quarta-feira, 21 de maio de 2008

A Dialética Hegeliana - Foulquié

Capitulo retirado do livro "Dialética" de Foulquié (grifo meu)

Heráclito, o antepassado da dialética da contradição, era chamado pelos seus contemporâneos de Heráclito, o Obscuro. Frederic Hegel (1970-1983) herdou esta obscuridade. Ouçamos um dos seus mais recentes historiadores, que lhe consagrou dois grossos volumes. A introdução dessa importante obra começa com esta declaração:

É um segredo conhecido de todos que até aqui quase todas as exposições ou introduções ao pensamento de Hegel deixam completamente desorientado o leitor, que quer em seguida lançar-se à leitura das suas obras, e que mesmo estes intérpretes de Hegel bem poucos serão capazes de fazer integralmente a análise palavra por palavra de uma página da sua obra [...].
Seria necessário seguir passo a passo toda a evolução do pensamento dos filósofos desta espécie, e os que o fazem descobrem, qual segredo de polichinelo, que as teorias completamente elaboradas e os sistemas destes homens (Fichte, Schelling, Hegel), tomados no seu conjunto, são no fundo ainda hoje sempre incompreendidos, quer pelos seus partidários, que os repetem como um segredo e quase como um mistério, quer pelos seus adversários. (Theodor Haering)

Depois deste preâmbulo, é inútil dizer que não pretendemos iniciar os nossos leitores no pensamento hegeliano. Apenas queremos elucidá-los de como Hegel concebe a dialética.

A SUA FILOSOFIA - Para caracterizar o pensamento filosófico de Hegel, de que é preciso ter uma idéia para compreender a sua dialética, compará-lo-emos à filosofia clássica, que admite três princípios distintos, embora dependentes uns dos outros: Deus ou o ser que é por si mesmo, a alma ou espírito, a matéria ou o mundo.
Hegel é teísta e para crer em Deus não é necessário recorrer às provas múltiplas que é clássico apresentar; o argumento ontológico chega-lhe: em Deus a essência implica a existência; pretender que o Ser não exista é uma contradição nos termos. Mas é igualmente contraditório que exista algo fora do Ser: por conseguinte, o teísmo de Hegel é monismo, um panteísmo. Esse Deus é concebido como Idéia Absoluta, quer dizer, como uma idéia que é por si mesma e em sim mesma e não num espírito.
Essa Idéia, como o Deus de Eckhart, é em si mesma uma indeterminação: só se determina exteriorizando-se na natureza. Assim a Idéia absoluta passa a algo de determinado graças ao mundo que, para falar em sentido estrito, não procede dela, como nos neoplatónicos, mas por quem ela procede.
A evolução do mundo leva à aparição do homem e do pensamento, graças ao qual a Idéia absoluta toma progressivamente consciência de si mesma, a princípio sob a forma de espírito subjetivo ou individual, depois sob a forma de espírito objetivo ou coletivo, que na família, nas diversas sociedades e no Estado, cria o direito e a moral e se eleva para o absoluto. Assim os espíritos encaminham-se pouco a pouco para a unidade do Espírito ou da Idéia absoluta que se dispersara na natureza para tomar consciência de si.
Todo o real é pois da ordem do pensamento, como dizem os idealistas.

O espírito está certo de se reencontrar a si próprio no mundo, de que o mundo se deve harmonizar com ele, e que, tal como Adão diz a Eva que é a carne da sua carne, a razão que ele deve buscar no mundo não é mais do que a sua própria razão. (Hegel, Fenomenologia do Espírito)

Hegel dirá mais sucintamente, numa máxima célebre: "O que é real é racional, o que é racional é real." Por conseqüência, há nas coisas uma lógica interna, e a história, a biologia, a física, podem ser tratadas dedutivamente como as matemáticas, embora de uma maneira diferente.

