terça-feira, 9 de setembro de 2008

Teoria e História da Organização Operária-Revolucionária - Nahuel Moreno

Trecho de uma palestra de Moreno a Juventude Socialista argentina em 1984, disponível em: http://www.marxists.org/portugues/moreno/1984/07/16.htm



A Importância da Organização

Em geral o problema da organização parece algo secundário, que tendemos a desprezar, que se apaga frente a outras questões, sejam "filosóficas" - como a dialética ou a teoria da alienação -, sejam as apaixonantes discussões sobre a situação econômica ou política. O que ocorre com a economia imperialista? Existe ou não uma situação revolucionária na Argentina ou no Brasil? Chapas antiburocráticas "puras" ou para derrotar o burocrata do sindicato? etc. Todavia, a questão organizativa é o centro, em certa medida, da atividade marxista revolucionária. Assim como o programa e a política respondem à pergunta: quais são as tarefas, os objetivos ou as palavras de ordem que hoje mobilizam as massas até a revolução socialista, a questão organizativa responde a pergunta: qual é a organização que hoje é necessária para que o movimento de massas lute? Como se organiza o partido que se propõe a liderar a luta, a revolução e o poder operário em cada etapa da luta de classes?

A questão organizativa é tão decisiva que, ao contrário do que muitos acreditam, não houve dois grandes dirigentes da revolução russa e do Partido Bolchevique e sim três. Ao lado de Lenin e Trotsky esteve Sverdlov, o secretário geral, o organizador do Partido Bolchevique. Iakob Mijailovich Sverdlov não é lembrado por qualquer tratado sobre economia, filosofia ou política marxista. Ninguém se interessa por uma coletânea de suas obras completas - se é que existe. Porém, era o homem mais querido, mais respeitado do Partido Bolchevique. Era tão importante que quando morreu, foi substituído por quatro dos melhores dirigentes bolcheviques e os quatro fracassaram: não agüentaram a tarefa.

Lenin, que não era dado à demagogia, nem propenso a elogios, definiu Sverdlov, no discurso pronunciado em seu enterro, como "o chefe que mais fez pela organização da classe operária, por sua vitória (Obras Completas, tomo 29, p. 89). E no discurso em sua memória, pronunciado a 18 de março de 1919, esclarecia o porque destas palavras:

"Para os que julgam as coisas superficialmente... destaca-se com especial relevo uma característica da revolução que se manifestou no enérgico, firme e implacável acerto de contas com os exploradores e os inimigos do povo trabalhador. Não há dúvidas de que sem esta característica - sem violência revolucionária - o proletariado não teria vencido, porém é indubitável, também, que a violência revolucionária só é um método necessário e legítimo da revolução em determinados momentos de seu desenvolvimento, somente quando se dão as condições especiais e determinadas, e que uma qualidade muito mais profunda e permanente desta revolução, a condição de seu triunfo, é e será sempre a organização das massas proletárias, a organização dos trabalhadores. Esta organização de milhões de trabalhadores, de fato, é a condição mais importante da revolução, a fonte mais profunda de suas vitórias..." (Idem, tomo 29, pg. 83, sublinhado por nós).

Para Lenin, a organização é uma "qualidade mais profunda e permanente" da revolução que a própria violência revolucionária. Quer dizer, em um pólo está a ação, o movimento, a luta, o espontâneo das massas; no outro está a organização que estrutura, dá continuidade e permanência a essas ações ou mobilizações. Sem grandes lutas e mobilizações não há revolução, porém, sem organização, não há tampouco. As lutas dissolvem-se, as heróicas ações das massas perdem-se...

Tanto é assim que o partido não maneja exclusivamente palavras de ordem que chamam para a luta e fixam um objetivo mas, também, palavras de ordem organizativas. Agora, por exemplo, agitamos o objetivo da luta: os salários, chamamos uma forma ou método concreto de luta: greve geral; e também agitamos como organizar esta luta: assembléias por fábricas, eleição de delegados, piquetes, etc...

