terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

As Flores sobre as Correntes - Rubem Alves

Capítulo extraído do livro - "O que é religião" (grifo meu)

"O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e protesto contra um sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo".

(K. Marx)

Entramos num outro mundo. Durkheim contem­plou as tênues cores do mundo sacral que desapa­recia, como nuvens de crepúsculo que passam de rosa ao negro, sob as mudanças rápidas da luz que mergulha. Fascinado, empreendeu a busca das origens, do tempo perdido... E lá se foi atrás da religião mais simples e primitiva que se conhecia... Compreender com esperança. . .

Marx não habita o crepúsculo. Vive já em plena noite. Anda em meio aos escombros. Analisa a dissolução. Elabora a ciência do capital e faz o diagnóstico do seu fim. Nada tem a pregar e nem oferece conselhos. Não procura paraísos perdidos porque não acredita neles. Mas dirige o seu olhar para os horizontes futuros e espera a vinda de uma cidade santa, sociedade sem opri­midos e opressores, de liberdade, de transfigu­ração erótica do corpo...

Mas o solo em que pisa desconhece o mundo sacral, de normas morais e valores espirituais. Ele é secularizado do princípio ao fim e somente conhece a ética do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. Não importa que os capitalistas frequentem templos e façam orações, nem que construam cidades sagradas ou sustentem movi­mentos missionários, nem ainda que haja água benta na inauguração das fábricas e celebrações de ações de graças pela prosperidade, e muito menos que missas sejam rezadas pela eterna sal­vação de suas almas... Este mundo ignora os elementos espirituais. Salários e preços não são estabelecidos nem pela religião e nem pela ética. A riqueza se constrói por meio de uma lógica duramente material: a lógica do lucro, que não conhece a compaixão. Na verdade, aqueles que têm compaixão se condenam a si mesmos à destruição... Não se pode negar que os gestos e as falas ainda se referem aos deuses e aos valores morais: maquilagem, incenso, desodorante, perfu­maria, uma aura sagrada que tudo envolve no seu perfume, sem que nada se altere. E Marx tem de insistir num procedimento rigorosamente materialista de análise. De fato, materialismo que é uma exigência do próprio sistema que só conhece o poder dos fatores materiais. É a lógica do lucro e da riqueza que assim estabelece — e não as inclinações pessoais daquele que a analisava.

Poucas pessoas sabem que o pensamento de Marx sobre a religião tomou forma e se desen­volveu em meio a uma luta política que travou. E a luta não foi nem com clérigos e nem com teólogos, mas com um grupo de filósofos que entendia que a religião era a grande culpada de todas as desgraças sociais de então, e desejava estabelecer um programa educativo com o obje-tivo de fazer com que as pessoas abandonassem as ilusões religiosas. Marx estava convencido de que a religião não tinha culpa alguma. E que não existia nada mais impossível que a elimi­nação de ideias, ainda que falsas, das cabeças dos homens. . . Porque as pessoas não têm certas ideias porque querem. E imagino que clérigos e religiosos poderão esfregar as mãos com prazer: "Finalmente descobrimos um Marx do nosso lado". Nada mais distante da verdade. A religião não era culpada pela simples razão de que ela não fazia diferença alguma. Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma donzela? Como poderia a religião ser acusada de responsa­bilidade, se ela não passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida, projetada sobre a parede? Ela não era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas. E, por isto mesmo, os filó­sofos que se apresentavam como perigosos revo­lucionários não passavam de réplicas de D. Quixote, investindo contra moinhos de vento.

Marx não desejava gastar energias com dragões de papel. Estava em busca das forças que realmente movem a sociedade. Porque era aí, e somente aí, que as batalhas deveriam ser travadas.

Que forças eram estas?

Os filósofos revolucionários a que nos refe­rimos, hegelianos de esquerda, desejavam que a sociedade passasse por transformações radicais. E eles entendiam que a ordem social era construí­da com uma argamassa em que as coisas materiais eram cimentadas umas nas outras por meio de ideias e formas de pensar. Assim, armas, máquinas, bancos, fábricas, terras se integravam por meio da religião, do direito, da filosofia, da teologia. . . A conclusão político-tática se segue necessaria­mente: se houver uma atividade capaz de dissolver ideias e modificar formas antigas de pensar, o edifício social inteiro começará a tremer. E foi assim que eles se decidiram a travar as batalhas revolucionárias no campo das ideias, usando como arma alguma coisa que naquele tempo se chamava crítica. Hoje, possivelmente, eles falariam de conscientização. E investiram contra a religião.

