terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Marxismo e Religião - Michael Lowy

(grifo meu)

I - Introdução
O engajamento de cristãos nas lutas revolucionárias não é um fenômeno novo, notadamente na América Latina. O marxismo "tradicional" leva esse fato em conta opondo os trabalhadores cristãos, ganhos para a revolução, à Igreja (os "curas"), corpo reacionário por excelência. A morte do padre Camilo Torres, combatente da guerrilha colombiana, num enfrentamento com o exército, podia ainda passar como um caso excepcional; mas o engajamento crescente de cristãos e padres nas lutas sociais e sua participação massiva na revolução sandinista obrigam certamente a uma revisão dessa análise simplista. Opor a base popular da Igreja à sua hierarquia conservadora não era mais suficiente, quando numerosos bispos se declaram solidários aos movimentos populares; solidariedade paga às vezes com sua vida, como no caso do Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado pelos esquadrões da morte em março de 1980. Restava aos marxistas desconcertados o recurso de distinguir entre a prática social, válida, destes cristãos, e sua ideologia religiosa, necessariamente retrógrada e idealista. Ora, com a teologia da libertação, vê-se surgir um pensamento religioso que utiliza de conceitos marxistas e impulsiona lutas de libertação social.
Já é tempo de os marxistas se darem conta de que se passa alguma coisa de novo, cuja importância é histórico-mundial: uma fração significativa do "povo de Deus" e de sua Igreja (cristã) está em vias de mudar de posição no campo da luta de classes, passando com armas (espirituais) e bagagens (materiais) para o lado do povo trabalhador.
Este fenômeno não tem muito a ver com o antigo "diálogo" entre cristãos e marxistas - vistos como dois campos separados - e ainda menos com a insípida negociação diplomática entre aparelhos burocráticos, cujo exemplo caricatural é o recente "encontro entre cristãos e marxistas" - quer dizer representantes do Vaticano e dos Estados da Europa Oriental - em Budapeste. O que se passa na América Latina (e alhures) em torno da teologia da libertação é outra coisa: uma fraternidade nova entre revolucionários crentes e não crentes, numa dinâmica emancipadora que escapa tanto à Roma, quanto à Moscou.
Tudo isto significa sem dúvida um desafio à concepção marxista "clássica" da religião, sobretudo na sua versão vulgarizada, reduzida ao materialismo e ao anti-clericalismo dos filósofos burgueses do séc. XVIII. Pode-se, no entanto, encontrar nos escritos de Marx e Engels, apesar de algumas simplificações que devem ser superadas, e em alguns marxistas modernos, conceitos e análises que podem nos ajudar a compreender a surpreendente realidade atual.

