sábado, 19 de julho de 2008

A Totalidade Como Categoria Central na Dialética Marxista - Edmilson Carvalho

Artigo extraído da revista Outubro do Instituto de Estudos Socialistas, nº 15, 2007. (grifo meu)

Resumo: O presente artigo constitui um ato de resistência ao ataque e a à supressão de uma categoria entre as mais centrais da gnosiologia dialética marxista, a categoria de totalidade. Para dar conta da tarefa, o autor teve de examinar como a referida categoria foi posta pelos principais pensadores marxistas - o próprio Marx, Engels, Lukács, entre outros - e como e por que ela persiste atual, necessária e insubstituível para pensar as mais diversas esferas da sociabilidade burguesa e o processo, também ele uma totalidade, de sua superação.


Uma das categorias mais fundamentais no processo de produção dialético do conhecimento é a totalidade. Num escrito elaborado na década de 1940, Lukács assim a definia:


A categoria de totalidade significa (...), de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas (Lukács, 1967, p.240)(1).

A propósito, lembrava o próprio Lukács que Marx se referia a essa mesma categoria quando havia afirmado que “as condições de produção de toda sociedade formam um todo”.

Apesar do desuso cada vez maior, mais sistemático e crescentemente condicionado por motivos ideológicos, que filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores e até artistas fazem dessa categoria, mais cabalmente nos atuais tempos de descostura e dos pós-modernismos, nunca é demais lembrar e confirmar o estatuto onto-gnosiológico e o valor lógico intrínseco dessa importante categoria, sem a qual qualquer interpretação teórica do mundo fica reduzida a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva produção do conhecimento. (2) Contudo, a categoria de totalidade não pode ser compreendida, construída ou empregada sem que se tomem alguns cuidados filosóficos especiais, sob pena de não ser possível obter a apropriação, no decurso da análise, de nada mais do que uma aparência, dentre todas as demais, quando então, ao invés de contribuir para revelar o âmago concreto e explicativo da realidade, a “categoria” venha a se colocar como um obstáculo intransponível ao alcance do verdadeiro conhecimento dessa mesma realidade. (3) Com efeito, para que a totalidade seja uma categoria dialética, para que possa estar em condições de oferecer a máxima eficácia científica que lhe é inerente, a sua constituição passa, durante cada efetivo exercício da análise, por alguns procedimentos filosóficos que se apresentam como pressupostos imprescindíveis para o alcance do seu pleno e rico significado. Isto quer dizer que o todo pode não passar de mera aparência se for utilizado sem determinado trajeto filosófico de constituição. Esse trajeto teórico (dialético) é o único procedimento capaz de proporcionar estatuto rigorosamente científico à referida categoria.

De início pode ser adiantado que se determinado fato é um todo composto de partes, leis e relações conectadas entre si e em movimento, resulta que a desarticulação e a fragmentação desse todo opera uma amputação do mesmo e elimina a possibilidade de conhece-lo como tal. O conhecimento de uma região do todo não é ainda conhecimento do todo, porque o conhecimento de partes isolados do conjunto não é conhecimento nem das partes e nem do conjunto. Em outras palavras, numa totalidade o conhecimento das partes e do todo pressupõe uma reciprocidade, porque o que confere significado tanto ao todo quanto às diversas partes que o formam são determinações, dispostas em relações, que exatamente perpassam completam a transversalidade do todo, de modo que não pode haver conhecimento de um todo ou de partes dele se, amputada a totalidade, isolados os seus elementos entre si e em relação à totalidade e desconhecidas suas leis, não é possível captar a amplitude de determinações ontológica das partes e da totalidade - determinações que só podem ser apreendidas se a análise percorre a transversalidade essencial do todo.