Marx se riu disto. Os hegelianos vêem as coisas de cabeça para baixo. Pensam que as ideias são as causas da vida social, quando elas nada mais são que efeitos, que aparecem depois que as coisas aconteceram. . . "Não é a consciência que determina a vida; é a vida que determina a cons­ciência." E ele afirmava:

"Até mesmo as concepções nebulosas que existem nos cérebros dos homens são necessa­riamente sublimadas do seu processo de vida, que é material, empiricamente observável e determinado por premissas materiais. A produção de ideias, de conceitos, da cons­ciência, está desde as suas origens diretamente entrelaçada com a atividade material e as rela­ções materiais dos homens, que são a linguagem da vida real. A produção das ideias dos homens, o pensamento, as suas relações espirituais aparecem, sob este ângulo, como uma ema­nação de sua condição material. A mesma coisa se pode dizer da produção espiritual de um povo, representada pela linguagem da política, das leis, da moral, da religião,da metafísica. Os homens são os produtores de suas concepções".

"É o homem que faz a religião; a religião não faz o homem".

É o fogo que faz a tumaça; a fumaça não faz o fogo.

E, da mesma forma como é inútil tentar apagar o fogo assoprando a fumaça, também é inútil tentar mudar as condições de vida pela crítica da religião. A consciência da fumaça nos remete ao incêndio de onde ela sai. De forma idêntica, a consciência da religião nos força a encarar as condições materiais que a produzem.

Quem é esse homem que produz a religião?

Ele é um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita de roupa e habitação, corpo que se reproduz, corpo que tem de transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver.

Mas o corpo não existe no ar. Não o encon­tramos de forma abstraia e universal. Vemos homens indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se dá sua luta pela sobrevivência, e exibindo em seus corpos as marcas da natureza e as marcas das ferramentas. Os bóias-frias, os pescadores, os que lutam no campo, os que trabalham nas construções, os motoristas de ônibus, os que trabalham nas forjas e prensas, os que ensinam crianças e adultos a ler — cada um deles, de ma­neira específica, traz no seu corpo as marcas do seu trabalho. Marcas que se traduzem na comida que podem comer, nas enfermidades que podem sofrer, nas diversões a que podem se dar, nos anos que podem viver, e nos pensamentos com que podem sonhar — suas religiões e espe­ranças.

Marx também sonhava e imaginava. E muito embora haja alguns que o considerem importante em virtude da ciência económica que estabeleceu, desprezando como arroubos juvenis os voos de sua fantasia, coloco-me entre aqueles outros que invertem as coisas e se detêm especialmente nas fronteiras em que o seu pensamento invade os horizontes das utopias. E Marx se perguntava sobre um outro tipo de trabalho que daria prazer e felicidade aos homens, trabalho companheiro das criações dos artistas e do prazer não utili­tário do brinquedo e do jogo... Trabalho expres­são da liberdade, atividade espiritual criadora, construtor de um mundo em harmonia com a intenção... É claro que Marx nunca viu este sonho utópico realizado em sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos fragmentos de experiência, trabalhados pela memória e pela esperança. Mas são estes hori­zontes utópicos que aguçam os olhos para que eles percebam os absurdos do "topos", o lugar que habitamos. E, ao contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi alienação do princípio ao fim.

O que é alienação?

Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vendê-la a um outro. Por este processo ela é alienada. A alie­nação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo que pertencia à primeira.

Por que o trabalho é marcado pela alienação?

Voltemos por um instante ao trabalho não alienado, criador, livre, que Marx imaginou. Sua marca essencial está nisto: o homem deseja algo. Seu desejo provoca a imaginação que visualiza aquilo que é desejado, seja um jardim, uma sinfo­nia ou um simples brinquedo. A imaginação e o desejo informam o corpo, que se põe inteiro a trabalhar, por amor ao objeto que deve ser criado. E quando o trabalho termina o criador contempla sua obra, vê que é muito boa e des­cansa...

Que acontece com aquele que trabalha dentro das atuais condições?

Em primeiro lugar, ele tem de alienar o seu desejo. Seu desejo passa a ser o desejo de outro. Ele trabalha para outro.

Em segundo lugar, o objeto a ser produzido não é resultado de uma decisão sua. Ele não está gerando um filho seu. Na verdade, ele não está metido na produção de objeto algum porque com a divisão da produção numa série de atos especializados e independentes, ele é rebaixado da condição de construtor de coisas à condição de alguém que simplesmente aperta um parafuso, aperta um botão, dá uma martelada. Se se pergun­tar a um operário de uma fábrica de automóveis: "que é que você faz?", nenhum deles dirá "eu faço automóveis. Você já viu como são bonitos os carros que fabrico?". Eles não dirão que objetos produzem, mas que função especializada seus corpos fazem: "Sou torneiro. Sou ferramenteiro. Sou eletricista".