A DIALÉTICA. - Com efeito, existem duas razões: a razão abstrata, a do matemático, que opera sobre abstrações e por isso mesmo permanece fora do real; a razão concreta, a do físico ou a do historiador, que opera sobre a própria realidade, detendo-se nela por estratagema a fim de assistir ao seu devir.
O fulcro essencial do raciocínio matemático é o princípio da identidade, que, sob a forma negativa, se transforma no princípio da contradição, ou, melhor, da não-contradição: de duas proposições contraditórias ou contrárias, uma é necessariamente falsa.
Não acontece o mesmo no pensamento concreto ou efetivo, nem nas ciências que tem por objeto o concreto.
Sabemos pela experiência que o nosso espírito, nos seus atos espontâneos, não segue as regras da lógica: a lógica só depois é aplicada. Longe de proceder do mesmo ao mesmo, o pensamento procede do mesmo ao outro. Mais, tem necessidade da contradição como de um estímulo. Aristóteles já o tinha dito: a ciência nasce do espanto. Ora, que é o espanto senão o pensamento mais ou menos vago de uma contradição? O espírito tenta identificar, referir um objeto novo a um tipo já conhecido; mas este trabalho de identificação supõe que lhe é dada uma diversidade, isto é, objetos que são a mesma coisa - senão não teriamos necessidade de os identificar. O pensamento supõe ao mesmo tempo identidade e contradição.
Ele não pode ser diferente da natureza pela qual a Idéia se exterioriza: não somente se observa uma constante luta de forças contrárias, mas ainda sem essa luta a Idéia ficaria numa inércia vizinha do nada. O real comporta ao mesmo tempo identidade e contradição, mas é preciso considerar a contradição como mais profunda e mais essencial.

Perante ela, a identidade não é mais que a determinação do simples imediato do ser, enquanto a contradição é a raíz de todo o movimento; é só enquanto uma coisa tem uma contradição nela própria que ela se move, que tem uma impulsão e atividade (Hegel, Ciência da lógica)

A conciliação dos contrários nas coisas como no espírito constitui aquilo a que Hegel chama dialética.
O processo dialético consta de três momentos vulgarmente "tese", "antítese" e "síntese", mas a que Hegel chama habitualmente "afirmação", "negação" e "negação da negação".
Embora o sistema filosófico de Hegel esteja construído sobre este plano e as tríades abundem nele, é difícil dar exemplos satisfatórios do processo dialético, de tal modo este método é artificial.
A primeira tríade do sistema hegeliano é a mais célebre. O ser é: é a afirmação ou a tese. Mas ser totalmente indeterminado, sem ser isto ou aquilo, equivale ao nada, de modo que a afirmação ou tese implica a negação ou antítese: o se não é. Esta negação será negada e teremos a síntese da proposição: o ser é devir.
Mais clara será a dialética do espírito religioso. A tese consiste em só ter em conta os bens celestes. A antítese, em apenas estimar os bens terrenos. A síntese, em reconhecer que os bens terrenos condicionam os bens celestes e devem ser buscados em função deles.
Vemos por este exemplo no que consiste a síntese: ela ultrapassa a contradição, mas conservando as duas proposições opostas. É o que exprime o verbo aufheben.

Esta palavra quer dizer, antes de mais, suprimir, negar, e é neste sentido que dizermos que uma lei, uma disposição foi suprimida, mas entendemo-la também no sentido de aufbewahren, conservar, e é por isso que dizemos de uma coisa que ela foi bem conservada. Não devemos considerar a utilização que a linguagem faz da mesma palavra no duplo sentido, positivo e negativo, como fato acidental, e ainda menos devemos fazer-lhe reparo, como se isto pudesse originar uma confusão, mas é preciso pelo contrário, reconhecer nela o espírito especulativo da nossa língua, que se eleva para lá das divisões e absrações do entendimento. (Hegel, Ciência da lógica)

A síntese marca uma paragem do pensamento do espírito, ou do movimento nas coisas, mas não definitivo. Ela suscita, por seu lado, a sua própria negação, que uma nova síntese deverá superar, e assim indefinidamente.
Se este jogo incessante de teses, antíteses e sínteses se passasse unicamente no espírito, ser-nos-ia bastante fácil compreendê-lo Mas passa-se também nas coisas que não pensam. E mesmo mais, a dialética do pensamento não é mais que a reprodução pura e simples do movimento das coisas: o pensamento não é "dialético senão no sentido em que descreve uma dialética da realidade". Se uma idéia suscita a idéia oposta, é porque a realidade que esta idéia apresenta exige a realidade contrária.