Ademais, toda totalidade é formada de categorias e relações simples, entre as quais algumas mais fundamentais, que devem ser conhecidas e descortinadas para exatamente dar passagem à reconstituição abstrata do todo; o todo é, portanto, estruturado (4) e hierarquizado e, sem que se tenha percorrido essa estrutura e essa hierarquia, no ato de sua constituição, a partir do que ela possui de essencial, a categoria permanece indeterminada e, por isso mesmo, indefinida - o que conduziria a uma forma empirista de encarar (e apenas descrever) a realidade concreta (deve ficar claro que a estruturação teórica - dialética - da totalidade não é um atributo só do discurso, mas a representação conceitual que parte de uma objetivação que antecede o discurso porque já está na totalidade como real concreto). Como resultado, não se teria conhecimento, mas ideologia.

Para conhecer a transversalidade conectiva do todo não se faz necessário - e nem possível - percorrer, como uma listagem, todas as inumeráveis partes, elementos, momentos e relações do todo, pois se trata de conhecer a lógica que preside a sua conexão. Com efeito, a apreensão da conexão dialética essencial de uma totalidade pode ser descoberta mesmo antes de se ter alcançado o grau máximo de concretude da totalidade. É, com efeito, o que ocorre quando se procede à análise de uma dada totalidade por necessárias aproximações, de degrau em degrau, cobrindo, revelando e completando cada conceito, cada relação, cada conexão e cada categoria desde sua apreensão mais abstrata (e mais simples) à mais concreta (e mais complexa), no curso da qual a lógica essencial que preside a conexão do todo pode ser captada em algum estágio intermediário. O próprio Marx dá inúmeros exemplos da justeza dessa assertiva, que revela uma questão de método, e é esse o procedimento que ele emprega, em O Capital, na construção do próprio conceito de capital. (5) Em O Capital, com efeito, o conceito de capital (entre outros) construído no “Livro I” só serve para elucidar toda a análise teórica intermediária e que, num crescendo, vai atingir sua concretude máxima no “Livro III”, quando aquele conceito inicial deve dar lugar ao conceito de capital finalmente entendido no âmbito das determinações mais concretas - de modo que “(...) os dois primeiros tomos não ultrapassam a análise do ‘capital em geral’, enquanto o terceiro supera esse limite, fazendo a passagem para a análise da ‘pluralidade de capitais’ e de suas inter-relações, ou seja, do capital que existe ‘na realidade’” (Rodolsky, 2001, p.69).

Assim, nesse caso, que evidencia uma necessidade imanente do método (em Marx), a revelação parcial do conceito, de acordo com cada degrau alcançado, nunca é tomada como um conceito acabado e definido, senão no final da análise quando a totalidade foi teoricamente (e completamente) alcançada. Aqui, sim, a totalidade e cada parte estão completadas e a exigência onto-gnosiológica se impõe: o conhecimento concreto das partes e do todo pressupõem-se e aparecem em seu grau conectivo máximo. Porém - e isto dever ser destacado -, o alcance da plenitude conectiva da totalidade, que se faz, no plano teórico, por aproximações dos aspectos mais simples e unilaterais aos mais concretos e complexos, já revela, em determinados estágios da aproximação, o essencial do todo, de maneira que, a partir de certo ponto, as conexões internas do todo já podem ser percebidas - o que também significa, como já foi afirmado anteriormente, que o alcance da compreensão da lógica do todo não implica na consideração e no conhecimento extensivo de todos os seus fatos, momentos e relações, mas na compreensão da sua estrutura dialética, vale dizer, naquela essencialidade que, alcançada a meio caminho do conceito acabado, já caracteriza o todo. Para recorrer ao mesmo exemplo sugerido anteriormente, o conceito de capital, que só se completa no Livro III, quando o “capital em geral” é situado na “pluralidade dos capitais”, portanto no âmbito da concorrência etc., está essencialmente formulado quando, já no Livro I, a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor mediante a reconversão da mais-valia.