Em terceiro lugar, e em consequência do que já foi dito, o trabalho não é atividade que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do salário.

Em último lugar, o trabalho cria um mundo independente da vontade de operários... e capi­talistas. Porque também os capitalistas estão alienados. Eles não podem fazer o que desejam. Todo o seu comportamento é rigorosamente determinado pela lei do lucro. Não é difícil com­preender como isto acontece. Imaginemos que você, sabendo que o bom do capitalismo é ser capitalista, e dispondo de uma certa importância ajuntada na poupança, resolva dar voos mais altos e investir na bolsa de valores. Como é que você irá proceder? Você deverá consultar tabelas que o informem dos melhores investimentos. E que é que você vai encontrar nelas? Números, nada mais. Números indicam as possibilidades de lucro. Se as firmas em que você vai investir estão derrubando florestas e provocando devas­tações ecológicas, se elas prosperam pela produção de armas, se elas são injustas e cruéis com os seus empregados, tudo isto é absolutamente irrele­vante. Estabelecida a lógica do lucro, todas as coisas — da talidomida ao napalm — se transfor­mam em mercadorias, inclusive o operário. Este é o mundo secular, utilitário, que horrori­zava Durkheim. É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...

Mas que fatores levam os trabalhadores a aceitar tal situação? Por que trabalham de forma alie­nada? Por que não saem para outra?

Porque não há alternativas. Eles só possuem os seus corpos. Para produzir deverão acoplá-los às máquinas, aos meios de produção. Máquinas e meios de produção não são seus, e são gover­nados pela lógica do lucro. E é assim que o próprio conceito de alienação nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas classes sociais. Duas maneiras totalmente diferentes de ser do corpo. Os trabalhadores são acoplados às máquinas e, por isto, têm de seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixará marcas nas mãos, na postura, no rosto, nos olhos, especialmente os olhos. . . Os corpos que habitam o mundo do lucro também têm suas marcas, que vão do colarinho branco (os americanos falam mesmo nos trabalhadores white collar), passando pêlos restaurantes que frequentam, as aventuras amo­rosas que têm, e as enfermidades cardiovasculares que os afligem...

E não é necessário pensar muito para compreen­der que os interesses destas duas classes não são harmónicos. Para Marx aqui se encontra a contra­dição máxima do capitalismo: o capitalismo cresce graças a uma condição que torna o confli­to entre trabalhadores e patrões inevitável. Marx nunca pregou luta de classes. Achava tal situação detestável. Apenas como um médico que faz um diagnóstico de um paciente enfermo, ele dizia: o desenlace é inevitável porque os órgãos estão em guerra... O problema não é de natureza moral nem de natureza psicológica. Não se resolve com boa vontade por parte dos operários e genero­sidade por parte dos patrões. Nenhum salário, por mais alto que seja, eliminará a alienação. Trata-se de uma lei, sob o ponto de vista de Marx, tão rigorosa quanto a lei da química que diz: comprimindo-se o volume de um gás a pressão aumenta; expandindo-se o volume, a pressão cai. E aqui poderíamos afirmar: "Salários compri­midos ao seu mínimo produzem milagres econó­micos expandidos ao seu máximo".

Isto é a realidade: homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não desejam.. . E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias, utopias, critérios estéticos, leis, consti­tuições, religiões...

Sobre o fogo, a fumaça, sobre a realidade as vozes, sobre a infra-estrutura a superestrutura, sobre a vida a consciência...

Só que tudo aparece de cabeça para baixo, confuso. Diz Marx, lá em O Capital, que só vere­mos com clareza quando fizermos as coisas do princípio ao fim, de acordo com um plano previa­mente traçado. Mas quem faz as coisas do princípio ao fim? Quem compreende o plano eral? Os presidentes? Os planejadores? Os ministros? O FMI?

Compreende-se que o que as pessoas têm nor­malmente em suas cabeças não seja conhecimento, não seja ciência, mas pura ideologia, fumaças, secreções, reflexos de um mundo absurdo.

E é aqui que aparece a religião, em parte para iluminar os cantos escuros do conhecimento. Mas, pobre dela... Ela mesma não vê. Como pretende iluminar? Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que conso­lidam os fortes.

"A religião é a teoria geral deste mundo, o seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, sua solene completude, sua justificação moral, seu fundamento universal de consolo e legiti­mação."