O problema da organização é dificílimo, muito complexo, porque encerra, em si mesmo, uma contradição que às vezes se torna aguda. Toda organização ou estrutura é conservadora, precisamente porque tende a evitar que o que existe desapareça, destrua-se. Porém, ao mesmo tempo, a classe operária dá para si ou necessita de organizações revolucionárias para lutar contra a burguesia e derrotá-la, isto é, destruir o sistema capitalista.

Os trabalhadores argentinos, por exemplo, conquistaram grandes e poderosas organizações sindicais, com as quais, durante muitos anos, até que a crise tornou impossível, nesta ultima década, conseguiram o objetivo de defender seu nível de vida. Porém, essa organização, teve e tem um tremendo peso conservador no proletariado argentino, que permite que elementos da extrema direita - a burocracia peronista - estejam na direção dela e, no momento, não se coloca de modo algum uma direção revolucionária nesses sindicatos nem, menos ainda, um partido operário revolucionário.

Precisamente por esta contradição é tão difícil a questão organizativa. Se um partido revolucionário vai tornar-se direção do movimento de massas, então converte-se no problema dos problemas. Qual a relação orgânica que se estabelece entre o partido e as massas?

Os sovietes são uma forma organizativa do movimento de massas. Eles governam, com boa ou má política. A política é muito importante, porém, sem os sovietes, não teria sido possível tomar o poder, por melhor que tivesse sido a política dos bolcheviques; são o exercito que mobiliza organicamente as grandes massas para tomar o poder e governar. Porém, por seu lado, esta o partido que é o estado major desse exército, o que agrupa a vanguarda mais combativa e consciente. E isto coloca um segundo problema: qual a forma organizativa que deve ter o partido para poder dirigir e ter uma relação cada vez mais estreita com os sovietes e com as massas que estão nele?

O primeiro problema, o da organização das massas, é, em certo sentido, mais simples do que o segundo. O partido não pode inventar nem impor formas organizativas para as massas, elas próprias criam-nas. A grande arte do partido é a de descobrir quando aparecem os primeiros sintomas e agitá-los para que se generalizem. Ou, caso não apareçam, aconselhar pacientemente as massas quanto a alguma forma organizativa de acordo com a situação e a experiência histórica. Assim, pudemos lançar palavras de ordem de coordenadorias em 1975, nos apoiando na experiência histórica das interfábricas de 20 anos atrás. Ou levantar, hoje, a palavra de ordem de milícias da COB e da Central Camponesa na Bolívia, e que ambas organizações de massas tomem o poder, nos apoiando nas lições da revolução de 1952.

O problema da organização do partido, ao contrário, está em nossas mãos. As massas podem fazer prodígios de heroísmo e forjar magníficas organizações revolucionárias para tomar o poder. Porém, se nós não acertarmos com a nossa própria forma organizativa que nos permita construir o estado maior dessas lutas e organizações, se não conseguirmos organizar firmemente, estruturar com laços de ferro nossa influência e a simpatia para com a nossa política e programa nas massas, nós e a revolução estaremos perdidos. Está ai o exemplo da Bolívia: sobra luta revolucionária; sobra organização das massas para tornar o poder, sobra programa... todavia falta o partido como estrutura orgânica com raízes firmemente implantadas no seio das massas revolucionárias. Este é o grande problema, de vida ou morte que é preciso resolver na Bolívia. E, também, ainda que partamos de uma situação qualitativamente superior do nosso partido e de um ritmo revolucionário mais lento da realidade objetiva, na Argentina.

A Mudança nas Organizações de Massas

O movimento operário e de massas permanentemente muda suas formas organizativas. Há mudanças que têm relação com as amplas etapas históricas e expressam transformações estruturais da classe operária. Por exemplo, os sindicatos por ofícios refletiram um setor da classe trabalhadora especializado e mais próxirno, por sua vida social e produtiva, ao artesanato do que da moderna classe operária industrial, altamente concentrada. Os sindicatos por ramo industrial refletem esta última.

Há mudanças, por outro lado, que têm relação com a situação concreta da luta de classes. Se há um retrocesso da classe trabalhadora, então refugia-se em organizações defensivas: os sindicatos. Na situação de derrota extrema podem até chegar a organizar associações de ajuda mútua ou cooperativas. Porém, se vive um ascenso revolucionário, cedo ou tarde aparecem formas organizativas de poder como os sovietes russos, os "cordones industriales" chilenos, ou os próprios sindicatos mudam de caráter transformando-se em organismos de poder, como a COB boliviana. Paralelamente, a classe organiza milícias.