Uma outra questão da análise da totalidade é a que se refere ao papel fundante e decisivo da contradição nas conexões da totalidade. É óbvio que nem todas as conexões que se espalham através de toda a transversalidade de uma dada totalidade são conexões de forças que se colocam em relação de contradição; mas, por outro lado, as conexões que implicam contradições ou antagonismos são as mais decisivas na definição do caráter e na eclosão de momentos de unidade e ruptura das totalidades em geral. É por demais sabido que o próprio modo de produção capitalista conecta, em um momento para o seu desenvolvimento, em outro, para a sua ruptura, duas categorias fundamentais: trabalho e capital no plano objetivo, proletariado e burguesia no plano de suas respectivas subjetividades. Essa contradição, presente no topo da totalidade abrangente modo de produção, também está presente na outra ponta - a da categoria mais simples (molecular), a mercadoria - desse modo de produção. Também a mercadoria é uma totalidade e, como tal, encerra, na sua objetivação, através da produção capitalista, conexões de outras categorias que se revelam como relações de oposição, tais como: valor e mais-valia, visibilidade e fetiche etc. No caso da totalidade modo de produção capitalista, são incontáveis as conexões que encerram desde a imediata produção da mercadoria, passando por todos os processos (e totalidades) intermediários (troca, circulação simples, circulação de capital etc.), até o momento mais amplo da concorrência e das crises do sistema - contradições que combinam para assegurar o desenvolvimento do capital mais que, em épocas de crise, quando explodem rompendo as respectivas unidades (combinação do salário com a mais-valia para a valorização do valor etc.), podem se manifestar revelando, tanto na teoria quanto na prática, o desacordo interno e imanente desse modo de produção, potência que se coloca como pressuposto objetivo da possibilidade de sua ruptura.

Em adendo, é exatamente a apreensão da lógica que preside as conexões da totalidade - que constitui, portanto, a sua essência, a sua lei -, e que está presente em toda a transversalidade conectiva do todo, que permite a possibilidade de conhecimento, portando, também, de uma relativa predição do movimento do todo. Essa lógica, essa essência, perpassa o passado, o presente e também o futuro da totalidade em movimento. Ao lado do núcleo essencial de um todo, daquilo que constitui o seu “leito remoto”, encontram-se uma infinidade de acidentes, contingências e circunstâncias que também participam da totalidade e do seu movimento. Aqui existem duas ordens e dois ritmos de movimento: o do “leito remoto” e o dos acidentes - o primeiro, lento, o segundo, (muito mais) rápido. A essência do movimento do todo é o que o unifica e que, portanto, articula as contingências, as circunstâncias e os acidentes ao todo. Enquanto o “leito remoto” do todo, aquilo que constitui a sua lei, a sua lógica, a sua necessidade, a sua estrutura, permanece por um tempo maior, as circunstâncias, os acidentes e as contingências mudam, aparecem e desaparecem, muito rapidamente. É exatamente esse “leito remoto”, que antecede e que sucede o estágio presente do movimento do todo, que confere a possibilidade do conhecimento e do reconhecimento do todo na sua constituição pretérita e de uma relativa possibilidade de conhecimento dos desdobramentos futuros - portanto também de predição - da totalidade. Quando uma crise cíclica do sistema do capital acontece, a sua constituição não se dá por força de elementos acidentais ou circunstanciais de uma da conjuntura, mas por efeito de uma lei - a lei da queda tendencial da taxa de lucro etc. -, e é pelo reconhecimento e pelo conhecimento dessa lei que se pode prever certos desdobramentos - sempre em certa medida - essenciais da ordem do capital em crise. Fenômenos acidentais, circunstanciais, contingenciais podem até precipitar, num dado momento, um processo de crise de superprodução, mas jamais dar origem a esse tipo de crise. A análise da lei da crise garante previsões aproximadas de sua duração cíclica, da possibilidade de uma depressão ou de um crack, de uma certa dimensão do desemprego, da ruína e sucateamento de certos segmentos de capitais etc. O grau de acerto em tal tipo de predição vai depender da capacidade de apropriação do máximo de mediações existentes nas relações entre a lei e as circunstâncias presentes no processo de crise. (6)

