sexta-feira, 19 de setembro de 2008

István Mészáros II

Artigo tirado do sitio web de 'Agência Carta Maior', 8 de maio de 2006

Entrevista a István Mészáros: Avanço da esquerda na America L atinapode barrar semicolonialismo dos EUA
István Mészáros é um marxista obstinado. Para ele, passar da defensiva à ofensiva é uma exigência do tempo em que vivemos, pois a única alternativa à barbárie é o socialismo. Autor do clássico “Para além do capital”, esse pensador criativo se impõe com uma obra que não faz concessões, não recusa a polêmica – como reza a boa tradição de sua estirpe. É respeitado mundo afora como exemplo de radicalidade – seus escritos ultrapassam, ano a ano, os muros da academia e dão mostras de espantosa vitalidade –, e sua história de vida fala por si.

Nascido em Budapeste no dia 19 de dezembro de 1930, estudou no Liceu Clássico e começou a trabalhar já aos doze anos, primeiro como operário numa fábrica de aviões de carga e depois em vários outros empregos, até terminar a escola. Em 1949, graças a uma bolsa e por ter se formado com notas máximas, entrou para a Universidade de Budapeste como membro do Eötvös Collégium, a Escola Normal Superior húngara, de onde quase é expulso seis meses depois por ter defendido publicamente Georg Lukács. Foi salvo pela congregação da escola, que rejeitou a moção de expulsão proposta pelo diretor, e graduou-se em Filosofia, com honras.

Em 1950, reagindo à censura da encenação, no Teatro Nacional, do clássico da literatura húngara “Csongor és Tünde” (1830), de Mihály Vörösmarty – condenado pela sua “aberração pessimista” –, escreveu um minucioso estudo em defesa da obra. Publicado no mesmo ano, em dois números consecutivos da revista literária “Csillag”,o ensaio recebeu o prêmio Attila József em 1951, o que resultou na reincorporação da obra de Vörösmarty ao repertório do Teatro Nacional. A leitura desse estudo fez ainda Lukács nomear Mészáros seu assistente no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste.

Entre 1950 e 1956, como membro da Associação de Escritores Húngaros, Mészáros participou ativamente dos debates culturais e literários da época. Sobre esse período escreveu o livro “A revolta dos intelectuais na Hungria”, publicado pela Einaudi (1958) e, em 1956, seu ensaio “O caráter nacional da arte e da literatura” foi escolhido como tese central da reunião plenária do Círculo Peto"fi, a ser presidida pelo compositor húngaro Zoltán Kodály. Nesse mesmo ano editou a revista semestral da Academia de Ciências, “Magyar Tudomány”, e a revista mensal “Eszmélet”, fundada por intelectuais como o pintor Aurél Bernáth, o novelista Tibor Déry, o poeta Gyula Illyés, Zoltán Kodály e Lukács.

Lukács, desde 1951 amigo próximo de Mészáros – foi, inclusive, padrinho do seu casamento com Donatella –, designou o assistente como seu sucessor na universidade e lhe pediu que assumisse as aulas inaugurais sobre estética, o que Mészáros fez até abandonar o país (após o levante de outubro de 1956). Apesar do afastamento físico, esses dois grandes nomes do marxismo dos séculos XX e XXI mantiveram contato estreito e uma extensa correspondência até a morte de Lukács, em 1971.

Depois de deixar a Hungria, Mészáros trabalhou na Universidade de Turim, na Itália, e, a partir de 1959, na Grã-Bretanha, ministrando aulas inicialmente no Bedford College da Universidade de Londres (1959-1961), em seguida na Universidade de Saint Andrews, na Escócia (1961-1966), e mais tarde, na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra (1966-1971). Em 1971, lecionou na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e, em 1972, foi nomeado professor de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de York, em Toronto, no Canadá. Em janeiro de 1977 retornou à Universidade de Sussex, onde, em 1991, recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia. Permaneceu nessa universidade até 1995, quando se afastou das atividades docentes, e atualmente vive em Rochester, a uma hora de Londres.

Além do prêmio “Attila József” por seu estudo sobre Vörösmarty, em 1970 Mészáros recebeu o prêmio Memorial Isaac Deutscher por “Marx: a teoria da alienação”, e, em 1992 e 2005, o prêmio “Lukács”, na Hungria. Em 1995, Mészáros foi eleito membro da Academia Húngara de Ciências, e em fevereiro 2006 recebeu o título de Pesquisador Emérito da Academia de Ciências Cubana.