Temos visto, também, revoluções realizadas pelo campesinato, como a chinesa, a vietnamita e a cubana, onde apareceram organizações de massas diferentes: os exércitos guerrilheiros.

O mesmo ocorre em uma fábrica. Normalmente, a classe trabalhadora está organizada através da Comissão Interna e no corpo de delegados. Porém, quando há uma grande repressão interna, seja da patronal, seja da burocracia, em certas ocasiões chega a organizar-se por meio de torcidas de futebol. Quando não há luta as assembléias raramente se realizam, ou então nem ocorrem. Porém, quando há luta, ou está sendo preparada, a assembléia converte-se na principal ferramenta organizativa do conjunto dos trabalhadores. Se sai a greve, aparece o comando de greve que, muito freqüentemente, os delegados reconhecidos são distintos da direção legal e permanente. Também aparecem os piquetes de grevistas e, como acontece em nosso país, as "ollas populares" (ondas ou redemoinhos populares) que são uma combinação de piquete de greve com assembléia de base.

É impossível procurar esgotar a enorme riqueza das formas organizativas que se deu e se dá no movimento o operário e de massas através dos tempos. Porém, o que fica demonstrado é que, ao contrário do que sustentam as burocracias de todo tipo - desde a sindical peronista ate o PC -, a classe operária não está definitivamente encalacrada em uma forma organizativa fixa (os sindicatos burocráticos, para Miguel; os "sovietes" burocráticos para Andropov) e sim que ela própria vai mudando suas formas organizativas segundo mudam as etapas da luta de classes e aparecem novas necessidades.

A Mudança na Organização do Partido Socialista Revolucionário

Fabricou-se um fetichismo, sobretudo da parte do estalinismo, sobre a forma socialista revolucionária como sendo una, fixa e imutável: a organização através de pequenas células. Nós, os pobres trotskistas, que sobrevivemos durante décadas isolados, vendo que passavam anos e nossa organização continuava pequena, fomos vítimas desse fetichismo. Ainda não acabamos de romper com ele. Continuamos acreditando que o socialismo revolucionário é uma forma de organização permanente, sempre igual a si mesma.

Na realidade é o oposto. O partido socialista revolucionário é duro programaticamente e nos princípios. Porém, para o marxismo, não há nada rígido nem definitivo. Menos ainda pode ser o partido da revolução permanente. Por isso, o partido é sumamente flexível na hora de converter o programa e os princípios em estratégias, táticas, palavras de ordem e políticas concretas para incidir sobre a situação presente da luta de classes. Cada vez que há uma mudança na realidade objetiva, o partido muda suas palavras de ordem, suas políticas, suas táticas e suas estratégias... e também suas formas organizativas. Esta é a verdadeira essência da forma socialista revolucionária de organização: a mudança, a adaptação à realidade da luta de classes e às tarefas e objetivos que o partido dá para si, em cada etapa.

As mudanças na forma organizativa do partido são determinadas pela combinação de dois fatores fundamentais: a situação da luta de classes e a situação ou grau de desenvolvimento do próprio partido.

É evidente que a estrutura organizativa do partido não pode ser igual em uma etapa de triunfo da contra-revolução, sob um regime fascista ou semi-fascista, e em uma etapa revolucionária. Aquela seria ultra-clandestina, de pequenas células de ultra-vanguarda, onde só podem participar militantes provados previamente e firmemente captados pelo partido; esta seria aberta, legal, com reuniões amplas, se é necessário, onde participariam companheiros recém aproximados do partido, que completariam seu processo de captação dentro da estrutura orgânica do partido.

Mas, além destes exemplos amplos, dentro de uma mesma etapa, a estrutura do partido tenderá a adequar-se a outros processos de tipo objetivo, social. Não será a mesma forma organizativa se setores do movimento de massas vão rapidamente para a esquerda ou se, como ocorre freqüentemente na primeira etapa da revolução, isto não ocorre e as massas sofrem, massivamente, a embriaguês "democrática" e afluem para partidos reformistas. No primeiro caso, o partido deverá adotar uma forma organizativa adequada para organizar ao seu redor esses setores de massas; no segundo, em que pese a situação revolucionária, deverá manter a estrutura do chamado "partido de vanguarda", quer dizer, de militantes que, em maior ou menor medida, já definiram que dedicarão uma parte importante de sua vida para a militância revolucionária.