Do todo exposto, o problema consiste, pois, em saber quais são, em cada caso, as categorias e relações centrais que constituem a essência de uma totalidade (uma realidade concreta e complexa). Era exatamente o que Marx tinha em mente quando escreveu estas palavras nos Grundrisse:


Quando consideramos um determinado país do ponto de vista da economia política, começamos por sua população, pela divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos produtivos, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Parece justo começar pelo real e concreto, pela verdadeira suposição; assim, por exemplo, na economia, pela população que é a base e o sujeito da ação social da produção em seu conjunto. Contudo, se examinarmos com maior atenção, isto se revela um procedimento falso. A população é uma abstração caso deixe de lado, por exemplo, as classes que a compõem. Estas classes são, por sua vez, uma palavras vazia se desconheço os elementos sobre os quais repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, os preços etc. Se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do conjunto e, necessitando cada vez mais, chegaríamos analiticamente a conceitos cada vez mais simples. Alcançando este ponto, teríamos que empreender novamente a viagem de retorno, até encontrar de novo a população, mas desta vez não teríamos uma representação caótica de um conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações (Marx, 1973, p 20-21).


Colocando a questão nos termos mais gerais dedutíveis do texto, pode-se dizer que Marx se refere, como ele próprio enuncia, à abordagem de “um dado país do ponto de vista da economia política”; mas, por outro lado, é óbvio que o procedimento se enquadra perfeitamente na conceituação do modo de produção capitalista, que é, de resto, o que ele de fato tinha em mente quando tentava, com essas notas (O método da economia política), encontrar caminhos de acesso a tal conceituação, empreendimento que levará a efeito na obra O capital, para cuja elaboração os Grundrisse constituíam parte essencial dos estudos preliminares.

Num caso, teórico - conceituação de modo de produção capitalista -, não é pela população que a investigação deve começar, mas pelas determinações mais simples, constitutivas e fundadoras dessa totalidade. Marx argumenta que não se pode ceder à tentação, como de fato acontecia com a economia política nascente, de começar pela população, porque começar a análise por tal ponto de partida levaria o analista a incorrer no erro de toma-la por um todo homogêneo, indiferenciado, não estruturado, ilógico; portanto, procedimento que o conduziria a erros cumulativos em toda a investigação subseqüente. É obvio que se poderia aduzir que a divisão da população em classes poderia ser feita depois; todavia, Marx argumenta, com perspicácia, que o correto e fecundo para a análise - do “dado país” ou do modo de produção capitalista, que são duas totalidades em si mesmas -, agora, não mais tão somente a população, mas a própria formação social capitalista como um todo - passa por um estágio que deve anteceder à sua abordagem específica e direta, e a questão passa a ser exatamente o problema posto em seus termos mais gerais: o de saber por quais categorias simples e fundantes se deve começar para alcançar uma dada realidade (totalidade) concreta. Assim, muito antes de se chegar à população ou ao conceito de modo de produção (capitalista, no caso), o itinerário está cheio de paradas obrigatórias que vão desaguar não só na população (dividida e formada por classes sociais), como na totalidade que contém e a reproduz na sua especificidade histórica. Trata-se, portanto, de cindir (não obviamente, como se faz com o método cartesiano) o objeto até se chegar a seus elementos mais simples e centrais - noções, conceitos, categorias, leis e relações. Por exemplo: a mercadoria e, dentro dela, trabalho, valor, mais-valia etc., são os elementos simples decisivos, na ausência dos quais, todavia, sem viagem de retorno, jamais o analista lograria caracterizar o todo (população, sociedade etc.) como uma síntese verdadeiramente dialética. Só dessa maneira a categoria totalidade estará pronta e apta para uso científico e, naturalmente, para as exigências da práxis social, (7) porque só desta forma pode-se evitar uma visão caótica do todo, o que só é possível se se descobre as relações, leis e categorias-chave - e, como pressuposto, uma hierarquia de determinações, em processo, entre as mesmas - capazes de dar acesso científico ao entendimento da população e do todo social como uma totalidade uma e articulada, embora contraditória em sua essência. De resto, essa articulação, que se desencadeia por todo o edifício social numa movimentação que não é “funcional”, linear, mecânica, mas dialética, tem, em alguns pontos nodais, suas principais determinações.