É autor de extensa obra: “Satire and reality” (1955); “La rivolta degli intelletuali in Ungheria” (1958); “Attila József e l’arte moderna” (1964); “Marx’s theory of alienation” (1970) [ed. bras.: “A teoria da alienação em Marx”, 2006]; “Aspects of history and class consciousness” (1971); “The necessity of social control” (1971); “Lukács’ concept of dialectic” (1972); “Neocolonial identity and counter-consciousness: essays in cultural decolonization” (1978); “The work of Sartre: search for freedom” (1979); “Philosophy, ideology and social science” (1986); “The power of ideology” (1989) [ed. bras.: “O poder da ideologia”, 2004]; “Beyond capital” (1995) [ed. bras.: “Para além do capital”, 2002]; “Socialism or barbarism: from the “American century” to the crossroads” (2001) [ed. bras.: “O século XXI: socialismo ou barbárie?”, 2003]; e “A educação para além do capital” (2005).

Na entrevista que concedeu à “Margem Esquerda”, às vésperas de vir ao Brasil para o lançamento de “A teoria da alienação em Marx”, esse filósofo generoso, de voz mansa – porém radical e firme em suas posições –, fala sobre sua trajetória, sobre o papel dos intelectuais, sobre o poder transformador da educação, sobre o avanço da esquerda na América Latina e, principalmente, sobre como seguir lutando para romper a camisa-de-força da lógica do capital (e a enfrentar os desafios da transição), rumo à emancipação humana.

Ivana Jinkings: Comecemos pela sua infância. Ainda menino, na Hungria, você trabalhou numa indústria de aviões de carga. Filho de mãe também operária, sua origem e essa experiência parecem ter sido decisivas em sua formação.

István Mészáros: Sem dúvida foram. Meu avô paterno foi um mineiro que morreu tragicamente na mina de carvão onde trabalhava, em acidente causado pela negligência criminosa dos proprietários e gerentes com os equipamentos de segurança, a exemplo do que continua ocorrendo em muitas partes do mundo. Essa lembrança sempre esteve presente em minha família. Além disso, os anos da minha infância coincidiram com a “grande crise mundial de 1929-33” e as suas conseqüências. Viver aqueles anos resultou certamente numa inesquecível experiência para todos os que foram jogados no caos dessa brutal crise.

Minha atuação na fábrica de aviões de carga foi apenas a primeira das muitas que exerci, por exemplo, na fundição de aço em uma fábrica de tratores, em duas diferentes funções em fábricas têxteis (uma delas em um galpão gigantesco e ensurdecedor, com duzentas máquinas em operação), no pós-guerra, e no departamento de manutenção de uma ferrovia elétrica, que demandava o trabalho mais pesado de todos. Ao mesmo tempo, a solidariedade compartilhada entre as pessoas nesses diferentes locais de trabalho foi uma experiência comovente e compensadora. Uma compensação necessária para as privações e dificuldades que os trabalhadores, entre os quais, eu mesmo, por algum tempo, tiveram de enfrentar. Sempre que escrevo sobre a necessidade vital de solidariedade em qualquer sociedade viável do futuro, sem a qual a sobrevivência da espécie humana é inconcebível, eu o faço com a certeza de que a solidariedade não é um postulado idealizado, mas um poderoso princípio prático que guia e enriquece as relações humanas ainda hoje.

O que aprendi em minha variada experiência laboral facilitou meu comprometimento com a visão de uma ordem mundial muito diferente, que precisamos ter como alternativa à nossa presente sociedade. Não aprendi sobre as condições de vida da classe trabalhadora por meio dos livros, eu as vivi diretamente e de muitas formas. Assim como não aprendi nos livros a total insustentabilidade da desigualdade feminina – sobre a qual discuti no capítulo 5 de ‘Para além do capital’. Era suficiente comparar o meu pagamento, de um trabalhador muito jovem, com o da minha mãe, que recebia menos apesar de realizar um trabalho muito mais qualificado. Esses “fatos da vida” foram tão óbvios que era impossível ignorá-los ou esquecê-los. Pelo contrário, eles se tornaram orientações sobre meu modo de pensar todas as questões maiores. Percebi cedo que o mundo social, organizado com base nas desigualdades que presenciei diretamente, não poderia ser justificável nem sustentável. Naturalmente, levou muito tempo para que eu entendesse completamente porque uma ordem tão brutalmente desigual se constituiu na forma como hoje a sociedade se apresenta; mas compreendi também que existem as necessárias e socialmente sustentáveis – bem como humanamente justificáveis – alternativas correspondentes. Essa é a maneira pela qual uma experiência formadora mais ou menos difícil se torna, para melhor ou pior, uma parte orgânica do próprio modo de pensar e escrever.