Para não estender muito, a estrutura partidária deverá adaptar-se as características nacionais e, mais especificamente, às das classes exploradas. Evidentemente, não pode ser a mesma para intervir no processo revolucionário na Nicarágua e na Argentina. Na Nicarágua praticamente não havia sindicatos sob Somoza. Os sindicatos apareceram massivamente depois de sua queda. A luta revolucionária desenvolveu-se através de uma combinação de guerra entre exércitos e insurreições urbanas organizadas geograficamente por bairros. Evidentemente, o socialismo revolucionário tinha que adaptar sua organização a estas características nacionais. Daí que, existindo um partido na Nicarágua, a Brigada Simón Bolívar deveria ter-se organizado em torno dos bairros populares.

Na Argentina é totalmente diferente. A clássica organização de massas são os sindicatos, há quase um século. Dentro deles, o organismo fundamental, nos últimos 40 anos, é a Comissão Interna e o corpo de delegados. O partido organiza-se em função disto: grupos por empresas para lutar pela direção desses organismos das massas.

Finalmente, o partido em circunstâncias que para nós são excepcionais, como é a participação nos processos eleitorais burgueses, às vezes deve adotar uma forma organizativa de tipo geográfico-barrial e até colocar em segundo plano, em certas ocasiões, a clássica inserção estrutural de seus organismos (por empresa ou lugar de estudo, além e por cima dos bairros).

Todavia, a questão organizativa torna-se qualitativamente mais complexa porque também incide sobre um segundo fator: o próprio partido. Uma vez que, ao colocarmos uma tarefa ou objetivo para uma etapa, não apenas respondemos às perguntas: o que ocorre na luta de classes?, mas também esta outra: com que partido, com qual material humano - direção, quadros médios e militantes - contamos para intervir nela?

Muito esquematicamente podemos assinalar três estágios no desenvolvimento de um partido: o primeiro núcleo fundador, muitas vezes de uns poucos indivíduos; o partido de propaganda que já realizou sua etapa de acumulação de quadros e conta com algumas centenas deles; o partido com influência de massas. Uma situação revolucionária desenvolvida, com setores rompendo pela esquerda com os aparatos reformistas e burocráticos, já nos coloca, objetivamente, a possibilidade de conquistar influência de massas, quer dizer, de arrastar, por sua política, setores de base do movimento de massas. Porém, obviamente, nossa estrutura organizativa não será a mesma se o partido é de uns poucos indivíduos daquele que já alcançou certa influencia de massas. Neste último caso, é uma obrigação do partido golpear e estruturar seus organismos em todos os setores do movimento de massas (ainda que priorizando aquele que se perfila como vanguarda da revolução, por exemplo, a classe operária industrial na Argentina, os mineiros e fabris na Bolívia, etc.). Se, por outro lado, somos uns poucos companheiros, o intento de estruturarmo-nos em todos os setores é fatal, destrói o partido. Pelo contrário, trata-se de girar todos os companheiros para um só setor, para não dispersar forças e armar o partido, suas organizações e sua influência de massas nesse setor. Não se trata, em uma situação como a descrita, se somos um pequeno partido, de nos auto-definir como "grupo de propaganda" e não intervir com tudo na luta revolucionária. Trata-se, isto sim, de fazer a mesma tarefa que um grande partido faria sobre todo o movimento de massas só que sobre um setor deste, o mais favorável para um rápido desenvolvimento orgânico e para influência política do partido. Ainda que a tarefa seja a mesma, a forma organizativa é totalmente diferente. Porém, se acertarmos na tarefa política e não na forma organizativa corremos o risco de desaparecer.

