedade já não mais eram propriedade da entidade comunal originária, mas sim teriam se tornado já propriedade privada (Privateigentum) daquela pequena parcela da comunidade que controlava já, efetivamente, a entidade comunal. Segundo Marx, o Estado, como forma de entidade já contraditória, mas que ainda cumpre ainda um papel apenas de mediador da luta entre as classes antagônicas e que evolui para a forma de entidade gerenciadora e organizadora dos interesses de uma única classe contra as classes expropriadas da riqueza social, caracterizaria o processo histórico ocidental clássico.

No Oriente não existiria, segundo Marx, ao contrário da Grécia clássica, a oposição de classes em luta pela apropriação das riquezas sociais, pois, como dissemos, na velha Ásia toda a riqueza era riqueza comunal-estatal, e mesmo quando alguns dos membros da elite destas sociedades possuíssem riquezas, estas somente eram-lhes atribuídas devido à sua relação de lealdade ao palácio (seja como generais do exército estatal, como escribas da contabilidade palaciana, como sacerdotes, etc). Do ponto de vista de Marx, nenhum indivíduo oriental, mesmo que membro da elite, poderia ser proprietário privado de fato, pois o “direito” de distribuição das riquezas nestas sociedades despóticas não derivava da “vontade popular”, quer dizer, de uma suposta “sociedade civil”, mas sim, da vontade do próprio déspota, o qual dava ou retirava tais benefícios conforme seus interesses, os quais se confundiam com os interesses do próprio Estado. É exatamente neste sentido que já no início da década de 1840, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx dizia que o estado social na Ásia nada mais era do que um estado em que seus membros viviam sob a condição de meros escravos da vontade do próprio déspota: “Na Ásia, o Estado político nada mais é do que o arbítrio de um único indivíduo, ou seja, o Estado político, assim como o material, é escravo” (Marx. Apud, Sofri, 1977).

Assim sendo, pois, pensamos que a falsificação da teoria marxista da história promovida pelo stalinismo durante o século XX tem sua justificação não na teoria históricodialética de Marx, mas na nova teoria antropológico-etapista desenvolvida por Engels, à luz das descobertas sobre a formação gentílica das tribos indígenas norte-americanas e sua necessária aplicação dogmática à nova pseudo-concepção marxista da história. O grande erro de Engels em A origem da família não teria tanto sido a criação de uma nova metodologia para se pensar a teoria da história originária da humanidade, mas de ter atribuído a Marx tal “virada antropológica” nos estudos históricos. Engels parece ter cometido o “pecado” de atribuir a Marx a chancela da teoria evolucionista-dogmática morganiana. Engels diz que o próprio Marx, após ter lido e fichado a obra do antropólogo norte-americano, queria ter escrito ele próprio uma nova obra sobre as formações originárias da humanidade.

Estas palavras de Engels (de veracidade duvidosa) com relação às intenções de Marx à obra de Morgan se transformaram, porém, nas mãos de Stalin, segundo Hector Benoit (2004) a grande chave para a justificação de sua própria teoria da história, ou seja, da teoria das etapas pelas quais todos os povos necessariamente deveriam passar. Como diz Benoit, Stalin, sob a autoridade de Engels, coloca como interna a cada povo a passagem necessária de uma formação a outra, passando pela comunidade primitiva, modo de produção escravista, feudal, burguês e, finalmente, o modo socialista de produção, não sobrando margens, portanto – já que Engels havia reduzido a história asiática ao estágio pré-histórico da comunidade primitiva –, para o modo de produção asiático na evolução histórica das sociedades.

Ora, como dissemos acima, do ponto de vista de Marx, esta evolução histórica que começaria com a comunidade primitiva, e evoluiria para os modos de produção asiático, escravagista, feudal e burguês, somente a sociedade greco-ocidental teria desenvolvido-a de forma imanente e independente, ou seja, do ponto de vista de Marx, somente a Europa ocidental teria passado, em sua evolução, por estas fases históricas clássicas, sendo, portanto, o modo de produção asiático apenas mais um dos modos de produção postos em seu transcurso histórico. Desta forma, se para Marx as sociedades do modo de produção asiático são, de modo geral, as primeiras formas de evolução pós-comunidade primitiva, pode-se dizer então que a Arqueologia e a História, com seus estudos sistemáticos da Grécia pré-helênica, desmentiram, pois, tanto a Engels quanto a Morgan e reafirmaram as hipóteses de Marx sobre as primeiras formas de organização social.

Assim, se a falsificação promovida pelo stalinismo da teoria da história de Marx aparece atualmente como evidente e teria uma origem na virada antropológica de Engels, esta mesma falsificação teria, no entanto, uma suposta justificação de fundo no próprio Marx, já que Engels teria cometido o “pecado” de dizer que ao escrever aquela obra dogmáticoevolucionista da Origem da família, da propriedade privada e do Estado estaria, ao mesmo tempo, executando o testamento teórico do próprio Marx. Engels apareceria assim, pois, em parte, como o “pai” da teoria das etapas do stalinismo, e apareceria assim, pois, como o “pai” da infeliz teoria do “socialismo em um só país” que tanto mau teria proporcionado à causa do proletariado mundial ao longo do último século.

O que parece “desconsolador” neste pequeno “pecado” de Engels seria o fato de que este pequeno deslize teórico aparentemente inocente teria sido a chave para a justificação stalinista do desvio teórico e político de proporções catastróficas para a classe operária mundial do século XX e pelo rumo (talvez sem volta) em direção à completa barbárie tomado pela humanidade agora, no início do século XXI.


Bibliografia:

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VERNANT, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 3a edição. Rio de Janeiro: Difel, 1981.

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