Talvez valha mencionar que o modo pelo qual os intelectuais definem suas posições nos seus escritos depende em grande medida da dinâmica da confrontação histórica em curso entre o capital e o trabalho. Como sabemos pelas experiências históricas passadas, evidências de um maior radicalismo no movimento trabalhista, denunciando as contradições da sua vida, agravadas sob o governo do capital, são seguidas por intelectuais tradicionais, que também tendem a assumir uma posição mais combativa. E, vice-versa, quando o trabalho é forçado a assumir uma postura mais defensiva, muitos intelectuais se tornam introvertidos, evasivos e desorientados. O lamentável conto da pós-modernidade oferece uma boa ilustração dessa matéria. Mas, indicar essa conexão objetiva não significa justificar as suas conseqüências negativas. Se tomarmos seriamente “a responsabilidade dos intelectuais”, não poderia haver justificativa para a omissão. Sobre isso, Julien Benda escreveu, em meados dos anos 1920, um poderoso panfleto intitulado “La trahison des clercs”, igualado em intensidade ao ‘J’accuse’, de Zola, no caso Dreyfus. Em 1951, Benda visitou a Hungria e tive o privilégio de conhecê-lo em casa de Lukács. Nas últimas três décadas, relembrei muitas vezes esse encontro e sua nobre resistência exposta aos colegas acadêmicos no “La trahison des clercs”. Para todo intelectual crítico, é fundamental ter um papel na transformação social positiva, da qual necessitamos tão urgentemente. Eles não podem abdicar desse papel, mesmo quando parece haver alguma circunstância atenuadora. O desafiador panfleto de Benda é um persistente lembrete disso que ainda nos afeta, a todos.

Ivana Jinkings: Fale mais sobre seus principais interlocutores, sobre Lukács e outros intelectuais que o influenciaram nessa fase.

István Mészáros: Fui criado em Budapeste, onde o desenvolvimento cultural – especialmente no que se refere às relações estreitas entre a literatura criativa e o pensamento social e político – era muito especial, talvez único. Isso porque os maiores e mais radicais poetas da nossa literatura nacional, como Sándor Peto"fi, Endre Ady e Attila József, eram também os mais profundos e abrangentes pensadores húngaros de sua época. Nos seus apaixonados escritos líricos, tanto quanto em suas reflexões teóricas, eles trataram dos mais desafiadores temas da sociedade na sua perspectiva histórica, oferecendo soluções revolucionárias, elevada e abrangentemente perspicazes, capazes de resistir ao teste do tempo. Não surpreendentemente, Heinrich Heine, amigo de Marx, escreveu que sentiu uma enorme pressão de sua própria “camisa-de-força alemã” quando leu a poesia de seu grande contemporâneo húngaro, Sándor Peto"fi. Nesse sentido, não surpreendente que, em 1956, quando os problemas vitais da necessária reconversão anti-stalinista e a correspondente transformação socialista da Hungria eram debatidas em público, com a participação de muitos milhares de pessoas, o nome dado ao fórum onde ocorriam esses debates fosse Círculo Peto"fi.

O papel especial desempenhado pelos poetas mais eminentes na cultura húngara, incluindo nela o campo da teoria, ajuda a explicar por que o ídolo intelectual e político do jovem Lukács era ninguém menos que seu contemporâneo mais velho, Endre Ady. Lukács me contou da alegria de ser apresentado a Ady, em seu bar favorito, por um amigo que, antes da I Guerra Mundial, havia pintado um belo retrato daquele que foi o maior poeta húngaro e o crítico mais devastador da insustentável situação socioeconômica e política do país. Em um de seus poemas, Ady criou a frase profética que se provou dramaticamente real alguns anos mais tarde: “Estamos nos precipitando para a revolução”. Dessa realidade Lukács participou ativamente como ministro da Cultura e, na fase final da revolução, como comissário político de uma das divisões militares.