Em outro plano, a forma organizativa do partido depende de algo tão simples como a existência ou não de quadros capazes de construir e dirigir os organismos. Este foi um grave problema para nós. Levamos anos e anos para solucionar. Tentamos todo tipo de formas organizativas - por sindicato, por fábrica, por bairro... - e a cada seis meses ou um ano desabavam. A chave nos deu um companheiro francês, de base, sem grande nível teórico, que possivelmente refletia a influência da tradição que deixou Trotsky quando viveu na França. Este camarada nos perguntou: quantos quadros capazes de dirigir organismos tínhamos. E aconselhou que não fizéssemos qualquer organismo - fosse uma célula, uma fração sindical, um grupo de bairro, ou de teatro ou o que fosse - se não tínhamos um quadro capaz de dirigí-lo. Se não tem direção um organismo fracassa, por mais perfeito que seja nos papéis. O problema dos quadros existentes é, pois, um problema decisivo - qualquer que seja a etapa da luta de classes que estejamos atravessando - para definir a forma organizativa do partido.

Nós, por exemplo, decidimos organizar o partido durante a campanha eleitoral em torno dos 600 locais que íamos abrir nos bairros operários periféricos. Pudemos planejar isto porque contávamos com uma quantidade similar ou maior de quadros médios, capazes de abrir e dirigir os locais. Se o partido tivesse tido que enfrentar a campanha eleitoral com apenas 50 quadros, teríamos que pensar outra forma organizativa. Possivelmente nos concentraríamos em uns poucos municípios, com grandes sedes centrais, ou outra vertente.

Marx

Examinando em profundidade a luta de classes de sua época, fundamentalmente da Comuna de Paris, Marx definiu quais eram as tarefas revolucionárias no terreno político como sendo a instauração da "ditadura do proletariado". Isto significava destruir o Estado da burguesia e instaurar um governo operário:

... não fazer passar de umas mãos para outras a máquina burocrático-militar ... e sim demoli-la, esta é a condição prévia de toda verdadeira revolução ... Nisto, precisamente consiste a tentativa de nossos heróicos camaradas de Paris (Carta de Marx a Kugelmann, citada por Lenin em O Estado e a Revolução, idem tomo 25, pp 408-409).

... a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora..." (Marx, La guerra civil en Francia, idem, p. 424).

Para fazer um governo da classe operária era necessário um partido político da classe operária. Naqueles tempos, a classe operária européia não votava ou, se o fazia, votava nos partidos da burguesia liberal (um fenômeno parecido ao da classe operária argentina em relação ao peronismo). Com o objetivo de realizar a tarefa política fundamental de tornar o proletariado independente da burguesia, Marx, junto com Engels, sustentou a concepção organizativa do partido único da classe operária (algo similar, também, para a palavra de ordem que freqüentemente temos levantado em nosso país de "Partido dos Trabalhadores, ou trabalhista). Era uma concepção correta para a tarefa colocada, máxima quando ainda não havia surgido em todo seu esplendor a aristocracia operária, nem as grandes burocracias do movimento operário assentada em sólidos aparatos.

Todavia, à medida que passava o século XIX e a humanidade adentrava-se no século XX, esta concepção converteu-se em algo perigosíssimo, equivocado e que acabou tendo conseqüências funestas. O que fez aparecer duas leis fundamentais. A primeira, geral, é que a realidade é mais rica do que qualquer construção teórica, já que foi a própria realidade da luta de classes que deixou para trás aquela concepção de Marx (junto com algumas outras, como o livre comércio, o inevitável começo da revolução socialista nos paises mais adiantados e outras). A segunda lei, é que uma concepção rígida e estática da questão organizativa é muito pouco científica e que pode ser tão reacionária quanto uma concepção rígida e estática de qualquer fenômeno humano e social, desde as ciências até as táticas de um partido revolucionário.

A Social Democracia

Acompanhando a concepção de Marx fundaram-se os grandes partidos socialistas europeus que tiveram, durante toda uma época, um papel muito progressivo, tanto que alcançaram a independência política do proletariado, arrancando-o do seguidismo da política burguesa liberal. Ainda hoje sentem-se as conseqüências desta etapa progressista dos grandes partidos socialistas. A ofensiva econômica do imperialismo mundial alcançou potentes retrocessos nos salários dos trabalhadores do mundo semi-colonial, assim como nos Estados Unidos e Japão. Na Europa, ao contrário, o retrocesso é muito menor, porque a classe operária oferece uma resistência encarniçada, cujos melhores exemplos têm sido as tremendas greves dos mineiros da Inglaterra e dos metalúrgicos da Alemanha Ocidental. E isto só se pode explicar pelo fato do proletariado europeu conservar daquela etapa um nível de consciência e organização comoclasse qualitativamente superior a outros proletariados tão ou mais poderosos como o ianque e o japonês.