a) Marx e Engels
Comecemos pela célebre fórmula "a religião é o ópio do povo", que parece resumir a concepção marxista do fenômeno religioso aos olhos da maior parte de seus partidários e adversários. Lembremos, primeiramente, que esta expressão não tem nada de especificamente marxista: vamos encontrá-la, em vários contextos, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e Heine. Uma leitura atenta do texto de Marx mostra que ele é mais nuançado do que se acredita, dando conta da dupla natureza do fenômeno: "a angústia religiosa é por um lado a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia real.
A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, como é o espírito de condições sociais de onde o espírito está excluído. Ela é o ópio do povo".
Esta análise deve mais ao neo-hegelianismo de esquerda, que concebe a religião como a alienação da essência humana, que à filosofia das Luzes (a religião como conspiração clerical). Na realidade, no momento em que Marx escreveu este texto, ele era ainda um discípulo de Feuerbach; quer dizer, um neo-hegeliano ele próprio. Sua análise da religião é, portanto, "pré-marxista". Mas ela não é menos dialética, pois compreende o caráter contraditório do fato religioso: enquanto justificação do mundo existente, enquanto protesto contra ele.
E só mais tarde notadamente com “A Ideologia Alemã" (1846), que começa o estudo propriamente marxista da religião enquanto fato social e histórico, quer dizer, como uma das múltiplas formas da ideologia, da produção espiritual de um povo, da produção de idéias, de representações e da consciência, necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais correspondentes. Friedrich Engels manifesta um interesse muito maior que Marx pelos fenômenos religiosos e seu papel histórico. A principal contribuição de Engels ao estudo marxista das religiões é sua análise da relação das representações religiosas com a luta de classes. Mais além da polêmica filosófica (materialismo contra idealismo) ele tenta compreender e explicar as manifestações sociais concretas da religiosidade. O cristianismo não aparece mais como uma "essência" atemporal, mas como uma forma cultural que se transforma historicamente: primeiro religião de escravos, depois ideologia do Estado do Império Romano, religião adequada à hierarquia feudal e finalmente religião adaptada à sociedade burguesa. Ela aparece assim como um espaço simbólico disputado pelas forças sociais antagônicas: teologia feudal, protestantismo burguês, heresias plebéias. Por vezes essa análise tende para uma visão estreitamente utilitária, instrumental, do problema: "cada uma das diferentes classes utiliza a religião que lhe é adequada... que estes senhores creiam ou não em suas respectivas religiões, isto não faz nenhuma diferença." Engels parece não perceber nas diferentes formas de crença nada além do "disfarce religioso" dos interesses de classe.
Entretanto, graças ao método da luta de classes, Engels percebe, contrariamente aos filósofos das Luzes, que o conflito entre materialismo e religião não pode ser sempre identificado ao combate entre revolução e reação. Por exemplo, na Inglaterra no século XVII, o materialismo aparece, com Hobbes, em defesa do absolutismo monárquico, enquanto que as seitas protestantes fazem da religião sua bandeira na luta revolucionária contra os Stuart.
Do mesmo modo, longe de conceber a Igreja como um todo socialmente homogêneo, ele mostra enfaticamente como, em certas conjunturas históricas, ela se divide segundo sua composição de classes.
Assim, à época da Reforma, uma parte é o alto clero, a cúpula feudal da hierarquia eclesiástica, e outra parte é o baixo clero, de origem plebéia, onde se recruta os ideólogos da Reforma e do movimento camponês revolucionário.
Materialista, ateu e adversário irreconciliável da religião, Engels percebe, entretanto, (como o jovem Marx) o duplo caráter do fenômeno: seu papel legitimador da ordem estabelecida, mas também, segundo as circunstâncias sociais, seu papel crítico, de protesto, e mesmo revolucionário. A maior parte dos estudos oncretos que ele escreveu acentuam sempre este segundo aspecto. Inicialmente, o cristianismo primitivo, religião de escravos, dos banidos, dos condenados, dos perseguidos, dos oprimidos. Os primeiros cristãos se recrutavam nas camadas mais baixas do povo: os escravos, os homens livres em penúria, e os pequenos camponeses assoberbados pelas dividas. Engels chega a estabelecer um surpreendente paralelo entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno: a) os dois grandes movimentos não são feitos por chefes e por profetas - se bem que os profetas não faltam nem em um, nem em outro - mas são movimentos de massa; b) todos os dois são movimentos de oprimidos, submetidos à perseguição: seus adeptos são proscritos e perseguidos pelas autoridades do momento; c) todos os dois pregam uma libertação em breve da servidão e da miséria. Para demonstrar sua comparação, Engels se diverte com uma frase de Rénan: "Se quizerem ter uma idéia das primeiras comunidades cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional dos Trabalhadores". A diferença essencial é, evidentemente, que os cristãos primitivos transpõem a libertação para o além, enquanto que o socialismo se localiza neste mundo.
Esta diferença é assim tão marcante como parece à primeira vista? No seu estudo do segundo
grande movimento cristão de protesto - as heresias da Idade Média e a Guerra dos Camponeses na Alemanha - ela parece se diluir: Thomas Münzer, teólogo e dirigente dos camponeses e plebeus revolucionários do Século XVI, queria a instauração imediata na terra do reino de Deus, do reino milenar dos profetas. Segundo Engels, o reino de Deus para Münzer "não era outra coisa que uma sociedade onde não haveria mais nenhuma diferença de classes, nenhuma propriedade privada, nenhum poder de Estado".
Entretanto, Engels tende, ainda uma vez, a reduzir a religiosidade à um estratagema: ele fala da "fraseologia cristã" de Münzer e de sua "máscara bíblica". A dimensão propriamente religiosa do milenarismo münzeriano, sua força espiritual e moral, sua profundidade mística autenticamente vivida, parecem lhe escapar.
Dito isto, por sua análise do fato religioso do ponto de vista da luta de classes, Engels iluminou as potencialidades de protesto do fenômeno e abriu o caminho para uma abordagem nova - distinta tanto da dos filósofos iluministas como dos neo-hegelianos alemães - da relação entre religião e sociedade.