Quando a totalidade está assim posta ou reposta, ficam devidamente ressaltados alguns de seus traços constitutivos universais: em primeiro lugar, ela aparece como uma rede de relações, as fundadoras e as demais, a partir de uma determinada centralidade; em segundo, ela também aparece, simultaneamente, como uma unidade concreta das contradições que se chocam no seu interior e que exatamente expressam o seu conteúdo e o seu movimento; em terceiro, fica evidenciado o fato de que qualquer totalidade contém totalidades a ela subordinadas - totalidades internas e inferiores - e está contida em totalidades mais abrangentes, mais complexas e situadas numa escala superior; em quarto, e por último, fica também evidenciado o caráter histórico, portanto transitório, da totalidade, de qualquer totalidade dada. Nisso reside, finalmente, a categoria totalidade do ponto de vista da dialética materialista. É essa categoria que o método de Marx revela: uma totalidade jamais idealizada, porque esse método não finge que constrói o conhecimento, como fazem as grandes formulações idealistas, por meio de uma série de associações, total ou parcialmente arbitrárias, de idéias - porque descoladas dos aspectos decisivos do real concreto, em cuja transformação o sujeito que a pensa age direta e ativamente.

Mas, por onde se deve abordar analiticamente determinada totalidade? Esta é uma questão da maior importância para todos os que realizam investigações de caráter científico, mormente quando se trata da análise de totalidades sociais. No que se refere à questão Karel Kosik tem a seguinte opinião:


Aquilo de onde a ciência inicia a própria exposição já é resultado de uma investigação e de uma apropriação crítico-científica da matéria. O início da exposição já é um início mediato, que contém em embrião a estrutura de toda a obra. Todavia, aquilo que pode, ou melhor, deve constituir o início da exposição, isto é, do desenvolvimento científico (exegese) da problemática, ainda não é conhecida, no início da investigação. O início da exposição e o início da investigação são coisas diferentes. O início da investigação é casual e arbitrário, ao passo que o início da exposição é necessário (1976, p.31).


E, mais adiante, na mesma obra, ele conclui:


O capital, de Marx, começa (...) com a análise da mercadoria. Mas, como a mercadoria é uma célula da sociedade capitalista, como é o início abstrato cujo desenvolvimento reproduz a estrutura interna da sociedade capitalista, tal início da interpretação é o resultado de uma investigação, o resultado da apropriação científica da matéria. Para a sociedade capitalista a mercadoria é a realidade absoluta, visto que ela é a unidade de todas as determinações, o embrião de todas as contradições (...). Todas as determinações ulteriores constituem mais ricas definições ou concretizações deste “absoluto” da sociedade capitalista (...). Na investigação o início é arbitrário... (idem, o. 31-32).

Já da afirmação feita pelo mesmo Kosik, de que a mercadoria é “a realidade absoluta da sociedade capitalista”, e, complementarmente, que “todas as determinações ulteriores constituem mais ricas definições ou concretizações deste ‘absoluto’ da sociedade capitalista”, pode-se deduzir que a assertiva desse autor, acerca da casualidade da investigação científica de uma totalidade, deve ser relativizada.