Porém, estes grandes partidos socialistas sofreram, como não poderia deixar de ocorrer, a influência de novos processos sociais. Com o aparecimento do imperialismo desenvolveuse ao máximo, nos países europeus, a aristocracia operária: um setor privilegiado da classe operária, com um nível de vida superior aos seus irmãos de classe do próprio país e do resto do mundo. Esta aristocracia operária gozava desses privilégios comendo as migalhas que lhes atirava a burguesia imperialista com a exploração dos demais trabalhadores e, sobretudo, das colônias. A ela somaram-se as camadas superiores dos partidos socialistas - que tinham conquistado a legalidade e intervinham permanente e sistematicamente nos processos eleitorais e parlamentares - começou a assimilar-se ao aparato estatal burguês. Processo que pôde se dar porque o sistema capitalista mundial, quando ainda era progressista e desenvolvia as forças produtivas, e, inclusive na primeira fase de sua decadência, já como sistema imperialista, podia fazer grandes concessões, reformas políticas e econômicas para a classe operária metropolitana. O proletariado dos países imperialistas - e até certo ponto, de todo o mundo - vivia uma época reformista, não revolucionária.

Assim, a social-democracia organizou-se essencialmente para alcançar reformas e participar nas eleições, não para fazer a revolução contra a burguesia. Os operários reuniam-se em suas sedes para escutar os oradores, porém ninguém era obrigado a vender jornais, nem fazer qualquer coisa. O partido só queria ganhar votos. Não havia disciplina. Para os social-democratas não interessava agir cotidianamente na estrutura, nas profundidades da classe operária, nas fábricas e oficinas, para ali organizar, na luta diária, os operários e o próprio partido. Era comum que, frente a uma greve, os socialistas votassem divididos, um setor a favor e outro contra, e os dois continuavam no partido.

Assim, os grandes partidos socialistas foram enormes aparatos eleitorais, alheios às lutas concretas e cotidianas e à organização para essas lutas da classe operária, com a única exceção: o trabalhismo britânico e, em certa medida, a social-democracia belga e alemã. A massa de operários socialista tinha um papel passivo. Os únicos que trabalhavam permanentemente eram os que integravam o aparato partidário, que estava controlado por advogados, por deputados ou candidatos, pelos profissionais, pelos jornalistas, que não estavam sujeitos a qualquer controle por parte do partido em seu conjunto.

O Partido Bolchevique

Contra as previsões de Marx, a primeira revolução socialista não triunfou nos países imperialistas mais desenvolvidos e sim no mais atrasado deles, na Rússia Tzarista, com sua população esmagadoramente camponesa, que nunca conheceu a democracia burguesa, porém, também, com o proletariado mais concentrado do mundo. A necessidade de construir o partido para a revolução nessas condições objetivas, onde a norma era a clandestinidade absoluta, onde não havia sindicatos legais nem, muitos menos, eleições periódicas, explica o surgimento de um novo tipo de partido: o bolchevique. Será uma forma de organização inovadora, revolucionária, que podemos descrever em poucos traços fundamentais:

1. tinha uma estrutura que Lenin chamava "conspirativa", isto é, centralizada e disciplinada, apta para agir em toda situação da luta de classes, passar rapidamente da legalidade para a clandestinidade e vice-versa, adequada para centralizar, organicamente, todas as forças do movimento de massas para a tomada do poder pela via insurrecional;

2. não aceitava, em seu seio, todas as correntes e programas pelo simples fato de reivindicarem-se socialistas. Pelo contrário, estabelecia uma clara linha divisória entre os revolucionários e os reformistas. O partido era dos revolucionários, os reformistas que fizessem outro partido;

3. a atividade central do partido não era a eleitoral e sim a luta de classes. É o partido do trabalho diário, que intervém nas lutas de todos os dias da classe operária e das massas exploradas, acompanha-as, procura organizá-las e organiza, na classe e em suas lutas, o próprio partido. Está nos combates da classe, em todos, tanto nos grandes quanto nos pequenos. Sempre procura estar na frente deles, dirigi-los e organizá-los ou, no mínimo, intervir nos combates espontâneos que a classe faz.