b) A Religião e o Marxismo do séc. XX
A maior parte dos estudos marxistas sobre a religião do séc. XX se limitam a desenvolver as indicações de Marx e de Engels, onde se pode aplicá-las a tal ou qual realidade específica. Este é o caso, por exemplo, dos estudos históricos de Karl Kautsky sobre o cristianismo primitivo, sobre as heresias da Idade Média e sobre Thomas Münzer: se, por um lado, faz análises precisas interessantes sobre as bases sociais e econômicas deste movimentos e de suas aspirações comunistas, por outro, reduz suas crenças religiosas a um simples "envelope" (Hülle) ou "roupagem" (Gewand) que "esconde" o conteúdo social, Quanto aos escritos de Lênin, Trotsky ou Rosa Luxemburgo, eles têm por objeto sobretudo os problemas táticos que a religião coloca para o movimento operário: sua idéia matriz é que o combate ateísta contra a religião deve estar subordinado às necessidades concretas da luta de classes, que exige a unidade entre trabalhadores crentes e não-crentes.
Com Ernst Bloch, a abordagem marxista dos fatos religiosos muda de registro radicalmente. De maneira análoga à de Engels, ele faz a distinção entre duas correntes socialmente opostas: a religião teocrática das Igrejas oficiais, ópio mistificador do povo a serviço dos poderosos, e a religião subterrânea e subversiva dos profetas messiânicos, das heresias e dos milenarismos, a religião dos cátaros, dos hussitas, de Joaquim de Flore, de Thomas Münzer, de Baader, Weitling e Toistoi.
Contrariamente a Engels, entretanto, Bloch se recusa a conceber a religião unicamente como uma "máscara" dos interesses de classe (ele critica explicitamente esta tese, atribuindo-a, entretanto, à Kautsky...). Nas figurações de protesto, a religião é uma das formas mais significativas da consciência utópica, uma das manifestações mais ricas do principio da esperança. Por sua capacidade de antecipação criadora, a escatologia judaico-cristã - o universo religioso preferido de Bloch - desenha o espaço imaginário do ainda-não-existente.
Partindo destes pressupostos, Bloch se dedica a uma hermenêutica heterodoxa e iconoclasta da Bíblia - tanto o Antigo como o Novo Testamento - à procura da Bíblia pauperum, a que denuncia o Faraó e que leva cada um a escolher: "Aut Cesar aut Christus".
Ateu religioso - segundo ele, só um ateu pode ser um bom cristão, e vice-versa - teólogo da revolução, Bloch se dedica não somente a uma leitura marxista dó milenarismo (seguindo nisto a Engels) mas também - e isto é novo - a uma interpretação milenarista do marxismo. As heresias escatológicas e coletivistas do passado não são para ele simplesmente os "precursores do socialismo" (título do livro de Kautsky) - quer dizer, um capítulo já encerrado do passado - mas uma herança subversiva atual.
Bloch reconhece, evidentemente, como o jovem Marx da célebre citação de 1844, a dupla natureza do fato religioso, seu aspecto opressor e seu potencial de revolta. O primeiro aspecto deve ser analisado empregando-se o que ele chama da "corrente fria" do marxismo: a análise materialista implacável das ideologias, dos ídolos e das idolatrias; o segundo, pelo contrário, necessita da "corrente quente", que procura salvar o excedente cultural utópico das religiões, sua força crítica e antecipadora. Mais além do "diálogo", Bloch sonha com uma união verdadeira entre cristianismo e revolução, como na época da Guerra dos Camponeses.
Uma outra tentativa interessante e original de estudo marxista da religião é a obra de Lucien Goldmann. No seu livro Le Dieu Cachê (1955) ele compara (sem as identificar) a fé religiosa e a fé marxista: as duas têm em comum a oposição ao individualismo (racionalista ou empirista) e a crença nos valores trans-individuais - Deus para a religião, a comunidade humana para o socialismo. Uma semelhante analogia existe entre a aposta pascaliana sobre a existência de Deus e a aposta marxista sobre o futuro histórico libertado: as duas pressupõem o risco, o perigo do fracasso e a esperança da vitória, as duas dependem da "fé" e não são demonstráveis no exclusivo plano dos julgamentos de fato. O que as separa é, evidentemente, o caráter sobrenatural ou supra-histórico da transcendência religiosa. Sem querer de nenhuma forma "cristianizar o marxismo", Lucien Goldmann introduziu uma visão nova sobre a relação conflitiva entre crença religiosa e ateísmo marxista.

2 comentários:

Francisco Sulo disse...

Lamentável saber que as aproximações mais simpáticas entre o Cristianismo e o marxismo, principalmente da parte deste, se dão de forma meramente pragmática e desonesta.

Rev. Adriano Gama disse...

Quem fala de socialismo cristão não entende o que é socialismo e nem o que é cristianismo. O próprio Lenin não aceitava tal "socialismo" e nem tais socialistas. Lenin considerava os "socialistas cristãos (o pior aspecto do "socialismo" e sua pior distorção) ..." (Carta ao Maxin Gorky, carta II - Obras de Lenin, Coleção I).