Duas gerações depois, pouco antes do início da II Guerra Mundial, minha maior experiência intelectual e política foi o encontro com a poesia e conseqüentemente com os escritos teóricos de Attila József. Ele continuou sendo o meu mais amado professor e companheiro desde aqueles dias. Espero e acredito que ele se tornará mais conhecido no futuro, também no Brasil, porque seu trabalho nos fala vigorosamente, mesmo hoje – sessenta e nove anos após a sua morte –, sobre os desafios a enfrentar sempre que tentarmos confrontar os problemas fundamentais das nossas arriscadas condições históricas. Seus escritos provocaram em mim um profundo sentimento de concordância, porque reconheci neles muitos aspectos e episódios da minha experiência de vida, mas elevados ao nível da intensidade existencial, capazes de atenuar os seus significados e dentro dos mais amplos desafios das transformações sociais atuais. Aqueles eram os anos da catastrófica conquista do terreno histórico por Hitler e seus cúmplices, e ninguém conseguiu situar esses eventos com maior perspicácia do que József. O fato de sua poesia repercutir tão universalmente ainda hoje, com a justificável dor e esperança dos nossos tempos, deu-se graças à “continuidade na descontinuidade”, da qual József era e permanece sendo o maior visionário.

Meu cuidadoso e não sistematizado estudo dos textos filosóficos começou no último ano da guerra, quando tive a chance de ler alguns trechos escritos por Marx, Engels, Kant e Hegel. A mudança qualitativa dessa leitura ocorreu quando, no início de 1946, descobri em uma livraria uma coletânea de ensaios críticos de Lukács. Eles tratavam de algumas das maiores figuras e temas da literatura húngara, com os quais eu já estava familiarizado, oferecendo-me um óbvio ponto de contato. Um deles era intitulado “Ady, o maior cantor da tragédia húngara”, outro se denominava “Combate ou capitulação”, e todos os temas principais estavam condensados no último ensaio do volume, “A responsabilidade dos intelectuais”. Eles representaram uma revelação para mim, porque nunca tinha lido antes uma análise de textos literários – totalmente contextualizados e iluminados pelas suas relevantes conexões históricas e filosóficas – como foram apresentados graficamente nesses escritos. Além disso, a principal mensagem desse volume, insistindo com paixão na responsabilidade dos intelectuais, tocou-me diretamente. Após o término da leitura desses ensaios de crítica político-literária, comprei todos os livros de Lukács disponíveis em húngaro e me dediquei a um intenso estudo, não apenas das suas análises estéticas e filosóficas, mas também do amplo material literário e teórico ao qual ele se referia em sua discussão crítica. Foi assim que decidi que Lukács seria o intelectual militante com quem eu gostaria de estudar e trabalhar no futuro.

Ivana Jinkings: Você tem dito que da forma como estão hoje as coisas, a tecnologia e a ciência – estreitamente limitadas pelas determinações fetichistas do capital – são usadas também para aumentar a insegurança do trabalho, ao lançar massas de trabalhadores no desemprego.

István Mészáros: É o ‘downsizing produtivo’ em nome do “avanço tecnológico”. Assim o sujeito humano real fica à mercê de determinações desumanas nesse mundo louco do ‘downsizing’, em que a tecnologia parece ter assumido uma forma independente de vida, com vontade própria e poder incontestável de tomada de decisão. E, em vista das conseqüências destrutivas, não resta dúvida quanto à desejabilidade da tomada do controle sobre a ciência e a tecnologia capitalisticamente alienadas. [Jürgen] Habermas fantasia sobre o que denomina de “‘cientização’ da nossa tecnologia”. A situação real é exatamente o contrário. Pois, durante o último século do desenvolvimento produtivo do capital, o que se viu só pode ser caracterizado como a crescente ‘tecnologização da ciência’, diretamente determinada pela intensificação das contradições do sistema e, ao longo da quatro últimas décadas, pela sua crise estrutural. Por isso, é imperativo que se assuma o controle sobre as forças que hoje parecem obedecer a uma lógica independente própria, de caráter ‘hostil’ e de impacto destrutivo claramente visível.

A sociedade de produtores livremente associados não pode abraçar a ilusão insistentemente promovida de que o “pequeno é bonito”, com sua tecnologia igualmente ilusória. Esse princípio orientador não é mais realista do que esperar a reforma do capitalismo pela adoção do imposto Tobin. A sociedade tem de produzir o mais alto nível de tecnologia criativa para ter sucesso na satisfação das aspirações legítimas das grandes massas. E há de ser assim que a sociedade vai passar das restrições mutilantes e das limitações avarentas da exploração capitalista do tempo de trabalho para a riqueza que flui da organização da reprodução social sobre a base do ‘tempo disponível’ de seus indivíduos. Somente com esse tipo de estrutura social reprodutiva se poderá fazer desaparecer do quadro a hostilidade da tecnologia. Não há dúvida quanto à necessidade de “derrubar” as cercas protetoras do capital se quisermos transformar nossa relação inevitável, ainda que hoje desumanizadora e escravizadora, com a tecnologia numa outra sustentável.

Ivana Jinkings: De que forma isso pode ser feito? Como construir uma alternativa de esquerda?

István Mészáros: Com o “coração animado” e uma firme determinação. Conforme já se enfatizou antes, o autêntico pensamento crítico nunca se extingue, por mais que os interesses ocultos tentem impor conformidade universal. Não há possibilidade de esses esforços prevalecerem; nem mesmo sob as condições de uma ditadura militar resultante de crise importante, como pode atestar o povo brasileiro. Isso não se deve a alguma vaga obrigação moral, mas ao fato de a repressão permanente das vozes críticas entrar em conflito com os requisitos reprodutivos do sistema do capital. Sob determinadas condições históricas elas podem ser suspensas, mas em hipótese alguma permanentemente. Está longe de ser acidental que, com o passar do tempo, os estados de emergência impostos pelas ditaduras militares gerem suas próprias crises, trazendo consigo a reconstituição da “normalidade” capitalista, com suas tradicionais “regras do jogo” e as correspondentes instituições políticas. Mais uma vez, os brasileiros conhecem bem essas mudanças.

O grande desafio do nosso tempo, portanto, é descobrir como ‘ampliar significativamente a margem do pensamento crítico’. Vivemos sob as condições da crise estrutural do capital e simultaneamente com a ‘crise estrutural da política’. As formas e instituições tradicionais da política, inclusive os partidos políticos e o Parlamento, já não são capazes de assegurar nos seus próprios domínios os requisitos reprodutivos do sistema do capital. O fato de terem sido privadas de seus antigos poderes de tomada de decisão, em virtude da profunda crise estrutural da ordem social metabólica estabelecida, não resolve coisa alguma. Apenas enfatiza a total inviabilidade das condições prevalentes, ainda que, para se armarem de coragem, os ideólogos do sistema continuem a recitar em voz alta, e no escuro, o credo de que “não existe alternativa”. Ao mesmo tempo, os mais implacáveis, como os ‘neocons’ nos Estados Unidos, continuam a fantasiar que a solução da crise está na imposição ubíqua, por meios militares, das formas mais autoritárias de governo propostas abertamente. Não foram capazes nem de entender o significado dos requisitos reprodutivos do capital, muito menos de admitir que seu “remédio” está em nítido desacordo com esses requisitos.

O Estado, apesar de seu papel crucial para a sobrevivência do sistema, não é de forma alguma uma ‘entidade homogênea’. Pelo contrário, é cheio de contradições. Se o Estado pudesse se transformar numa entidade homogênea, não haveria espaço para o pensamento crítico. Assim, seriam sombrias as perspectivas de uma solução viável para a crise estrutural de nossa ordem social. Mas a conflituosidade irreprimível das relações manifesta no funcionamento estatal oferece também ‘alavancagem’ para desenvolvimentos positivos possíveis.

Ao longo do século passado – para ser mais preciso, desde o surgimento do imperialismo moderno – a subserviência do Estado às grandes corporações aprofundou-se, resultando na defesa ativa de relações socioeconômicas cada vez mais iníquas. Sob esse aspecto, vale lembrar que depois da Segunda Guerra Mundial os governos formados pelos partidos social-democratas proclamaram orgulhosamente a política de "tributação progressiva" e a diminuição da desigualdade social implícita nessa política. Ironicamente, não somente eles não conseguiram cumprir suas promessas, mas o que vimos na verdade foi exatamente o contrário do que foi alardeado.

Ivana Jinkings: Na sua opinião, existe alguma possibilidade de melhoria sem uma mudança radical da forma como hoje reproduzimos nossas condições de existência?

István Mészáros: Não. A matriz das aspirações de emancipação não pode em hipótese alguma estar no sistema do capital. Se estivermos seriamente interessados na realização completa do mandato emancipador, com suas dimensões formais e informais, teremos de imaginar uma ordem metabólica social da qual se removam todas as determinações e defeitos incorrigíveis do capital. Evidentemente é preciso ter em conta o fato de que são necessários muitos passos até que se chegue àquele estágio, e que eles não podem ser dados num futuro hipotético. É preciso começar imediatamente, no presente, assumindo o controle das alavancagens e mediações práticas pelas quais deve passar o progresso, desde o presente realmente existente até o futuro esperado. É fundamental ter uma boa avaliação das nossas forças e recursos, tal como definidos pelas restrições do presente e pelas mediações mais ou menos limitadas ao nosso alcance. Mas nem mesmo um progresso reduzido será possível se não tivermos uma estrutura estratégica de orientação: um ‘objetivo geral’ que pretendemos atingir. O convite a se deixar orientar pela defesa estratégica da “mudança gradual” pode superficialmente parecer tentador. Mas na realidade essa proposta é enganadora e desorientadora, pois tende a permanecer cega se não se integrar numa estrutura estratégica abrangente, o que equivale a cancelar a nossa autodefinição retórica e geradora de slogans.

Ivana Jinkings: Como você avalia o recente avanço da esquerda na América Latina? Seria uma tendência real no continente?

István Mészáros: Acredito que é uma tendência em desenvolvimento concreto, de verdadeira e grande importância. Na presente conjuntura, de transformações históricas de longo alcance, as potenciais implicações do avanço da esquerda na América Latina, nas nossas previsões “globalizantes”, são universais, muito além das fronteiras do continente.

Da mesma maneira, tenho plena convicção de que a globalização capitalista não pode ser mantida, apesar de todos os esforços econômicos, políticos e propagandísticos investidos nela. Quando falamos sobre as esperançosas perspectivas do avanço da esquerda na América Latina, não podemos exagerar a importância de alguns êxitos eleitorais, os quais são anulados por infelizes reveses no terreno socioeconômico e político, confirmando assim o ditado francês “plus ça change, plus c’est la même chose”. Para isso, podemos apontar no passado recente algumas muito dolorosas decepções em mais de um país latino-americano. Ou seja, dadas as condições da globalização necessária, essas conquistas da esquerda somente podem ser consideradas potencialmente duradouras, o que poderia ser ‘generalizado’ no curso correspondente, isto é, ‘sustentável socialmente, como uma alternativa viável em escala global adequada’.

O que decide essas questões é o ‘componente social’ das mudanças que seguem o sucesso político, e não uma vitória eleitoral, mesmo que pareça espetacular à primeira vista. Isso explica porque o presidente Hugo Chávez fala inequivocamente sobre a dura alternativa do “socialismo ou barbárie” e sobre a necessária ‘ofensiva’ para derrotar as forças da barbárie.

A articulação e a consolidação das forças da esquerda na América Latina trariam, obviamente, conseqüências imensas para os Estados Unidos e, inevitavelmente, para o resto do mundo. Eu cultivo essa esperança desde 1971, quando tive a oportunidade de conhecer melhor as condições de muitos países latino-americanos ao lecionar, pela primeira vez, na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Desde então, aconteceram muitas coisas e, de fato, mais recentemente em uma direção positiva. A fase de dominação semicolonial dos Estados Unidos sobre a América Latina está sendo derrotada em todo o continente. A necessária solução passa pela formação de uma ‘estrutura unificada’, que surgiu com Bolívar no horizonte histórico da América Latina há quase dois séculos. Onde no mundo podemos encontrar um projeto histórico mais válido e mais profundamente enraizado a esse respeito? A criação de uma unidade de trabalho – por meio da Alba (Alternativa Bolivariana das Américas) e de outras substanciais iniciativas de cooperação – não seria efetiva apenas em barrar a continuidade dos esforços neocoloniais norte-americanos, mas também um exemplo para outras regiões do planeta, nas quais a necessidade de cooperação concreta, com um declarado conteúdo socialista, é igualmente grande. É assim que os avanços da esquerda na América Latina podem se tornar generalizáveis no curso correspondente, como um elemento vital para uma mudança histórica duradoura.


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