DIALÉTICA HEGELIANA E CONTRADIÇÃO. - Segundo Hegel, o processo dialético pelo qual a Idéia se realiza na natureza e no espírito assentaria na contradição. Deve-se daqui conclui-se que a dialética hegeliana implica a rejeição do princípio da contradição, sendo portanto diametralmente oposta á dialética antiga, que considera este princípio como fundamento essencial? Devemos responder negativamente.
Salientemos antes de mais que na discussão, que é o primeiro e talvez o principal objeto da dialética antiga, se procede igualmente, se nela se quiser refletir, por meio de uma tese, antítese e síntese. Um dos interlocutores faz uma afirmação ou tese que o adversário nega, apresentando deste modo a antítese. Mas não fica por aí: com efeito, a defender a sua opinião, cada um tem o cuidado de integrar, tanto quanto possa, os dados que fundamentam a opinião adversa. Assim, mesmo que não cheguem a um acordo declarado, a discussão leva normalmente, se não necessariamente, a um esboço de síntese. Esta será ainda mais fácil quando se discute consigo próprio, procurando conciliar pontos de vista contraditórios. Deste modo, o processo do pensamento, na dialética hegeliana, em nada se opõe ao da dialética antiga.
Isto porque Hegel, embora possa parecer que afirma o contrário, admite, como qualquer outro, o princípio da contradição. A contradição fere o seu espírito, como o nosso, e só descansará quando a superar. Hegel apenas afirma que a contradição constitui um momento necessário do pensamento.
Esta última afirmação nada apresenta de paradoxal. Mas, como dissemos, a contradição do pensamento, para Hegel, não é mais do que a imagem da contradição das coisas, e é aí que está o paradoxo. Eu, posso, segundo um ponto de vista, julgar que uma coisa é preta e segundo outro ponto de vista, julgar que ela não é preta; há aqui uma oposição pensável. Mas que a mesma coisa seja ela própria, ao mesmo tempo preta e não preta, é impensável, como contrário a lei de todo pensamento, o princípio da contradição.
De resto, na dialética hegeliana as coisas não são contraditórias no sentido rigoroso que esta palavra assume na lógica clássica. Como Heráclito, Hegel faz valer sobretudo a luta dos contrários. Ora se proposições contrárias não podem ser simultaneamente verdadeiras, podem ser simultaneamente falsas; e assim é possível uma síntese da parte de verdade que cada uma delas contém.
Além disso, muito freqüentemente a pretendida contradição das coisas consiste na sua mudança ou no seu movimento: o ser que hoje é vivo estará morto amanhã, enquanto aquele que ainda não existia nascerá. Ora, é inútil se pretendêssemos que o mesmo indivíduo está simultaneamente vivo e não vivo, mas não há contradição ao verificar que os seres vivos se encaminham para a morte. Esta perpectiva da morte pode unicamente suscitar na alma um sentimento de mistério e de melancolia.

Pratica-se para com Hegel uma grande injustiça considerando-o como se ele fosse sobretudo um racionador. É na realidade um observador naif, mas obsecado por uma desagradável predileção pela giria técnica e lógica. Instala-se no meio do fluxo empírico das coisas e deixa-se impressionar pelo que acontece [...]. A impressão que experimenta um homem naif que se coloca com toda a simplicidade nomeio do fluxo das coisas é de que se coloca toda simplicidade no meio do fluxo das coisas é de que as coisas não estão em equilibro. Sejam quais forem os equilíbrios percebidos pelas nossas experiências finitas, são apenas provisórios. [...] Do mesmo modo, os equilíbrios lentamente construídos aos quais chegam os homens na sua vida de família e nas suas relações cívicas ou profissionais, acidentes de ordem moral, de ordem mental ou de ordem física, vêm destruí-los [...]. Esta fuga das coisas que seguem de perto os seus contraditórios; o destino de cada um e o seu aniquilamento; esta perpétua marcha em frente para um futuro que vai suplantar o presente: é esta intuição hegeliana do caráter essencialmente provisório, e por consequencia irreal, de todas as coisas empíricas e finitas. (W. James, Filosofia da experiência)

terça-feira, 13 de maio de 2008

Alienação - Rubem Alves

Segue abaixo enxerto retirado do alguns livro "O que é religião", onde Rubem Alves expões o significado de alienação em Marx (grifo meu)


O que é alienação?

Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vendê-la a um outro. Por este processo ela é alienada. A alie­nação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo que pertencia à primeira.


Por que o trabalho é marcado pela alienação?

Voltemos por um instante ao trabalho não alienado, criador, livre, que Marx imaginou. Sua marca essencial está nisto: o homem deseja algo. Seu desejo provoca a imaginação que visualiza aquilo que é desejado, seja um jardim, uma sinfo­nia ou um simples brinquedo. A imaginação e o desejo informam o corpo, que se põe inteiro a trabalhar, por amor ao objeto que deve ser criado. E quando o trabalho termina o criador contempla sua obra, vê que é muito boa e des­cansa...


Que acontece com aquele que trabalha dentro das atuais condições?

Em primeiro lugar, ele tem de alienar o seu desejo. Seu desejo passa a ser o desejo de outro. Ele trabalha para outro.

Em segundo lugar, o objeto a ser produzido não é resultado de uma decisão sua. Ele não está gerando um filho seu. Na verdade, ele não está metido na produção de objeto algum porque com a divisão da produção numa série de atos especializados e independentes, ele é rebaixado da condição de construtor de coisas à condição de alguém que simplesmente aperta um parafuso, aperta um botão, dá uma martelada. Se se pergun­tar a um operário de uma fábrica de automóveis: "que é que você faz?", nenhum deles dirá "eu faço automóveis. Você já viu como são bonitos os carros que fabrico?". Eles não dirão que objetos produzem, mas que função especializada seus corpos fazem: "Sou torneiro. Sou ferramenteiro. Sou eletricista".

Em terceiro lugar, e em consequência do que já foi dito, o trabalho não é atividade que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do salário.

Em último lugar, o trabalho cria um mundo independente da vontade de operários... e capi­talistas. Porque também os capitalistas estão alienados. Eles não podem fazer o que desejam. Todo o seu comportamento é rigorosamente determinado pela lei do lucro. Não é difícil com­preender como isto acontece. Imaginemos que você, sabendo que o bom do capitalismo é ser capitalista, e dispondo de uma certa importância ajuntada na poupança, resolva dar voos mais altos e investir na bolsa de valores. Como é que você irá proceder? Você deverá consultar tabelas que o informem dos melhores investimentos. E que é que você vai encontrar nelas? Números, nada mais. Números indicam as possibilidades de lucro. Se as firmas em que você vai investir estão derrubando florestas e provocando devas­tações ecológicas, se elas prosperam pela produção de armas, se elas são injustas e cruéis com os seus empregados, tudo isto é absolutamente irrele­vante. Estabelecida a lógica do lucro, todas as coisas — da talidomida ao napalm — se transfor­mam em mercadorias, inclusive o operário. Este é o mundo secular, utilitário, que horrori­zava Durkheim. É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...

Mas que fatores levam os trabalhadores a aceitar tal situação? Por que trabalham de forma alie­nada? Por que não saem para outra?
Porque não há alternativas. Eles só possuem os seus corpos. Para produzir deverão acoplá-los às máquinas, aos meios de produção. Máquinas e meios de produção não são seus, e são gover­nados pela lógica do lucro. E é assim que o próprio conceito de alienação nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas classes sociais. Duas maneiras totalmente diferentes de ser do corpo. Os trabalhadores são acoplados às máquinas e, por isto, têm de seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixará marcas nas mãos, na postura, no rosto, nos olhos, especialmente os olhos. . . Os corpos que habitam o mundo do lucro também têm suas marcas, que vão do colarinho branco (os americanos falam mesmo nos trabalhadores white collar), passando pêlos restaurantes que frequentam, as aventuras amo­rosas que têm, e as enfermidades cardiovasculares que os afligem...

E não é necessário pensar muito para compreen­der que os interesses destas duas classes não são harmónicos. Para Marx aqui se encontra a contra­dição máxima do capitalismo: o capitalismo cresce graças a uma condição que torna o confli­to entre trabalhadores e patrões inevitável. Marx nunca pregou luta de classes. Achava tal situação detestável. Apenas como um médico que faz um diagnóstico de um paciente enfermo, ele dizia: o desenlace é inevitável porque os órgãos estão em guerra... O problema não é de natureza moral nem de natureza psicológica. Não se resolve com boa vontade por parte dos operários e genero­sidade por parte dos patrões. Nenhum salário, por mais alto que seja, eliminará a alienação. Trata-se de uma lei, sob o ponto de vista de Marx, tão rigorosa quanto a lei da química que diz: comprimindo-se o volume de um gás a pressão aumenta; expandindo-se o volume, a pressão cai. E aqui poderíamos afirmar: "Salários compri­midos ao seu mínimo produzem milagres econó­micos expandidos ao seu máximo".

Isto é a realidade: homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não desejam.. . E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias, utopias, critérios estéticos, leis, consti­tuições, religiões...