De fato, quando o pobre/oprimido, das profun­dezas do seu sofrimento, balbucia: "É a vontade de Deus", cessam todas as razões, todos os argu­mentos, as injustiças se transformam em mistérios de desígnios insondáveis e a sua própria miséria, uma provação a ser suportada com paciência,na espera da salvação eterna de sua alma. E os poderosos usam as mesmas palavras sagradas e invocam os poderes da divindade como cúmplices da guerra e da rapina. E os habitantes ori­ginais deste continente e suas civilizações foram massacrados em nome da cruz, e a expansão colonial levou consigo para a África e a Ásia o Deus dos brancos, e constituições se escrevem invocando a vontade de Deus, e um represen­tante de Deus vai ao lado daquele que foi conde­nado a morrer... Nada se altera, nada se trans­forma, mas sobre todas as coisas dos homens se espalha o perfume do incenso...

Religião, "expressão de sofrimento real, protesto contra um sofrimento real, suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito, ópio do povo".

E, desta forma, as palavras que brotam do sofrimento se transformam, elas mesmas, no bálsamo provisório para uma dor que ele é impo­tente para curar. E é por isto que é ópio, "felici­dade ilusória do povo", que deve ser abolida como condição de sua verdadeira felicidade. Mas o abandono das ilusões não se consegue por meio de uma atividade intelectual. As pessoas não podem ser convencidas a abandonar suas ideias religiosas. Ideias são ecos, fumaça, sinto­mas. . . Se elas têm tais ideias é porque a sua situação as exige. É necessário, então, que sua situação seja mudada, as fendas curadas, para que as ilusões desapareçam.

"A exigência de que se abandonem as ilusões sobre uma determinada situação, é a exigência de que se abandone uma situação que neces­sita de ilusões."

"A crítica arrancou as flores imaginárias da corrente não para que o homem viva acorren­tado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a corrente e colha a flor viva. A crítica da religião desilude o homem, a fim de fazê-lo pensar e agir e moldar a sua reali­dade como alguém que, sem ilusões, voltou à razão; agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira em torno de si mesmo."

Marx antevê o fim da religião. Ela só existe numa situação marcada pela alienação. Desapa­recida a alienação, numa sociedade livre, em que não haja opressores, não importa que sejam capi­talistas, burocratas ou quem quer que ostente algum sinal de superioridade hierárquica, desapa­recerá também a religião. A religião é fruto da alienação. E com isto os religiosos mais devotos concordariam também. Nem no Paraíso e nem na Cidade Santa se e/nitem alvarás para a cons­trução de templos...

O equívoco é pensar que o sagrado é somente aquilo que ostenta os nomes religiosos tradicionais. Bem lembrava Durkheim que as roupas simbó­licas da religião se alteram. Onde quer que ima­ginemos valores e os acrescentemos ao real, aí está o discurso do desejo, justamente o lugar onde nascem os deuses. E Marx fala sobre uma sociedade sem classes que ninguém nunca viu, e na visão transparente e conhecimento crista­lino das coisas, e no triunfo da liberdade e no desaparecimento de opressores e oprimidos, enquanto o Estado murcha de velhice e inuti­lidade, ao mesmo tempo que as pessoas brincam e riem enquanto trabalham, plantando jardins pela manhã, construindo casas à tarde, discutindo arte à noite. . . De fato, foram-se os símbolos sagrados, justamente aqueles "já avançados em anos ou já mortos. . .". Mas eu me perguntaria se a razão por que o marxismo foi capaz de produ­zir "horas de efervescência criativa, nas quais ideias novas apareceram e novas fórmulas foram encontradas, que serviram, por um pouco, como guias para a humanidade", sim, eu me pergun­taria se tudo isto se deveu ao rigor de sua ciência ou à paixão de sua visão, se se deveu aos detalhes de sua explicação ou às promessas e esperanças que ele foi capaz de fazer nascer.. . E se isto for verdade, então, à análise que o marxismo faz da religião como ópio do povo, um outro capítulo deveria ser acrescentado sobre a religião como arma dos oprimidos, sendo que o marxismo, de direito, teria de ser incluído como uma delas. . . Parece que a crítica marxista da religião não termina com ela, mas simplesmente inaugura um outro capítulo. Porque, como Albert Camus corretamente observa, "Marx foi o único que compreendeu que uma religião que não invoca a transcendência deveria ser chamada de polí­tica...".

Um comentário:

Francisco Sulo disse...

Tentarei me esforçar também para ver o marxismo não como uma crítica que se considera a mais totalizante, que trata a religião como meramente mais uma componente da superestrutura, reflexo da vida material dos homens.

A religião é mais do que isso, pois enquanto experiência que perpassa toda a humanidade - e não apenas aquelas sob um regime capitalista opressivo - é prova de uma necessidade de ligação perdida com um Ser transcendente que deixa intencionalmente migalhas que sempre anunciam um propósito nobre para o homem.