Toda totalidade tem suas categorias-resumo, suas “unidades de todas determinações”, categorias mais densas e que, por isso mesmo, devem ser colocadas como chaves da própria investigação, e não só da exposição. Em tese, toda absoluta primeira investigação tem, de fato, algo de arbitrário, mas é preciso dar-se conta de que toda verdadeira investigação científica não constitui nem um ato e nem um início isolado e absoluto, antes é também um processo social e histórico de produção do conhecimento, ou seja, quase nunca é uma investigação totalmente nova e sem antecedentes que legasse patamares e pontos de partida criticamente abordáveis - com continuidades e rupturas. Assim, à medida que a própria investigação avança, e que, portanto, as descobertas de categorias sucessivas vão sendo feitas, as categorias-chave vão aparecendo, vão revelando as suas potencialidades no sentido apontado anteriormente e vão dando ordem à investigação à medida que vão revelando o caráter totalizante que possuem, de tal maneira que, depois de certo desenvolvimento da própria investigação, a casualidade vai sendo substituída pela necessidade no mesmo passo em que vão avançando, sucessivamente, as novas conexões entre categorias - fato que, se é verdadeiro para a continuidade de uma mesma investigação, passa a ser mais verdadeiro ainda para investigações futuras “iniciais”, nas quais aquelas categorias tornam-se pontos de partida necessários para os novos esforços e seus respectivos avanços. Seria, de fato, contra-senso e uma concessão ao empirismo manter uma investigação em eterno compasso de casualidade e arbitrariedade, não só depois da descoberta das categorias-chave dentro de um mesmo processo de investigação como entre vários e sucessivos processos de investigação posteriormente iniciados, nos quais aquelas mesmas categorias podem e devem ocupar destaque gnosiológico e lógico; como seria da mesma forma um contra-senso (uma atitude dogmática) não considerar tais categorias passíveis de crítica e portanto, de possíveis revisões de alcance variável. A considerar como legítima a assertiva absoluta de Kosik de que todo processo de investigação é necessariamente casual - e não só, como pensamos, apenas os processos absolutamente pioneiros e iniciais de investigação e, assim mesmo, não de maneira absoluta -, imputa-se à uma investigação, vista como um processo que une esforços de várias procedências e, inclusive, de várias gerações, uma circularidade que estaria se reproduzindo quase sempre do mesmo ponto de partida. No conjunto do processo historio geral de produção do conhecimento, esses inícios absolutos das investigações constituem exceção, não a regra. Cada todo exposto constitui, a nosso ver, uma seqüência de categorias dispostas que deve ser tomada como um ponto de partida necessário a cada nova investigação. E nem é por mero acaso que Marx, no texto que temos diante de nossa vista, insiste em dois métodos de estudo, não só de exposição, da Economia Política: aquele que ele atribui à “nascente economia”, que, a seu juízo, constitui o método falso, e o outro que ele reivindica como o certo, e que parte das categorias simples que constituem a chave para o êxito do processo de totalização teórica. No longo prazo, no plano do desenvolvimento histórico de toda e qualquer ordem de investigação rigorosamente científica, toda investigação tende a coincidir numa mesma ordem categorial, até mesmo quando a análise revela a necessidade de ultrapassagem, parcial ou total, desta ou daquela categoria ou mesmo de eventuais conjuntos de categorias. Destarte, podemos concluir que toda totalidade possui suas categorias-chave e que, no processo de investigação de cada uma delas, deve-se tomar categorias já comprovadamente eficazes para resultados rigorosamente científicos ou, em se tratando da primeira vez e do primeiro esforço de teorização/investigação, deve-se pinçar as categorias-chave à testa da análise tão logo sejam descobertas e identificadas como tais. Dessa forma, o empirismo vai sendo ultrapassado no próprio curso da investigação, à medida que a necessidade vai ultrapassando, nela e com ela, a casualidade aludida.