Como se vê é uma forma organizativa diametralmente oposta àquela da social-democracia.

O Fim do Partido Único da Classe Operária

A concepção organizativa de Marx e Engels sobre o partido único da classe operária foi superada pela experiência da revolução russa e pelo partido bolchevique. O próprio processo histórico do século XX demonstrou que era corretíssima a divisão entre socialistas revolucionários e reformistas, isto é, na Rússia, a divisão entre bolcheviques e mencheviques em dois partidos não apenas diferentes, mas inimigos. A partir do ano 1917, esta divisão transformou-se em mundial: em todos os países havia partidos socialistas e comunistas enfrentando-se, organizados em internacionais diferentes, a IIª e a IIIª. A realidade havia demonstrado ser superior à concepção de Marx.

Todavia, assinalamos isto para demonstrar o terrível erro que significa aferrar-se às concepções rígidas em qualquer terreno; a grande revolucionária alemã, Rosa Luxemburgo, não aceitou a divisão dos partidos socialistas, nem que os revolucionários deveriam ter sua própria organização. Isto lhe custou muito caro, para ela e sua tendência, que tiveram que enfrentar uma situação revolucionaria sem um partido adequado e foram aniquilados pela repressão da burguesia, executada pelo governo do socialismo reformista. Mais caro ainda custou para a classe operária mundial, que viu a revolução alemã ser derrotada pela falta de tal partido para dirigi-la e atrasou em décadas - marcada por guerras com milhões de mortos e espantosas situações de exploração e miséria - o desenvolvimento e o triunfo da revolução mundial.

Com base na experiência bolchevique os marxistas revolucionários temos podido desenvolver a teoria que explica porque não pode existir, nesta etapa, o partido operário único. Toda classe tem vários partidos. Tradicionalmente tinha-os a burguesia, representando seus diferentes setores: industriais, agrários ou financeiros, monopolistas ou não-monopolistas, etc. Atualmente, à medida que os grandes monopólios imperialistas estão terminando de aprisionar completamente a estrutura econômica mundial, está se dando uma tendência para a unidade que se expressa no bipartidarismo. Apenas dois grandes partidos tendem a ocupar o cenário da política sob o sistema imperialista-capitalista. Um, de tipo social-democrata, para arrastar os votos operários; outro, de centro direita, para fazer o mesmo com a classe média. Na Europa e em poucos países do mundo semicolonial, como o Chile, os votos operários são arrastados por partidos reformistas. Em muitos outros países, são arrastados por partidos diretamente burgueses, como o peronismo aqui, Acción Democratica na Venezuela, ou o próprio Partido Democrata nos Estados Unidos.

A classe operária é mais homogênea do que a burguesia, a mais homogênea da sociedade. Porém, em que pese isto, não tem garantido a suficiente homogeneidade política de maneira a ter um só partido. Como toda classe, tem diferentes segmentos. Há aristocracias, operários médios e operários super-explorados, quase marginais. Há setores com trabalho temporário e outros que trabalham permanentemente. Os que são da indústria pesada, os da indústria leve, dos serviços e, também o proletariado agrícola. Tudo isto dá motivo para o surgimento de partidos distintos.

Também se dão, refletindo esta heterogeneidade estrutural, ainda que não de forma mecânica, diferentes graus de desenvolvimento da consciência na classe operária. Corno disse Trotsky, em uma de suas brilhantes análises: há setores da classe operária que olham para trás e outros que olham para frente (e, nós acrescentamos, outros que não olham para qualquer lado).

Evidentemente, não podem estar no mesmo partido os operários com expectativas pequeno-burguesas, que ainda acreditam que se pode progredir individualmente nos limites do sistema capitalista, e que irão para algum partido burguês ou para algum tipo de partido reformista, com os operários que querem o socialismo, mas não percebem que para consegui-lo é preciso fazer uma revolução, que irão parar em algum partido de tipo social-democrata, com os operários que já são revolucionários e entrarão para o partido marxista revolucionário.

Por qualquer ângulo que se olhe, não há qualquer razão científica que explique ou justifique que deva existir um só partido para a classe operária.

O Estalinismo

Como produto da guerra civil - na qual morreram muitos milhares - e da fome - que provocou sua volta ao campo -, a velha classe operária russa, a que construiu os sovietes, que se colocou atrás da direção do partido bolchevique e fêz a revolução, desapareceu. Este desaparecimento físico em torno de 90 por cento dessa classe é a explicação profunda do triunfo do estalinismo na Rússia. Stalin se impôs sobre uma nova classe operária, recém chegada do campo; sem experiência, nem tradição.

Os bolcheviques procuraram diferentes formas de organizar de maneira revolucionária esta nova classe operária; por exemplo, a organização dos operários sem-partido, organismos para a luta contra a fome, etc. Porém, no geral, não tiveram bons resultados. A conseqüência desta falha organizativa - que era uma falha social, dado que a classe operária apagou-se do processo histórico russo - foi o stalinismo.

Este traçou na Rússia uma nova forma de organização e de ligação com o movimento operário, de tipo inorgânico, ferreamente burocratizado e cujo objetivo central era exatamente o oposto da organização dos sovietes revolucionários e do velho partido bolchevique. Enquanto estes eram organizações para desenvolver, ampliar, generalizar e concentrar as lutas espontâneas dos trabalhadores em uma só e grande revolução, os "soviets"e o "partido bolchevique" do estalinismo eram para impedir toda luta, destruir a espontaneidade das massas, evitar toda organização da classe operária.

Entretanto, fora da Rússia, o estalinismo continuou utilizando um elemento, um apenas, da herança leninista: estar onde estão os operários, ter suas células e militantes nas fábricas, organizar onde está a classe operária, girar em torno de seus problemas cotidianos e não da questão eleitoral, colocar-se à cabeça de suas pequenas lutas. Porém, a canalha burocrática utiliza tudo isto a serviço de sua política de colaboração de classes, traidora, contra-revolucionária. Está nas pequenas lutas para melhor impedir que explodam as grandes lutas, quer dizer, as revoluções. E, se explodem, poder conduzí-las à derrota. E se triunfam, converter os novos estados operários em ferramentas da contra-revolução.

Desta forma, o stalinismo cobriu o flanco descuidado da social-democracia. Eis porque nos países onde a social-democracia realiza excepcionalmente aquele papel, como na Inglaterra e Alemanha, o stalinismo é muito débil. Porém, onde há uma social-democracia "clássica", como na França, na Espanha, em Portugal, majoritária nas eleições, o stalinismo é uma potência no movimento sindical. Os social-democratas traem os trabalhadores no terreno da política eleitoral; os estalinistas, no terreno da luta diária. É uma verdadeira divisão de trabalho. E existe um partido comunista-estalinista, o italiano, que realiza as duas funções ao mesmo tempo.

O estalinismo sobreviveu por muitas causas, porém uma muito importante e que ressalta o peso decisivo da questão organizativa, que impediu que já se tenha desmoronado totalmente, em que pese sua tremenda crise mundial, é a que acabamos de mencionar. Em muitas ocasiões o PC fez traições incríveis e, entretanto, a classe não rompeu com ele. O operário espanhol, por exemplo, viu os comunistas ao seu lado combatendo junto a si e construindo sua ferramenta sindical máxima: as Comissões Operárias. Junto com isto, chamaram-no a aprovar a monarquia, o Pacto de la Moncloa. Em que pese toda a tradição republicana dos trabalhadores espanhóis e da funesta conseqüência para seu nível de vida com a aplicação do Pacto de la Moncloa o PC espanhol, ainda que dividido e fragmentado, e com sua força eleitoral tremendamente diminuída, continua sendo a direção das Comissões Operárias; e as Comissões Operárias continuam sendo urna potência ao lado da lânguida UGT dos social-democratas. E, claro, a social-democracia completa o outro braço da tenaz contra-revolucionária, arrastando eleitoralmente a classe operária.

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