Deve-se notar, de resto, que no texto aqui analisado, Marx já está definitivamente rompido, distante e diferenciado de Hegel, no que diz respeito às relações entre ser e o pensamento: o pensamento agora não sai em busca de idéias “em si mesmas”, mas de idéias (noções, categorias, conceitos, leis etc.) que são capazes de expressar o mecanismo central de constituição e articulação do real concreto, a essência desse real concreto. Já as duas buscas mais fundamentais estão aqui combinadas numa mesma perspectiva, num mesmo movimento: a dos elementos simples e decisivos do concreto e a do uso abstrato do conceito, dois dos pilares centrais do método dialético de Marx. Cai por terra o princípio hegeliano de que é na idéia que reside esse mecanismo e seu impulso primário. A inversão gnosiológica está definitivamente feita (Cf. Hegel, 1968). O método dialético materialista já está posto e, embora não totalmente desenvolvido, na sua idade maior; e, para concluir, já está colocada, no plano teórico, a questão proposta, a do início da abordagem analítica de determinada totalidade.


Referências bibliográficas

Dosse, François. A História em migalhas - Dos Annales à Nova História. São Paulo: Unicamp, 1994.

Hegel, G. W. F. Ciência de la lógica. Argentina: Solar, 1968.

Kosik, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Lukács, G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Senzala, 1967.

Marx, Karl. Borrador. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1973.

_________. El capital. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1966.

Rodolsky, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 2001.


(1) Mais adiante será visto por que a afirmação de Lukács, de que as relações objetivas são “sempre determinadas”, não implica - ou não expressa - um determinismo “objetivo” (absoluto) no qual o elemento subjetivo não esteja presente com sua eficácia específica.

(2) A propósito do impacto negativo causado pelo abandono dessa categoria dialética nos domínios de importantes segmentos da historiografia contemporânea, consultar a obra de François Dosse (1994).

(3) Com efeito, alguns autores e algumas concepções, notadamente no âmbito da sociologia e fora da esfera teórica do marxismo, empregam o conceito de todo ou totalidade sem a observância dos pressupostos de que se fala mais acima. À propósito, escreve Kosik: “(...) a categoria da totalidade atingiu no século XX uma ressonância e notoriedade, mas ao mesmo tempo se viu continuamente exposta ao perigo de ser entendida unilateralmente ou de se transformar no seu oposto, isto é, de deixar de ser um conceito dialético. O sentido principal das modificações introduzidas no conceito de totalidade durante os últimos foi a sua redução a uma exigência metodológica e a uma regra metodológica na investigação da realidade. Essa degeneração do conceito resultava em duas banalidades: que tudo está em conexão com tudo, e que o todo é mais do que as partes” (Kosik, 1969, p.34).

(4) Como se verá em todo este escrito, o termo estrutura não comporta qualquer identificação com o significado que ele recebe em tendências ou escolas que, ao atribuir uma conotação de determinismo absoluto ou da mais completa ausência da ação social ao conceito, na verdade não fazem mais do que proceder a uma inaceitável hipóstase do mesmo.

(5) A esse respeito o leitor pode consultar o excelente livro de Romam Rosdolsky, Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx, nomeadamente o Apêndice II (Rosdolsky, 2001).

(6) A dificuldade de captar todo um conjunto representativo de mediações num dado processo social sempre foi um grande obstáculo às predições de movimentos, ora para mais, ora para menos, mesmo por parte de leitores de conjunturas em perspectiva, do porte de Marx, Engels, Lênin e Trotsky. A análise desse tipo de dificuldade - a saber: a questão do tratamento que deve ser dado às mediações nas análises e predições pelo método marxista das análises de conjunturas - não será abordada neste estudo, pois se trata de problema complexo que merece, por isso mesmo, uma abordagem à parte.

(7) Essa afirmação não supõe que a elaboração dessas categorias seja um ato que anteceda ou que esteja acima ou fora da práxis social, como uma postura meramente contemplativa - no estilo platônico, por exemplo - da produção do “conhecimento”, mas, ao contrário, simultaneamente nela e com ela. Nos termos do marxismo, não existe coisa mais estranha ou inútil do que um pensamento que elabora distante de uma inserção prática no ato de transformação da realidade que é, simultaneamente, compreendida para ser transformada e transformada para ser continuamente compreendida.

Nenhum comentário: